terça-feira, 20 de julho de 2010


Alunos da Escola do Exército, 1910
A I. P. n.º 235, de 22 de Agosto de 1910 publicou uma interessante foto-reportagem intitulada «Como se vive na Escola do Exército», assinada por Augusto Casimiro.
O artigo contém informação relevante sobre o modus vivendi dos "rapazes da Bemposta" e uniformes em uso. Há desde logo semelhanças vivenciais com as tradições em voga na mesma época entre os alunos da Universidade de Coimbra. Recorde-se que José Afonso e Adriano Correia de Oliveira, em declarações emitidas na década de 1960, denunciaram nas praxes coimbrãs "tiques militares e marialvas". Estas declarações nunca foram convenientemente investigadas (até porque o ambiente restauracionista pós-1974 era hostil a este tipo de reflexões) podendo dizer-se que em traços gerais a praxe académica coimbrã dos períodos da Primeira República e do Estado Novo assimilou e reproduziu costumes de origem militar que na década de 1940 já estavam consolidados como tradições académicas "genuinas".
O próprio Código da Praxe, de 1957, não esconde essa influência, quando consagra a designação hierárquica de "paraquedista" em alunos transferidos de outras instituições de ensino superior. Ora o vocábulo paraquedista não é anterior à Primeira Guerra Mundial nem tem a sua origem na Universidade de Coimbra. O mesmo acontece com a expressão "passar revista" à capa e batina, claramente influenciada pela gíria e disciplina paramilitares, ou com a estranha forma como os autores do código intentam descrever o traje académico. Está bem de ver que a prática discursiva positivada não promana da linguagem académica, eclesiástica ou textil propriamente ditas. As peças do traje são enunciadas nesse código a propósito da condição de "estar na praxe", o que significa literalmente estar correctamente uniformizado para exercer actos praxísticos. Trata-se de uma forma incorrectíssima de enunciar a matéria, pois a morfologia e o cromatismo de um traje em circunstância alguma se confundem com as regras associadas ao vestir.
Em 1910, anotemos as seguintes semelhanças entre as duas instituições (Univ. de Coimbra e Escola do Exército):
-uso obrigatório de farda. Na EE, estavam em uso o pequeno uniforme constituído por calças compridas justas, sapato de couro ou botas, paletot justo, barretina (tacho, tachinho, também usado em alguns liceus portugueses) e capotão militar, vestindo-se nas cerimónias e solenidades a farda de gala;
-existência de uma gíria militar escolar, com vocábulos comuns. Sobre este assunto vale a pena revisitar o trabalho do Tenente-Coronel Manuel Afonso do Paço (1895-1968) - Gírias militares portuguesas. Porto: 1926;
-prática anual de praxes centradas nos ritos de entrada, onde cabiam o baptismo, a primeira noite em branco, a cama em sentido, os lençois em bicicleta, a "venda" de objectos e a atribuição de alcunhas. Outras se praticavam, anunciado a ascensão hierárquica como a frequência do bordel e a cerimónia de armação dos cavaleiros com um capacete prussiano (e se quisermos alargar o nosso horizonte prospectivo, diremos que estas e outras praxes também eram praticadas no Real Colégio Militar e na maior parte dos quartéis);
-o uso de distintivos metálicos e emblemas bordados nas golas de algumas peças de indumentária (paletot, capotão), tradição militar conhecida desde pelo menos o século XVIII que nas décadas de 1940-1950 começou a ganhar os seus adeptos na Universidade de Coimbra, particularmente entre os apoiantes da equipa de futebol e os sócios das agremiações corais e instrumentísticas.
Relativamente a este aspecto, cabe salientar que os distintivos metálicos e os emblemas bordados sobre tecido não eram desconhecidos dos estudantes do ensino superior português antes do Estado Novo. Ao longo do século XIX, os estudantes de Coimbra participaram em batalhões académicos, pelo que conheciam muito bem esta realidade. E entre a década de 1830 e a criação das novas universidades de Lisboa e do Porto (1911), a Universidade de Coimbra, as escolas politécnicas e as cirúrgicas foram frequentadas por alunos militares que, nessa condição, envergavam as suas fardas militares e com ela usavam distintivos metálicos em colarinhos e golas. O que não se pode é a partir da realidade dos estudantes militares operar uma generalização e afirmar que os estudantes da Univ. de Coimbra costumavam usar distintivos e emblemas com a capa e batina. Os símbolos dos cursos eram muito repoduzidos em contextos artísticos (pinturas de tectos, escultura nos edifícios, talha). Por seu turno, o emblema com os símbolos de Matemática era usado no capelo dos doutores, costume iniciado com a reforma pombalina de 1772 que não se generalizou noutras faculdades. No século XIX e primeiro quarto do século XX, os estudantes costumavam exibir os símbolos dos cursos nas pastas de luxo de quintanista, em pintura sobre cetim e em apliques de prata. A primeira bandeira da Tuna Académica também continha na sua parte central os símbolos das Faculdades então existentes, Teologia, Direito, Medicina, Matemática e Filosofia Natural. Até aos anos da Grande Guerra, a representação dos símbolos e atributos dos saberes obedecia a códigos heraldísticos e informação mitológica rigorosa, não admitindo heterodoxias kitsch. O primeio sinal de que algo tinha começado a mudar ocorreu justamente neste período, quando a propósito da construção do edifício da Faculdade de Letras os lentes de História sugeriram ao arquitecto Silva Pinto a produção de um grande relevo com a esfinge egípcia. Desde então, na iconografia conimbricense a esfinge ficaria associada à História e à Arqueologia, abuso cometido pelos eruditos que confundiram o seu fascínio pelas antiguidades e raridades greco-romanas e egípcias com o vero símblo da História que é Clio e outro nenhum não.
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Nota 1: o paletot aqui registado fotograficamente é, com insignificantes diferenças, a mesma peça de indumentária que os emigrantes açorianos trouxeram dos EUA para as aldeias ocidentais da Ilha do Pico, conhecida por froca, confeccionável em cotim e angrim. Resta saber se a sua origem fini-oitocentista é unicamente norte-americana;
Nota 2: o desarmar a cama de ferro para que o jovem recruta se estatelasse no chão era uma praxe comum a todos os quartéis militares portugueses.

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