quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Adeus aos préfets. Sem ressentimentos protocolares (1832-2911)


Em 2011 o Governo extinguiu de facto os governos civis, uma instituição enraizada na cultura portuguesa desde os princípios do liberalismo.
Se as câmaras municipais, algumas delas cronologicamente anteriores à fundação de Portugal como país independente, nunca manifestaram dúvidas quanto ao espectro de competências dos governos civis, o mesmo já não se pode dizer no que tange ao papel e lugar que ao longo de décadas reclamaram nos actos públicos.
As câmaras municipais nem sempre se deram bem com o lugar de proeminência assumido pelos governadores civis, vice-governadores civis (quando os houve) e secretários dos governadores civis, quando no papel de anfitriãs. Vinha o convidado dar ordens e presidir na casa da anfitriã? Eram as câmaras municipais hierarquicamente subordinadas à autoridade do governador civil? No período do Estado Novo detectamos alguns ecos de um mal-estar cuidadosamente dissimulado pelo governo e pelos órgãos de comunicação social. Casos de governadores civis que declinavam o convite para certos actos realizados no perímetro do município. Situações de tensão velada em que tacitamente o governador civil ia a certos eventos e o presidente da câmara a outros. Acontecia muito nas cerimónias solenes de abertura do ano escolar nos liceus distritais.
Numa obra editada em 2009, um antigo chefe do gabinete de protocolo da câmara municipal da Figueira da Foz aborda a questão das inter-relações protocolares entre os representantes máximos dos governos civis e dos municípios. Perpassa o discurso uma desconfiança que se arrastou no tempo, que as normas de cortesia e boa educação interditavam de ganhar visibilidade pública. O autor regista “casos de arrufos públicos e de recados velados” (Lopes, 2009: 139).
A relação protocolar difícil entre governos civis e câmaras municipais discutida por Lopes tinha raízes fundas. Comecemos com o Decreto de 31.12.1836, que contém o primeiro Código Administrativo Português (código de Passos Manuel). No art. 1.º do Capítulo I, do Título I, apresenta-se um mapa administrativo estratificado contendo a subdivisão do território metropolitano e insular que acaba de resultar da extinção de centenas de antigos municípios. Um acto governativo típico do despotismo esclarecido em tempos de monarquia constitucional que a consolidação da militância democrática se encarregaria de inviabilizar. Os juristas liberais designavam estes actos governativos discricionários por “ditadura administrativa”, pois que o ministério decretava ao arrepio de qualquer sanção parlamentar. O código apresenta uma estrutura administrativa estratificada cujo topo é o governo (ministério do Reino) e cuja base são as freguesias:

1-Distritos Administrativos
2-Concelhos
3-Freguesias

Para que não restassem dúvidas quanto ao monopólio do governo central, o art. 2.º pormenorizava que o número de circunscrições e a sua designação eram os que constavam do Decreto de 6.11.1836, que veio reduzir drasticamente a extensão do mapa municipal. O Decreto de 6.11.1836 e o art. 4.º do Decreto de 31.12.1836 colocam em contradição o critério adoptado quanto ao modo de ordenar os distritos e os municípios, e abrem as portas a um clima de tensão no território regional. De acordo com o critério histórico, ou da primazia histórica, os municípios eram ordenados pela posição que ocupavam no cerimonial da casa real, que colocava em primeiro lugar a câmara municipal de Lisboa, em segundo lugar a câmara municipal do Porto, e as restantes câmaras por data de criação. Todas as câmaras sabiam em que data tinham sido criadas, por ciosos treslados dos velhos forais e documentos dos cartórios municipais.
A legislação liberal adopta um critério de ordenação dos distritos racionalista e administrativista assente na orientação Norte/Sul e Litoral/Interior: 1 Viana do Castelo, 2 Braga, 3 Porto, 4 Vila Real, 5 Bragança, 6 Aveiro, 7 Coimbra, 8 Viseu, 9 Guarda, 10 Castelo Branco, 11 Leiria, 12 Lisboa, 13 Santarém, 14 Portalegre, 15 Évora, 16 Beja, 17 Faro. O Decreto de 31.12.1836 vem completar a lista, dispondo o art. 4.º primeiro sobre os Açores e em último sobre a Madeira: 18 Ponta Delgada, 19 Angra do Heroísmo, 20 Horta, 21 Funchal.
Para um especialista em cerimonial não resulta claro qual tenha o sido o critério de ordenação adoptado. É geográfico, sem ser 100% geográfico. No caso dos Açores segue de oriente para ocidente. Entre os Açores e a Madeira, segue de ocidente para oriente. Em Portugal continental começa a descer pelo litoral, inflecte para o interior e sobe (ex: Viana, Braga, Porto, passando a Vila Real e subindo para Bragança). É o chamado “mapa feito no terreiro do Paço a régua e esquadro”, sem atender à cultura histórica e às realidades locais.
Já no caso dos municípios, a ordenação territorial segue o critério alfabético por distritos e concelhos: de Águeda, no distrito de Aveiro, a Vouzela no distrito de Viseu, no território metropolitano. A ordenação das freguesias também segue a mesma disposição alfabética dentro de cada concelho e distrito. Daqui resultava que freguesias de remota idade se viam ultrapassadas por freguesias novíssimas começadas por A, B, C.
Se para os governadores civis fazia sentido a ordenação protocolar conforme o disposto no articulado do código administrativo em vigor, um tal critério poderia constituir embaraço para um presidente de câmara. É que não era de todo a mesma coisa colocar uma câmara criada no século XIX à frente de outra câmara fundada no século XII.
Na linguagem administrativa de 1836, o governador civil vem designado por administrador geral, hierarquizando-se as seguintes autoridades administrativas que representavam localmente o governo central e com as quais teriam de se articular as câmaras:

·         Distrito (Administrador geral)
·         Concelho (Administrador do concelho)
·         Paróquia (Regedor de paróquia).

Dito de modo simples, Administrador Geral/Governador Civil e Administrador do Concelho passavam à frente de Presidente de Câmara. Regedor de paróquia passava à frente de Presidente da Junta de Freguesia.
Relativamente às cerimónias de tomada de posse dos titulares dos cargos e instalação dos órgãos, o código de 1836 era cirúrgico. Sendo o Administrador Geral do Distrito da livre escolha do governo central, a nomeação e posse cabiam ao ministro do Reino (Administração Interna). A posse tinha lugar em Lisboa, no gabinete do titular da pasta. O Administrador do Conselho também era da livre escolha do governo. Competia ao Administrador Geral convocar os membros eleitos para a Junta Geral de Distrito, abrir a primeira sessão em nome do rei e ceder a presidência interina ao procurador mais velho para fazer eleger a nova equipa e proceder à sua instalação.
As câmaras municipais eleitas reuniam-se nos paços do concelho no dia um de Janeiro pelas 10.00h. O juramento e instalação eram presididos pelo presidente cessante (art. 44.º). Idêntica cerimónia era observada na posse das juntas de paróquia, empossadas no primeiro domingo de dezembro (arts. 15.º e 16.º). O texto do código não fazia alusão a trajes corporativos, insígnias e estilos municipais. Estes continuavam a praticar-se, regulados pela tradição e por normativos avulsos.

As principais solenidades realizadas pelas câmaras municipais eram:
·         juramento, posse e instalação da câmara municipal;
·         celebração dos nascimentos, casamentos e aniversários dos membros da família real;
·         celebração do juramento constitucional do herdeiro do trono e da aclamação dos novos monarcas;
·         exéquias solenes em homenagem a membros da família real;
·         cerimónia da quebra dos escudos por morte do rei;
·         recepção solene a monarca visitante, com recebimento na fronteira do concelho, cortejo, entrega das chaves e acto público nos paços do concelho;
·         assentamento de primeira pedra e inauguração de obra;
·         organização da Festa do Corpo de Deus e de outras festas importantes na vida do município (S. João Baptista), com consequente coordenação das confrarias, corporações profissionais e figurantes.

Os principais acontecimentos municipais eram anunciados publicamente através da afixação de editais nos chamados locais de estilo, com repiques de sinos (muitas câmaras tinha sino próprio), toque de gaiteiros e pregão lançado pelo pregoeiro nas principais praças e terreiros. Os pregões podiam ser lançados a pé ou a cavalo, antecedidos de rufar de caixa ou de toque de gaita de foles.

Os símbolos municipais eram:
·         brasão de armas;
·         selo municipal;
·         estandarte municipal/bandeira;
·         distinções conferidas rei/e ou  governo central (ex: título de “Mui nobre e sempre leal” atribuído ao Marvão por Decreto de 5.6.1834; título de duque do Porto atribuído aos filhos segundos dos reis de Portugal em homenagem à “Muito Nobre e Leal Cidade do Porto”, conforme Decreto de 4.4.1833).

As insígnias municipais eram:
·         traje de capa e espada à antiga portuguesa, que nos finais do século XIX passou a ser casaca;
·         capa de vereador em cetim preto, forrada de branco;
·         chapéu preto, forrado de cetim e emplumado de branco;
·         vara de vereador/presidente (brancas em certos municípios, douradas noutros como Coimbra);
·         espadim;
·         faixa de vereador nas cores nacionais (monarquia constitucional);
·         chaves das portas da cidade/vila;
·         alegoria feminina do município, tendo na cabeça um coronete e nas mãos um escudo com o brasão de armas (havia excepções, como o município do Porto);
·         vara de luto oficial, pintada de preto, com fumo;
·         pendão de luto oficial, de levar ao arrastão sobre cavalo;
·         capa preta e chapeirão preto com fumo, de uso em contextos de luto pesado.

Não existia grande colar para presidentes e vereadores, ao contrário dos municípios do Reino Unido e de alguns países do norte da Europa.
As chaves da cidade/vila eram em ouro, tendo o brasão municipal gravado na cabeça.
Nos códigos administrativos em vigor no século XIX e nos inícios do século XX não encontramos artigos onde o legislador diga expressamente que os governadores civis têm precedência sobre os presidentes de câmara. Mas encontramos sinais de progressiva centralização, com a consequente diminuição da autonomia municipal e a adopção de critérios artificiais de distinção entre municípios assentes em dados estatísticos e demográficos.
No Código Administrativo, aprovado pelo Decreto de 17 de Julho de 1886, o artigo 1.º introduz uma hierarquização vertical que se poderia traduzir no seguinte esquema: casa real, governo, distrito, concelho, paróquia. Ao tratar da abertura das sessões da Junta Geral, o art. 43.º frisa que o Governador Civil não preside mas toma sempre assente à direita do presidente da mesa.
O art. 100.º, dispõe sobre os tipos de municípios e introduz uma distinção tripartida:

·         Concelhos de 1.ª ordem, sendo capitais de distrito e/ou tendo 40.000 ou mais habitantes;
·         Concelhos de 2.ª ordem, tendo 15.000 ou mais habitantes;
·         Concelhos de 3.ª ordem, tendo menos de 15.000 habitantes.

Excluíam-se desta grelha classificatória os concelhos de Lisboa e do Porto. Parece que no espírito do legislador os municípios se deveriam começar a ordenar para efeitos de actos públicos em conformidade que esta divisão em três estratos, que mais ou menos na mesma altura estava na moda e se aplicava à classificação das comarcas judiciais, hierarquização dos bilhetes de barco e combóio, plateias dos coliseus e até tipos de carnes cortadas e vendidas aos clientes. No fundo, um critério oriundo das ciências naturais, crescentemente aplicado aos produtos comerciais e industriais que servia para distinguir a relação qualidade/preço.
Quanto às sessões municipais, o art. 103.º clarificava que o administrador do concelho poderia assistir, sentando-se à esquerda do presidente. No art.º 110.º consagrava-se o princípio da primazia dos governadores civis sobre os presidentes de câmara, cabendo aos primeiros convocar as reuniões municipais extraordinárias.
Nas juntas de paróquia, o protocolo era definido de forma mais óbvia. Quando presentes nas sessões, o pároco sentava-se à direita do presidente e o regedor à esquerda (arts. 181. e 182º).
É ante o governador civil que tomam posse o administrador do concelho e o regedor de paróquia. Sendo o administrador do concelho o representante local do governo central (art. 234.º) fica claro que se considerava ter precedência sobre o presidente da câmara.

Exemplo da precedência no Governo Civil
·         Governador Civil
·         Secretário do Governo Civil
·         Oficiais maiores da Secretaria
·         Oficiais menores da Secretaria

Exemplo da precedência na Junta Geral de Distrito
·         Presidente da assembleia de procuradores (na impossibilidade do presidente, presidia interinamente o procurador mais antigo)
·         Procuradores (ordenados por idades)
·         Secretário

Exemplo da precedência na Administração do Concelho
·         Administrador do Concelho (preside sempre que não esteja o Governador Civil)
·         Secretário
·         Amanuenses
·         Oficial de diligências

Exemplo da precedência na Regedoria de Paróquia
·         Regedor de Paróquia
·         Secretário
·         Cabos de Polícia da Regedoria

Exemplo da composição de mesa numa sessão da Junta de Paróquia
·         Presidente da Junta (preside ao acto, ocupando o centro)
·         Pároco (se presente, 1.º lugar à direita do presidente)
·         Regedor (se presente, 1.º lugar à esquerda do presidente)
·         1.º Vogal (à direita, após o pároco)
·         2.º vogal (à esquerda, após o Regedor)
·         Secretário da Junta (em mesinha separada).

Neste breve périplo importa perceber onde entroncam alguns dos entendimentos protocolares mais entranhados nas crenças dos funcionários públicos e dos cidadãos quanto ao lugar atribuído aos governos civis, presidentes de câmara e precedência entre distritos, concelhos e freguesias.
Com raízes no século XIX, as traves mestras deste paradigma duro repousam no Código Administrativo de Marcello Caetano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 31.095, de 31 de Dezembro de 1940, em construção desde pelo menos 1936, que teve sucessivas revisões até 1974.
O art. 2.º deste diploma divide os concelhos entre urbanos e rurais conforme o número de habitantes. Exceptuando os concelhos de Lisboa e do Porto, todos os restantes eram segmentados em urbanos e rurais de 1.ª, 2.ª e 3.ª ordem (art. 3.º). Dentro dos concelhos, as freguesias também eram classificadas em 1.ª, 2.ª e 3.ª ordem (art. 4.º). O mesmo acontecia com os distritos (art. 5.º), sendo de 1.ª ordem Lisboa e Porto, de 2.ª ordem Braga, Vila Real, Castelo Branco, Coimbra, Viseu, Santarém, Évora, Beja, Faro, e de 3.ª os restantes. Este tipo de classificação, que ventilava uma forma de arrumação artificial e aberrante, tinha implicações directas nas precedências.
O art. 14.º identificava como património simbólico de cada município: brasão de armas, selo e bandeira, sujeitando a aprovação a portaria do Ministro do Interior (Administração Pública). Na prática, quem decidia arbitrariamente nesta matéria era a Associação dos Arqueólogos Portugueses, que entre finais da década de 1920 e a década de 1930 inventou símbolos e atributos numa lógica de estandardização pautada por critérios rígidos e extremamente discutíveis.
No art. 15.º referiam-se os órgãos da administração municipal:

1-Conselho Municipal (inexistente em Lisboa e Porto), a que presidia o próprio Presidente da Câmara (art. 23.º)
2-Câmara Municipal, com a seguinte precedência: Presidente, Vice-Presidente, Vereadores, Secretário.
3-Presidente da Câmara.

No 2.º) do art. 36.º prescrevia-se que competia ao governador civil designar o substituto do presidente da câmara em caso de falta ou de impedimento.
Nos actos e sessões, o Vice-Presidente tomava assento à direita do Presidente. O art. 72.º não deixava margem para dúvidas. Presidente e Vice-Presidente eram nomeados pelo governo por períodos de quatro anos, tomando posse perante o governador civil do distrito. Não se pormenorizava se a posse seria conferida nos paços do concelho se no edifício do governo civil. A câmara de Lisboa podia ter dois vice-presidentes (art. 84.º), estabelecendo-se a precedência entre eles pela data da nomeação.
Quanto às formas de tratamento, apenas as câmaras de Lisboa e do Porto tinham direito a tratamento de Excelência, em conformidade com o Alvará de 29.1.1739, e Decreto de 11.8.1843 (n.º 4 do art. 84.º). Não se dispunha sobre a posse dos vereadores, insígnias e precedências. Nas outras câmaras, oscilava-se entre Digníssima e Ilustríssima.
O funcionamento diário das câmaras municipais era suportado por secretarias, que em Lisboa e Porto estavam segmentadas em Direcções de Serviços e Repartições. Na generalidade das câmaras, a secretaria era presidida por um Chefe de Secretaria que coordenava os trabalhos nas repartições.
Este código aceitava a federação de municípios (art. 177.º e ss.), dando a primazia ao Presidente da Comissão Administrativa das câmaras associadas (art. 180.º), que seria o presidente do município onde estava estabelecida a sede da federação.
Ao nível da freguesia, o código reconhecia a Junta de Freguesia (Presidente, Secretário, Tesoureiro, art.º 249.º) e a Regedoria (art. 197.º e 198.º). As freguesias podiam federar-se em “uniões” (art. 266.º), sendo o presidente designado pelo governador civil (art. 267.º).
Existiriam regedores nas freguesias de todos os municípios, excepto Lisboa e Porto (art. 272.º), que eram escolhidos, nomeados e empossados pelos presidentes de câmara. Colaboravam com o regedor um escrivão (podia ser ou não o da Junta de Freguesia) e dois cabos de polícia nomeados pelo presidente da câmara (art. 280.º). A posse do escrivão e dos cabos de polícia era conferida pelo próprio regedor.
Em todos os distritos existiriam um governador civil e um governador civil substituto, de livre nomeação governamental (art. 404.º). Tinham direito a honras militares correspondentes a general ou a contra-almirante e flâmula própria (art. 406º). Em certas circunstâncias, sendo militares, podiam usar uniforme. Pelo n.º 3) do art. 407.º os governadores civis podiam transmitir ordens aos presidentes de câmara.
O código administrativo de 1936-1940 era um documento ditatorial, tributário do racionalismo positivista, marcado pelos valores do regulamentadorismo, do controlo burocrático e do centralismo. Admitia os órgãos de poder regional e local mas não confiava na sua capacidade de autogestão. Mantinha os órgãos e agentes sobre constante ameaça de vigilância e de procedimento disciplinar.
Parecendo claro e acessível, o código alimentava um tipo de administração autoritária e opaca, que não autorizava o escrutínio dos actos públicos. O legislador centra-se nos detalhes, espraia-se em pormenores no tocante à forma e procedimentos dos actos e dos documentos. Em termos de cerimonial público é um instrumento muito pobre, lacunoso e redutor. Muitos municípios, em centenas de anos anteriores aos governos civis, sairam do Estado Novo ressentidos com a posição de primazia que eram obrigados a reconhecer mesmo quando afinal todos os titulares de cargos estavam alinhados com a ideologia do regime.

Saber mais
Código administrativo portuguez. Lisboa: Na Imprensa da Rua de S. Julião, 1837 [Decreto de 31.12.1836], http://www.df.unl.pt/Anexos/Investigacao/1814,pdf.
Código administrativo approvado por Decreto de 17 de Julho de 1886. Lisboa: Imprensa Nacional, 1888 [governo de José Luciano de Castro].
GOMES, Henrique Martins – Código administrativo (actualizado) com epígrafes aos artigos e índices cronológico e alfabético. 7.ª edição. Coimbra: Coimbra Editora, Lda., 1968 [aprovado pelo Decreto-Lei n.º 31.095, de 31.12.1940]. Idem, 8.ª edição revista e actualizada, 1971.
LOPES, Lídio – Protocolo autárquico. Lisboa: Aletheia Editores, 2009.

Derradeiro lugar ocupado na precedência do Estado (2006-2011)
A Lei n.º 40/2006, de 25 de Agosto, optou por uma solução do tipo “uma no cravo, outra na ferradura”. Não oferece dúvida que se trata de um diploma pouco feliz, que pouco respeita e conhece do património simbólico das instituições não integradas na administração central. Parte menos conseguida é o tratamento de desigualdade e de desequilíbrio conferido aos órgãos de soberania e o bamboleio entre órgãos de soberania e órgãos constitucionais da administração pública pesando sem surpresa o quinhão de leão a favor do Legislativo e do Executivo.
Pela listagem publicada em 2006, os presidentes de câmara ocupam nos actos públicos a 41.ª posição, os presidentes de assembleia municipal a 42.ª e os governadores civis a 43.ª. O legislador começa por lisonjear os presidentes de câmara, dizendo que presidem sempre aos actos públicos no respectivo município, gozando inclusive de estatuto protocolar idêntico ao de ministros de estado. Porém, acrescenta, nas derrogações ao princípio, que cedem a presidência sempre que presentes o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República e o Primeiro Ministro. Os governadores civis tomavam lugar após os presidentes das assembleias municipais, mas assumiam a presidência sempre que verificadas as duas situações seguintes (n.º 2 do art. 41.º): a) se estivessem a representar o governo central; se as cerimónias públicas tivessem directamente a ver com segurança, protecção e socorro.

Uniforme que tiveram os governadores civis e secretários (1835-1910)
Pela Loi du 17.2.1800 Napoleão Bonaparte fixou aos préfets e sous-préfets uniformes de gala e uniformes de serviço, de matriz laico-militar. Constavam basicamente de casaca cortada no ventre, abas de grilo, amplamente bordada, espadim, bicórnio de plumas e faixa de borlas. Estes seriam retomados e reformados pelo Décret du 10.4.1873. Modificada, a grande tenue seria abolida por Portaria de 1.8.1945, do punho de Charles de Gaulle. Ao contrário de Portugal, que em 1910 suspendeu o uso dos uniformes de governador civil, administrador de concelho, e respectivos secretários, a França mantém em uso um uniforme de tipo gendarme (3 variantes), com individualização de modelos masculino e feminino.
É da grande tenue napoleónica que vem o uniforme português de governador civil, de que não conhecemos iconografia. O seu figurino era relativamente próximo do padrão de confecção da farda das Escolas Médico-Cirúrgicas, conselheiros de Estado, ministros de Estado, diplomatas, auditores do Tribunal de Contas e sócios da Academia das Ciências de Lisboa. Este tipo de uniforme, dito farda direita, está em voga e é comum a todos os países ocidentais, incluindo os países do continente americano, os domínios coloniais dos europeus e o Japão que a partir da década de 1860 começa a ocidentalizar-se.

«Sendo conveniente esclarecer definitivamente os uniformes de que devem usar os governadores e secretários dos distritos administrativos do reino, e seus domínios, em conformidade do que se acha disposto no Título segundo, Capítulo sexto, artigo noventa e dois do Decreto de 18 de Julho próximo passado. Hei por bem decretar o seguinte:
Artigo 1.º: Os governadores civis dos distritos administrativos do reino, e seus domínios, nos dias que não forem de gala na corte, vestirão farda comprida de talho militar, de feitio assertoada, com duas ordens de botões na frente do peito, toda de pano azul ferrete com forro branco, formando o corte da gola um ângulo por diante, botões de metal amarelo com as armas reais, sendo a gola, canhões e portinholas dos bolsos bordadas com duas cercaduras de ramos de carvalho e oliveira, conforme o modelo número um; calças azuis com galão de ouro nas costuras exteriores, botas, chapéu armado [bicórnio] com presilha e borlas de ouro, e faixa de seda azul, com borlas de canotão de ouro. Nos dias de simples gala fica admitido este mesmo uniforme, devendo ser a calça de casimira branca com galão de ouro.
Artigo 2.º: Nos dias de grande gala os governadores civis vestirão farda direita com talho militar, da mesma cor, e com o mesmo bordado e forro que se acha determinado no artigo antecedente, com frente do peito bordada com duas cercaduras de carvalho e oliveira, na forma do modelo número dois; calça de casimira branca, com galão de outro nas costuras exteriores, espada direita com bainha branca e a mesma faixa acima indicada.
Artigo 3.º: Os secretários dos governos civis vestirão farda da mesma cor, talho e feitio, que se acha determinado para os governadores civis no artigo primeiro, sendo a gola e canhões bordados com uma cercadura de ramos de oliveira, e dois ramos semelhantes entre os botões das feições na forma do modelo número três; chapéu de plumas pretas com presilhas de ouro, ficando o resto do fardamento em tudo o mais como o dos governadores civis, excepto a faixa, de que só poderão usar quando interinamente exercerem a autoridade dos referidos governadores, na conformidade do Título segundo, Capítulo primeiro, artigo trinta e oito, parágrafo único do citado Decreto de 18 de Julho último. Este uniforme fica admitido nos dias de grande gala, sendo a calça de casimira branco com galão de ouro, espada direita com bainha branca e chapéu de plumas brancas.
O ministro e secretário de estado dos Negócios do Reino o tenha assim entendido e faça executar. Palácio das Necessidades, em dez de Outubro de mil oitocentos e trinta e cinco. Rainha [D. Maria II]. Rodrigo da Fonseca Magalhães».
[Decreto de 10.10.1835]

«Sendo conveniente que os administradores gerais interinos dos distritos do reino e ilhas adjacentes usem de uniforme em todos os actos públicos a que tenham de concorrer, quer seja em ocasião de mera solenidade, quer seja naquelas em que deva intervir o exercício da sua autoridade como primeiros funcionários públicos nos seus respectivos distritos. Hei por bem ordenar que os referidos administradores gerais e seus secretários possam usar do uniforme adoptado pelo Decreto de dez de Outubro de mil oitocentos e trinta e cinco para os ex-governadores civis e seus secretários até que por uma nova regulação determine qual deva ser o fardamento de que definitivamente devem usar os mesmos administradores gerais e seus subordinados. O secretário de estado dos Negócios do Reino assim o tenha entendido e faça executar. Paço das Necessidades, em treze de Novembro de mil oitocentos e trinta e sete. Rainha [D. Maria II]. Júlio Gomes da Silva Sanches».
[Decreto de 13.11.1837]
Iconografia francesa: Grande ténue de Préfet, in Le Chêne et le Laurier, http://le-chene-et-le-laurier.blogspot.com/2006/11/le-decret-du-10-avril-1873-rtablit.html; idem, http://le-chene-et-laurier.blogspot.com/2009/09/dans-le-cadre-des-journees-du.html.
Citar: AMNunes-Adeus aos préfets. Sem ressentimentos protocolares (1832-2011), http://virtualandmemories.blogspot.com/, 21.12.2011

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