domingo, 4 de dezembro de 2011

Cumprimentos e saudações na cultura oral

À medida que a cultura letrada se impôs sobre os mecanismos de transmissão da cultura tradicional imaterial, os códigos de conduta iletrados foram progressivamente desacreditados ou abandonados. Partia-se do princípio que os seres humanos deveriam abandonar os estilos de vida de pertença para adoptarem padrões de comportamento idealizados que no período anterior à emergência das sociedades democráticas eram apanágio restrito da aristocracia e do alto clero.
O historiador Robert Muchembled estudou demoradamente os processos de perda de importância da cultura popular no século XVIII.
Nas últimas décadas, a UNESCO sancionou referenciais que apontam para a necessidade de adoptar novos olhares sobre o lugar dos paradigmas clássicos e a reabilitação de patrimónios considerados menores: Recomendações para a salvaguarda da cultura tradicional e do folclore (Paris: 15.11.1989); Declaração universal da diversidade cultural (21.11.2001); Convenção para a salvaguarda do património cultural imaterial (Paris: 17.10.2003, em vigor desde 20.4.2006); Convenção sobre a protecção da diversidade das expressões culturais (Paris: 20.10.2005).
O documento de 2005, expressamente orientado para a promoção e respeito pela diversidade cultural, recomenda a estruturação de políticas culturais tendo por base um conjunto de oito princípios:

· respeito pelos direitos humanos
· respeito pela soberania dos estados
· igualdade e respeito pelas diferentes manifestações culturais, condenando-se a ideia enraizada de culturas superiores e inferiores
· solidariedade e cooperação internacionais
· complementaridade entre patrimónios culturais e projectos económicos
· desenvolvimento sustentável
· acesso equitativo aos bens
· abertura e equilíbrio.

Os cumprimentos privados e públicos são tradicionalmente feitos com recurso a gestos e falas. Para cumprimentar, visitar e permanecer junto de autoridade, era obrigatório descobrir-se ou desbarretar-se. Nas grandes solenidades da Universidade de Salamanca, a que concorria o rei, o cortejo era feito com as cabeças cobertas, mas a entrada da comitiva real na sala por entre alas obrigava a ter a cabeça descoberta. Competia ao rei dizer“Doutores de Salamanca, sentai-vos e cobri-vos”. Idêntica regra era observada na Universidade de Coimbra. Nos tribunais portugueses os advogados saudavam no início e no fim com a cabeça descoberta mas discursavam com o barrete na cabeça. Nas universidades históricas, os professores cumprimentavam no início e no fim com a cabeça descoberta mas davam a lição com o barrete doutoral posto.
Quando os membros masculinos das comunidades tradicionais passavam em frente de uma autoridade ou de um sacrário de igreja descobriam-se completamente, guardando o chapéu na mão. No tempo da cartola, levava-se a mão à aba e o portador erguia levemente o chapéu, fazendo ligeiro aceno de cabeça.
Desbarretar-se ou descobrir-se profundamente significava retirar o chapéu com a mão direita, descair o braço ao longo do corpo, levar a mão atrás das costas, flectir a perna e fazer uma reverência (com o fundo do chapéu voltado para dentro).
Embora estejam caídas os desuso as coberturas de cabeça masculinas, a antiga regra de desbarretamento mantém-se nas igrejas, salões, auditórios, repartições públicas, tribunais, escolas.
Deste preceito estão dispensadas as mulheres que podem usar coberturas de cabeça ante a autoridade e em espaços cobertos.
Fora da quadra carnavalesca estão proibidas por lei as máscaras, rebuços e capuzes que causem obstáculo à identificação dos cidadãos ou alimentem ambientes propícios à delinquência.
Ao entrar numa casa rural, o visitante descobria a cabeça. Uma vez no interior, e por cortesia, o dono dava-lhe indicações para ficar à vontade: “Cubra-se”, “Nada de cerimónias”,“Não faça cerimónia”, “Aqui não há santos”, “Ponha o chapéu”.
Também era de tradição entrar-se nos palácios, templos e casas abastadas calçado. Tradicionalmente os camponeses e as camponesas andavam descalços. Quando entravam num espaço reservado ou de certa importância tiravam as tamancas, socas e galochas de sola de pau, ficando em meias ou entrando descalços. Acontecia no norte de Portugal, Baião e Mondim da Beira.
Na década de 1990 ainda se via em condomínios urbanos inquilinos que deixavam os sapatos na porta de entrada e obrigavam as visitas a descalçar-se (o que é indesculpável descortesia).
Até á década de 1970, nos meios rurais, os filhos e afilhados tratavam os pais, mães, avós e padrinhos por Senhor/Senhora e deveriam pedir-lhe diariamente a bênção:

“Senhor meu pai, peço a sua bênção”.
Pelo antigos costumes, o pedir a bênção implicava uma resposta do pai, mãe, avós, padrinhos:

“Deus te abençoe”/”Deus te faça santo!”

O pedido de benção deveria ser feito com beija mão. Na sua fase final, o peticionário limitava-se a dar um beijo na ponta dos dedos da sua própria mão. Quando o pedido era feito por crianças com menos de sete anos, os adultos respondiam afavelmente e colocavam a mão direita aberta sobre a cabeça dos petizes, numa clara invocação dos dons do Espírito Santo.
Cumprimentar era designado por dar os bons dias, dar a salvação. Os passantes poderiam dizer: “Haja saúde”,“Deus te salve”, “Bons dias”, “Seja Deus convosco e vos mantenha”, “Tenha vossa mercê muito boas tardes”, “Salve Deus a vossemecês”, “Deus lhe dê muito boas noites”, “Deus o salve irmão”, “Deus lhe dê muita saúde”.
As respostas também variavam consoante as comunidades: “Ambos venhais em boa hora”, “A mesma convosco venha”, Tenha vossa mercê as mesmas”, “Louvado seja Deus Nosso Senhor Jesus Cristo”, “Para sempre seja louvado, no céu e na terra, Nossa Mãe Maria Santíssima”, “Vá com Deus”, “Vá com o Senhor e a Virgem Maria”.
Formas mais pessoalizadas de cumprimentar e responder:

“O senhor passou bem?”
“Bem, e como passou?”
“Muito bem, muito obrigado”!

“A família está toda boa”
“Não tem dúvida”!

“Como tem passado?”
“Vai-se vivendo com alguma coisa que se vai comendo”.

Ou
“Menos mal, graças a Deus”.
Algumas fórmulas de saudação regional eram bastante curiosas. Por exemplo, em Paços de Ferreira, os dizeres dependiam das horas do dia: “Bons dias” (do alvorecer até às 10h); “Boas sestas”(10h-14h); “Boas tardes” (14h até ao escurecer); “Boas noites”.
No Porto e arredores:
"Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”
“E os maus quebrados sejam”.

Nas terras de Miranda do Douro:
“Como bai?”
“Bamos indo, e el?”.

Em Mangualde:
“Benza Deus tudo!”
“Antes da Páscoa vem o Entrudo!”

Em Lisboa:
“Como está? Está bonzinho e todos os seus?”
“Muito bem, muito obrigado!”

No Algarve:
“Como passou?”/”Como está você?”/”Como vai essa bizarraria?”
“Vaia com Deus”/”Deus lhe dê saúde”/”Ditosos olhos que o vêm”.

Para chamar à porta das casas usava-se “Ó de dentro”, “Ó da casa”, entre outras fórmulas conhecidas e batiam-se três pancadas com os nós dos dedos ou com a palma da mão.
De dentro respondiam: “Quem está aí?”, “Quem é?”, seguido de “Entre”, “Entrem”, “Entrai” (Beira alta e norte), ou “Venha com Deus”.

Nas despedidas:
“Até logo”, “Até depois”, “Até amanhã”, “Adeus”, “Adeusinho”, “Até mais ver”, “Até amanhã se Deus quiser”(cortesia usada no fecho das emissões de rádio e tv até à década de 1980 pelo menos), “Até à vista”.
Também se davam despedidas no momento de ir dormir: “Até amanhã”, “Até amanhã, se Deus quiser”, “Uma noite feliz”, “Passe bem a noite”, “Deus lhe dê uma noite descansada” (Mértola). No Algarve usava-se a antiga fórmula régia do ir tomar ordens:

“Dê-me as suas ordens! Até á vista!”
“Vá na graça de Deus”, “Vá na paz do Senhor”, “Até mais sempre” (Monchique), “Deus o guie”, “Vá na graça de Deus”.

No envio de recomendações:
“Dê cumprimentos a…”, “Leve recado a…”
“Serão dadas e estimadas”(Alentejo).

Citar: AMNunes, Cumprimentos e saudações na cultura oral, http://virtualandmemories.blogspot.com, 4.12.2011

1 Comentários:

Blogger Guta Gucci disse...

Muito legal!

17 de setembro de 2012 às 13:59  

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