domingo, 5 de fevereiro de 2012

Património académico: abatina/hábito talar unissexo da Univ. de Coimbra, vista de frente
Acervo do Museu Nacional de Etnologia, Lisboa, n.º de Inv. AZ 475, disponível em http://www.matriznet.ipmuseus.pt/. Discordância quanto à "supercategoria", sendo de substituir "etnologia" por indumentária profissional/alfaitaria artesanal. Acusando a arbitrariedade dos usos da taxononomia, noutros museus da rede pública portuguesa o campo multinível "supercategoria" vem designado por "arte", quando o objecto transversal continua a ser a indumentária. Necessidade de precisar com mais rigor a cronologia: século XX, e mais concretamente 1953, para a data em que o alfaiate conmimbricense Pinto de Figueiredo entregou o trabalho ao Prof. Jorge Dias. Quanto às dimensões, repete-se o que já foi escrito para a capa que integra este conjunto: na abatina tiram-se as medidas de altura(s) na frente (da base do colarinho à bainha inferior, da base posterior do colarinho ao rebordo da bainha nas costas, lateralmente, do rebordo inferior do sovaco à base da bainha); mede-se a cintura; mede-se o peito, tendo sempre em consideração no tirar das medidas torax feminino e torax masculino e previsão de aumento de peso; mede-se o perímetro do pescoço para as medidas do colarinho; mede-se e talha-se em separado o colarinho (altura, comprimento). Medem-se as mangas tendo em conta comprimento máximo, perímetro de boca e perímetro da cava. Se a manga é de balão ou afunilada, mensuram-se separadamente as diversas partes constitutivas.
Não se sufraga a "descrição" nem o vocabulário empregue. Trata-se da abatina, batina curta, abito privato, habit de la maison, traje de abate, clerical frock coat, tornada moda nas cortes de Inglaterra e da França por volta de 1660. Nunca foi traje de gala embora tenha sido usada por clérigos e académicos em universidades, academias científico-lietrárias, paços episcopais e reais, bem como na corte papal. São conhecidas três variantes deste traje que esteve em uso até inícios do século XX nos países católicos e anglicanos:

-modelo europeu composto por abatina de seda fechada na frente, colete abotoado até ao pescoço, capa curta (ferraioleto), calções, meias altas, sapatos de fivela e chapéu de época em feltro (tricórnio, capello romano). Este modelo podia ser avivado no forro, botões, orlas e caseado na cor da dignidade esclesiástica do portador (vermelho para cardeais, rosa seco para arcebispos e bispos, amarante para monsenhores e cónegos);
-modelo anglo-saxónico com a abatina de carcela aberta, sotaina assertoada, calções, meias altas, sapatos de fivela, sem capa, predominando o tricórnio de feltro (séc. XVIII) e a cartola com a aba ligada à copa por presilhas de seda (sécs. XIX-XX);
-modelo Universidade de Coimbra, com a abatina de carcela fechada e capa talar.

A abatina chegou à corte portuguesa na época de D. Pedro II e rapidamente se difundiu entre o clero urbano. Ribeiro Sanches, estudante da Universidade de Coimbra por alturas de 1716-1718, diz que a viu chegar de Lisboa às lojas de vestuário do largo da Portagem, conjuntamente com perfumes, sinaizinhos postiços, cabeleiras, bengalinhas e meias finas. Sensivelmente na mesma conjuntura o dicionarista Rafael Bluteau descreve as caraterísticas da abatina, ficando muito clara a diferença face à loba de dois corpos, à sotaina ordinária e à beca talar ou garnacha. A abatina ganha adeptos entre os alunos e professores da Universidade de Coimbra sem que chegue a haver um ato institucional de aprovação do modelo ou um edital onde se diga que é aceite em pé de igualdade com a veste histórica consagrada nos estatutos. Antes dos estudantes e docentes progressistas da Universidade de Coimbra exaltarem a abatina, o que só acontece entre o primeiro liberalismo constitucional e a regeneração, uma outra instituição portuguesa de ensino e formação consagrou oficialmente a abatina nos seus estatutos como um dos dois trajes corporativos dos seus alunos. Refiro-me ao Real Colégio dos Nobres, com sede em Lisboa, criado pela Carta de Lei de 7.3.1761 e extinto pelo Decreto de 4.1.1837. Solenemente aberto em 19.3.1766, prescreviam os estatutos de 7.3.1761 no Título IV dois trajes institucionais para uso interno e externo:

1) para uso dos colegiais e reitores nos corredores, salões, salas de aula, laboratórios, refeitório, a garnacha preta. Era a beca de dois corpos, tradicionalmente usada pelos juizes letrados portugueses (nunca se associou esta experiência da beca do Colégio dos Nobres à tradição vestimentária judiciária instituída na década de 1850 pelas escolas médico-cirúrgicas de Lisboa e do Porto);
2) a abatina com capa curta ou comprida para os colegiais filhos segundos e terceiros da fidalguia (os primogénitos podiam sair em grande casaca ou habit de cour);
3) nas aulas práticas de ginástica, esgrima e equitação a garnacha era substituída por vestuário funcional.

A abatina identificada na ficha de inventário é de confecção inteiramente artesanal. Veste constituída por dois panos dianteiros inteiriços, unidos superiormente a colarinho, mangas e costas por meio de costuras de máquina. Integralmente forrada de cetim preto, exceto no pano das mangas que é em branco listado. Apresenta carcela frontal fingida, com sistema de fecho à base de cinco casas e cinco botões de massa. Dois bolsos metidos nas ancas, com fundilhos de pano e portinholas retangulares singelas. Bolsinho inserido sobre o peito esquerdo, sem portinhola. Duas mangas tubulares unidas às cavas dos ombros, estreitando ligeiramente na direção dos punhos, sem canhão, com carcela de três botões de massa na linha exterior do pulso. Colarinho raso, fechando no decote com colchete metálico. Parte superior das costas talhada em dois panos cortados e costurados na linha da cintura. Cintura cintada. Parte inferior posterior formada por duas abas cindidas a meio por racha (nalguns casos podia fixar com botõezinhos) e duas pregas ladeantes encimadas por botãozinho de massa. Bolsos interiores metidos no forro conforme gosto do cliente. Nos modelos antigos, era comum este tipo de vestes profissionais ostentarem não a etiqueta do alfaiate mas o nome do proprietário bordado em linha de cor. Era prática comum nas instituições que tinham vestiário como seminários, colégios, universidades e tribunais. Embainhamento inferior por baixo da linha do joelho.
Confeccionada com grande aprumo técnico, não se trata de uma veste de gala, conforme atestam o pano de lã, os vulgares botões de massa, a ausência de carcela ornamental e a inexistência de orlas no colarinho e bainhas. Corte geométrico acentuado, acusando influência do "rational dress" e da uniformologia militar campeante entre a segunda metade do século XIX e a Grande Guerra, com prejuízo da harmonização anatómica e do impato estético.
Objetos associados: no Museu Bernardino Machado, sito em VNFamalicão, existe uma abatina de seda confecionada no século XIX que pertenceu a Bernardino Machado.

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