domingo, 24 de junho de 2012

Lisboa, 1928: o patriarca de Lisboa, D. António Mendes Belo, sentado com o núncio apostólico, Mr. Beda Cardinalle
Predomina a diversidade vestimentária no conjunto. O núncio veste o hábito piano romano aprovado por Pio IX em 7.1.1851 como traje próprio para ir às audiências papais. Trata-se de uma sotaina de confecção caprichada, a que os alfaiates romanos chamam zimarra (samarra ou chamarra é que ela não é morfologicamente, mas adiante), com a manga muito trabalhada ao nível do canhão e da sobremanga, romeira de ombros e colarinho alto (uns 3cm), avivada e toda debruada nas bainhas, que completa com o mantéu de grande gala em seda (antes de 1870 o ferraiollone, depois desta data um mantéu com menos pano, conhecido por ferraiollo).
Junto do núncio, o patriarca Mendes Belo veste modestamente a sua batina de seda, trazendo pelos ombros uma romeira. De pé, em primeiro plano, um padre com sotaina preta talar, tradicionalmente conhecida por sotaina ordinária. É uma veste inteiriça, de três panos de lã costurados na vertical, que leva dois bolsos nas ilhargas, carcela dianteira e duas mangas unidas às cavas dos ombros. As mangas afunilam na direção dos punhos e não levam ornato algum (nem canhão, nem sobremanga). A carcela abre diretamente sobre o pano dianteiro esquerdo, com caseado manual e botõezinhos de chifre, crina ou mesmo cerzidos a agulha. Na parte posterior forma um saio, sem costura horizontal, com três machos. Não tem colarinho, ou então o colarinho é muito baixo (ca. 1cm de altura). Diferentemente da batina romana, não tem os dois cordões metidos entre a cintura e o sovaco que servem para não deixar a faixa escorregar [sendo eu aprendiz do tema, o cónego Brito Cardoso, que estudou em Roma, sempre vincou muito fortemente esta diferença entre a batina romana e a antiga sotaina portuguesa].
Imediatamente ao lado vemos outro clérigo com batina e viatório. O viatório é um casacão preto comprido, de costas lisas e abotoadura assertoada que surgiu em França na década de 1850. Popularizou-se em Roma a partir de 1870 e passou a ser regularmente usado pelo papa e pelos cardeais que se sentiam intimidados com a unificação italiana e com o processo de descristianização. Não é nem nunca foi considerado um abafo de gala. Nunca foi autorizado nas audiências papais. Pode substituir a capa de inverno (capote ou tabarro, em Espanha chamado "capa espanhola") mas nunca o ferraiollo. O seu nome original é "douillete", chamando-lhe os espanhóis duletta. O viatório pode ser avivado na cor própria de cada dignidade, sendo o dos papas integralmente branco. Pormenor curioso, muitas fotografias de viatórios confirmam a gola de veludo preto, uma inventona não autorizada pois o pano de veludo é privativo dos pontífices.
A terceira figura de pé veste a chamada zimarra romana, uma sotaina muito melhorada na qualidade dos acabamentos, com a típica manga trabalhada ao nível do canhão e da sobremanga. Falta-lhe a romeira de ombros. Como já foi explicitado, só na década de 1850 é que esta veste foi autorizada no palácio apostólico, tendo-se popularizado rapidamente, a ponto de quase ter feito desaparecer na Europa continental a variedade de sotainas ordinárias usadas conforme os costumes nacionais [características predominantes: a) as sotainas eram de vestir pela cabeça, modelo generalizado nas congregações masculinas, incluindo a Companhia de Jesus e os Passionistas, donde darmos por inaceitável a chamada "batina ambrosiana" ou "batina à moda de Milão"; b) as sotainas tinham as costas lisas, ao contrário da batina de coro e da chamada zimarra romana que levam saio posterior de três machos; c) as sotainas que não se vestiam pela cabeça tinham carcela assertoada, como as gregas, as inglesas e a variante portuguesa que se vestia sob a garnacha dos desembargadores; d) as sotainas eram geralmente de feitio trapezoidal, alargando do pescocoço para as pernas; e) as sotainas não tinham colarinho, embora a veste de algumas congregações masculinas pudesse ostentar uma tirinha de pano com os rebordos revirados para o exterior (vide a sotaina dos jesuitas); f) as sotainas não tinham cauda rastejante; g) na variante francesa, a sotaina era muito justinha ao corpo nos braços, costas e tronco, sendo necessário alargar costuras ou mandar fazer uma nova quando os detentores começavam a ganhar peso; h) em contextos cerimoniais as sotainas era recobertas com grandes capas e sobrevestes com e sem mangas, conhecidas por togas, garnachas, sopranas, mantellones].
Na quarta figura de pé, vê-se muito nitidamente o conjunto batina e romeira. Há dúvidas quanto à origem deste abafo inicialmente usado em contextos domésticos. O muito seguro e bem informado protonário apostólico Montault (Le costume, 1898) informa que a romeira tem origem francesa e que a viu nascer sendo seminarista em 1850 em Saint-Sulpice (Paris). Os franceses chama-lhe "pélerine". Tudo parece estar muito certo na argumentação de Montault, não foram dois pormenores expressivos: 1) retrato a óleo do padre Antonio Rosmini (1797-1855) existente na Pinacoteca de Brera, Milão, possivelmente da década de 1840, que figura claramente a zimarra e a romeira curtinha e cortada de viés; 2) retrato do reitor do Colégio dos Ingleses em Roma, Nicholas Viseman, que governou a casa entre 1828-1840, mais tarde cardeal de Westminster, envergando zimarra e romeira. Ergo, a romeira parece ter surgido nos seminários católicos estabelecidos na cidade de Roma pelas décadas de 1830-1840 como hábito doméstico. No caso dos seminaristas exprimia a sua subordinação aos professores e reitores.
No fim da fila, um clérigo com hábito composto por batina e capa talar romana talhada no mesmo feitio do ferraiollo. Para os alfaiates romanos, um ferraiolo bem feito era talhado numa única peça de lã ou seda.
Fonte: Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa, PT/AMLSB/EFC/000589

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