domingo, 19 de agosto de 2012

[2] O Milenário de Hipócrates
Foto-reportagem do corso alegórico realizado pelos estudantes da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa em 8 de março de 1899.
Iniciativa de cariz parodístico não teve seguimento na EMCL nem nas escolas que a partir de 1911 integraram a Universidade de Lisboa. Antecedeu os festejos do Centenário da Sebenta que tiveram lugar na Universidade de Coimbra nesse mesmo ano e que são erradamente considerados a origem da Queima das Fitas*, uma festa de celebração do fim de ano dos cursos jurídicos e teológicos que em 1894 já era considerada "tradicional" nalguns relatos de imprensa local.
Fica bem patente na estrutura organizativa e na narrativa plástica e discursiva do Milenário o  arremedo aos seguintes eventos:

a) aos diversos congressos científicos que tinham vindo a fazer moda nos países ocidentais (marítimos, pedagógicos, de medicina, de jornalistas, de comerciantes, penitenciários), cujas sessões solenes de abertura são parodiadas;
b) aos corsos religiosos de quadros vivos, de forte impregnação em Portugal e em Espanha, nomeadamente a procissão do Corpo de Deus;
c) aos cortejos carnavalescos de julgamento de um bode expiatório comunitário, com ampla radicação popular em Portugal, Espanha, Brasil, Bélgica, França e Itália, que integravam corso burlesco, eventual julgamento e aplicação de uma pena que se podia traduzir em fuzilamento, serração ou queima (do Judas, do Bacalhau, da Velha, do João, do Ano Escolar, das fitas dos estudantes). Esta modalidade de festa popular, mesmo quando não contém todos os números do "programa", corresponde ao paradigma mais ancentral das festas realizadas no final do ano escolar pelos estudantes da Universidade de Coimbra com recurso a designações como "soiças", "festa do ponto", "festa das latas", "tourada", "pega de rabo". Daí que não seja possível datar com segurança quando começa uma festa e acaba outra, à luz de formas de organização orais e espontaneas que de ano para ano introduziam modificações e modas que à época eram bem aceites. Por exemplo, na espinha dorsal da Queima das Fitas de Coimbra podemos acompanhar permanências de números do programa da Festa do Ponto/Festa das Latas, cuja latada dos caloiros só acaba definitivamente em 1935. Este tipo de festa, de matriz arcaizante e popular é de alguma forma apropriado e adaptado a partir da década de 1890 por vários liceus portugueses que passam a sublinhar o encerro do ano escolar com o "enterro da gata" (Braga)/"enterro da bicha" (Ponta Delgada)/"festa do galo" (Beja), animal que simboliza o esconjuro da raposa (=reprovação do ano). Um dos liceus que não adere aos enterros é o do Guimarães, que pouco após a sua instalação se apropria de uma antiga festividade local, as Nicolinas. Neste caso específico, a festa estudantil tem lugar no mês de Dezembro e o programa mantém uma estrutura arcaica quinhentista/seiscentista que era comum ao modelo de festividades promovidas pelas câmaras municipais (ex: festas de S. João Batista). No abrir do século XX os estudantes da Universidade de Liège também preferirão festejar o São Nicolau dos Estudantes, pese embora inventando para fim do ano escolar a Saintoré.
d) os recentes e mediáticos centenários e milenários concebidos por comissões de notáveis para evocar heróis, poetas, missionários e navegadores. Os centenários, de cariz profano, apresentavam uma estrutura programática sedutora (abertura solene, sessão de homenagem, cortejo alegórico, banquete, parada naval/fluvial,teatro/sarau, inauguração de rua ou estátua) e deram origem a uma economia de souvenirs kitshs exponenciados pelo comércio: lenços, pratos, postais, selos, cartazes, caixas de biscoitos.
Fonte: Brasil-Portugal n.º 4, de 16.3.1899
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* Algumas das lendas e rumores circulantes sobre a Queima das Fitas de Coimbra e a Queima das Fitas do Porto foram discutidas (e rebatidas) por João Caramalho Domingues, "Quando foi a primeira Queima das Fitas?", In Porto Académico, postagem de 24.2.2011, http://portoacademico.blogspot.com.pt/2011/02/quando-foi-primeira-queima-das-fitas.html.

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