quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Património vestimentário talar: sotaina de São Vicente de Paulo (1581-1660), acervo da congregação, Paris/Turim (St. Vicent de Paul-Image Archive).
Sotaina talar de corpo único em sarja de lã, de manufactura grosseira. Corte trapezoidal, muito acentuado dos braços para a bainha inferior. Pano das costas inteiriço (1, 46 m de altura) e totalmente liso, ao contrário das batinas talares que comportam elementos morfológicos como cós/saio/3 machos/ou 1 macho central e 2 pregas laterais). Dois rasgos verticais, dipostos lateralmente, para a passagem das mãos (algibeiras falsas). Colarinho raso, com cerca de 5 cm de altura, de corte irregular. Carcela curta, disposta sobre o peito, com oito casas e pequenos botões de madeira revestidos [esta é uma das principais distinções morfológicas entre a antiga sotaina e a batina. Até meados do século XVIII a sotaina vestia-se pela cabeça e não tinha carcela até aos pés, elemento que é próprio da batina]. Mangas tubulares, de corte encurvado, a estreitar do cotovelo para o punho, sem canhão, mas levando longa carcela de 9 botõezinhos forrados entre o punho e o cotovelo.
A sotaina ordinária, que nos dicionários e enciclopédias vem erradamente confundida com a batina, foi até ao século XVIII a veste mais generalizada entre o clero secular, os universitários, os jurisconsultos e os membros de institutos religiosos masculinos que foram surgindo na Europa desde a Contra-Reforma. Nem todas as sotainas eram de enfiar pela cabeça, sendo conhecidas variantes assertoadas para a direita e para a esquerda. Agora, o que era comum a todas estas variantes era a sua confeção simples (ao contrário da uniformização e rigidificação de linhas da batina romana, que teve de esperar pela máquina de costura) e o facto de serem vestidas por baixo de mantos, mantéus e até casacões à francesa no século XIX.
Este modelo de sotaina é, com insignificantes variantes, o mesmo que se observava em Itália, Espanha, França e Portugal:
-na veste talar dos jesuitas, conhecida por roupeta, de confeção singela, que se vestia pela cabeça e apertava com um cinto;
-na veste dos oratonianos italianos, cuja carcela vinha até à cintura;
-na veste dos somascos italianos, cuja carcela não tinha botões;
-na veste dos barnabitas, munida de pequena carcela peitoral sem botões;
-na veste dos padres da doutrina cristã;
-na veste dos clérigos regulares do serviço de doentes (São Camilo de Lelis);
-na veste dos clérigos regulares das escolas pias (carcelinha de 3 botões e meia capa de lã como os passionistas);
-na veste dos passionistas, com pequena carcela ligeiramente deslocada para a banda direita do externo.
Um dos maiores problemas para quem cai na tolice de quebrar a cabeça com o património indumentário eclesiástico anterior ao século XIX é a escassez de desenhos nítidos/pormenorizados (em geral gravuras e não moldes de alfaiate) e a inexistência de descrições detalhadas. Por influência da uniformologia militar, a partir do século XIX a maior parte dos regulamentos e estatutos das mais diversas instituições fornece abundantes pormenores sobre o feitio, cores, padrões texteis, dimensões, bolsos, vivos que um uniforme/veste profissional deve comportar. Anteriormente ao século XIX, a documentação eclesiástica e universitária limita-se a enunciar as cores "defesas" (=proibidas) e a dizer o nome da veste talar. Nada se adianta sobre o número de peças, o feitio e as dimensões, atitude própria do racionalismo dos séculos XIX e XX. Para baralhar ainda mais, o que se escreve é que as vestes devem estar em sintonia com o que é costume usar-se numa determinada época. Assim falam as constituições sinodais e os estatutos universitários portugueses e espanhóis. À medida que se vai progredindo na investigação, rapidamente se percebe que não havia uma veste uniformizada ou padronizada. O que havia era uma veste talar com variantes e todas essas variantes eram aceites como legítimas desde que o seu portador respeitasse o decoro e as normas de civilidade. Em vez de um uniforme constituído por X peças, predominava nos meios eclesiástico, judiciário e universitário o conceito de enxoval. Enxoval significava o guarda-roupa composto por vestes, calçado e adereços. Essas vestes subdividiam-se em 6 categorias principais:

1) domésticas ou ordinárias (com especificidades para o coro);
2) hábito de rua (tenue de ville), correspondendo ao traje campesino domingueiro ou de ver a Deus;
3) de cerimónia ou de gala;
4) de Verão, em tecidos leves;
5) de Inverno, em tecidos pesados e encorpados;
6) de viagem, de confeção funcional e corte prático.

Entre o clero regular, certas instituições também subdiviam os trajes regulamentados em: hábito de noviço, pequeno hábito (trabalho) e grande hábito (cerimónia).

2 Comentários:

Blogger Sofia Lapa disse...

Boa noite. Li com muito interesse o seu texto sobre as vestes sacerdotais. Presentemente, procuro desenvolver uma pesquisa especificamente sobre o vestuário funerário dos padres, i.e., com que veste se sepultam os padres, interessando-me sobretudo aquela que seria a prática nos séculos XVII e XVIII, em Portugal. Grata desde já.

4 de dezembro de 2019 às 12:24  
Anonymous Anónimo disse...

Não sei exatamente qual era o costume português, mas na Sicília, como podemos ver nas “múmias” de Gangi, que abrangem os séculos XVII a XIX se não me falha a memória, a maioria dos sacerdotes está vestida com sotaina ou batina, sobrepeliz, e estola roxa, o que é diferente do costume universal hoje de se sepultar o sacerdote todo paramentado.

14 de janeiro de 2023 às 07:02  

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