segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O hábito talar e as insígnias de Bernardino Machado (cont.)
Percursos do Hábito Talar em Coimbra

Docentes e alunos da UC acompanharam e seguiram de perto o debate internacional sobre a questão dos trajes académicos e insígnias num registo descristianizador. Os moderados não se sentiam confortáveis com a diversas vezes proclamada semelhança entre os trajes e insígnias de Coimbra e os trajes e insígnias dos dignitários do clero secular romano. Os alvitristas radicais viam nestes trajes e insígnias um sinal eloquente de ultramontanismo, obscurantismo, jesuitismo e de sobrevivência da estética barroca, pugnando pelo seu abolicionismo radical.
Para evitarmos o logro de uma visão distorcida e romântica, assente no mito de um corpo estudantil cultural e ideologicamente coeso, importa desde logo desconfiar do mito recorrente da Academia imaginada interna e exogenamente . Ao longo do século XIX a UC é escassamente povoada de estudantes e docentes. Para o ano lectivo de 1880-1881 Manuel Carvalho Prata menciona 573 alunos . Destas escassas centenas anuais, quantos estudantes eram efectivamente revolucionários e quantos assumiam de modo radical e coerente a reclamação da abolição do uniforme académico e das cerimónias da UC? Confirmando a origem sociológica dos alunos matriculados a partir de 1880, os agentes seriam sobretudo filhos-família ligados ao funcionalismo público e a profissões liberais e não filhos de “proprietários”, “lavradores”, “artesãos” ou “serviçais. Ou seja, pequenos grupos efemeramente constituídos, detentores de capital cultural, meios de subsistência, capacidade de organização e de afirmação através de ritos contra-culturais e da palavra opiniática na comunicação social impressa.
Os hábitos talares e insígnias das universidades francesas haviam sido abolidos pela Revolução de 1789 e sujeitos a um processo de reforma homogenizadora na época napoleónica. Nos países escandinavos, as universidades e os tribunais tinham abandonado os trajes profissionais. O hábito talar clerical fora declarado abolido pela Assembleia Nacional francesa em 6.04.1792. O artigo 41º da Concordata Francesa de 1801 regulou o porte do hábito talar, impondo que apenas pudesse ser usado nas cerimónias cultuais. Para as demais situações, o clero ficava obrigado pelo Estado ao uso do “traje preto à francesa”, ou seja, uma casaca preta abotoada na frente, bem conhecida pelo clero francês e inglês desde finais do século XVII.
Vejamos de que forma em Coimbra os valores tributários do abolicionismo e da dessacralização da universidade se reflectiram na progressiva metamorfose dos uniformes académicos. Como foi possível operar internamente a desacreditação das antigas vestes talares e substitui-las pela casaca burguesa dos industriais, banqueiros, homens de negócios, políticos de carreira, profissionais liberais urbanos, cocheiros e porteiros de hotel?
O processo de desacreditação do antigo hábito talar inicia-se com a Revolução Liberal de 1820, conhece momentos de grande tensão na transição da década de 1850 para os anos de 1860, para viver o resto de oitocentos encurralado entre provocações e actos de diminuição patrimonial.
Os protagonistas dos sucessivos atentados patrimoniais foram benevolamente lidos e celebrados como heróis românticos em luta contra o obscurantismo e a arbitrariedade, no mínimo olhados como adolescentes impertinentes e inimputáveis. Fechado o ciclo do abolicionismo vestimentário é crucial questionar as vulnerabilidades e perversões deste tipo de discurso autosuficiente e coimbrocêntrico .
Em primeiro lugar, importa distinguir actos juvenis subversivos de actos predatórios de diminuição do valor de um bem cultural ou de aniquilação de um bem cultural. Os segundos nada têm de heróico, progressista ou vanguardista, urgindo problematizar o registo de indulgência e de inimputabilidade com que foram lidos por certas elites locais.
Em segundo lugar, o questionamento de algumas incongruências nunca satisfatoriamente explicadas revela continuadamente protagonistas de discursos radicalizados intra-muros que noutros contextos assumiram atitudes contrárias. O contestatário juvenil conimbricense é não raro um futuro profissional que assume passivamente a toga de advogado e os rituais de Ordem dos Advogados, a beca de magistrado, o uniforme militar e a farda de diplomata, contemporiza com os costumes da sua terra de origem (casamento, baptismos, sistemas de apadrinhamento e escolhas de nomes de filhos), assume os símbolos e as representações culturais de um determinado clube de futebol, não lhe repugnando uma entronização numa confraria gastronómica ou o uso do traje e insígnias conimbricenses em estabelecimento de ensino onde tenha sido convidado a trabalhar. E no espectro cultural e ideológico assinalado não será raro encontrar alvitristas que consideram reaccionário o uso de traje e insígnias, ou mesmo o estudo da temática, enquanto se empenham com afinco em causas de fauna, flora e ambiente aqui e ali marcadas por fanatismos ou neotribalismos nem sempre assumidos. Por último, mas não menos importante, no período quente do ateísmo militante, o jovem estudante de Coimbra que se afirmava publicamente ateu casava esmagadoramente com noivas católicas da província, pelo que, além do casamento entre ateu e católica, a futura mãe fazia baptizar e educar catolicamente os filhos sem que o esposo se afirmasse melindrado com este estado de coisas.
O resultado directo de todo este processo saldou-se na aniquilação e esquecimento de um traje usado na instituição ao longo de quatro séculos e meio cujo rasto se perdeu. Após mais de vinte anos de recolhas e análises comparativas torna-se possível não só reconstituir a “loba dos doutores” com sólida fundamentação, como restitui-la ao seu devido lugar no museu da memória. E o seu lugar é junto de vestes profissionais portadoras de grande dignidade estética e carga simbólica como a beca judiciária portuguesa, a toga de advogado e as vestes talares de gala de universidades britânicas como Oxford .
Em finais do século XIX um perito na matéria, José Ramalho Ortigão (1836-1915), aproveitou uma crónica satírica para denunciar os sucessivos actos de degradação patrimonial ao hábito talar praticados no interior da UC . Esta é aliás uma característica dos discursos que visaram erradicar a identidade visual e simbólica da UC. Na sua maioria germinaram no seio da própria instituição e foram levados ao extremo por alunos ou antigos alunos. Mesmo no auge dos momentos persecuórios pós-1910 os líderes iconoclastas mais activos e com efectiva capacidade de actuação são antigos estudantes que “ajustam contas” com a sua Alma Mater.
Ramalho Ortigão não se dizia apenas chocado por constatar que os estudantes e lentes pró-abolicionistas tinham colocado o hábito talar em situação de inferioridade quando comparado com as vestes do clero secular e regular, dos juízes e dos advogados. Bom conhecedor dos trajes populares provinciais portugueses, parecia-lhe inaceitável que os estudantes exibissem uma vestimenta inferior em talhe e padrão têxtil a certos trajes populares domingueiros masculinos e femininos. Chegara-se a uma situação em que um comerciante de gados das terras do Baixo Mondego com o seu gabão preto de luxo deitado pelos ombros era mais do que o conjunto casaca/capa envergado pelos estudantes. E isto Ramalho Ortigão não compreendia, no que era secundado por estudantes clérigos, aristocratas e filhos de gentes do povo que conseguiam matricular-se na UC.

No término do século XVIII, por 1797-1799, o viajante Heinrich Link registou que os lentes e estudantes de Coimbra envergavam uma sotaina comprida, sem mangas, de apertar nas costas com atilhos, comportando na dianteira duas fiadas fingidas de botõezinhos (loba cerrada). Por cima desta peça, viam-se uma chamarra longa, munida de mangas de boqueirão, semelhante à dos pastores protestantes, um mantéu talar e um gorro de tipo travesseiro .
A descrição de Link é parcialmente verdadeira. Em bom rigor, deixa a falsa impressão da existência de um modelo de traje padronizado que ainda não se tinha generalizado em toda a UC.
O traje dos lentes variava muito em cores e configurações, conforme estes fossem lentes laicos, membros do clero secular ou pertencessem às ordens regulares que em Coimbra habitavam perto de vinte colégios. Não podendo vislumbrar a antiga roupeta, capa e barrete dos jesuítas que haviam titulado o Colégio de Jesus e o Real Colégio das Artes Liberais, não deixa de causar estranheza que Link não tenha avistado estudantes e lentes com trajes talares franciscanos, beneditinos, jerónimos, carmelitas, dominicanos, trinitários , agostinhos, dos cónegos regulares de São João Evangelista (lóios), ou das ordens militares de Cristo e de Avis/S. Tiago da Espada.
Os membros dos referidos colégios calcorreavam diariamente as ruas da Alta, frequentavam aulas, dinamizavam procissões e participavam no cerimonial universitário.
Definitivamente pouco observador, Link também não viu os lentes e estudantes do Colégio Pontifício de São Pedro, nem os do Colégio Real de São Paulo-o-Apóstolo. Os porcionistas do Pontifício Colégio de São Pedro usavam um hábito vistoso, composto por loba castanha de mangas estreitas, de enfiar pela cabeça, com a bainha pelo joelho ; sobre esta, a beca, sem mangas, cor-de-rosa, cintada com uma faixa de seda da mesma cor; por cima do conjunto, uma chamarra cor-de-rosa, sem mangas, aberta na frente, de confecção idêntica à do mantellette romano, mas comportando longa cauda. Rematavam o conjunto um barrete preto quadrangular, estola de ombros (de deitar sobre o peito, em V, com as pontas caindo pelas costas até à meia perna) e regalo de peles.
Os académicos vizinhos, do Colégio Real de São Paulo-o-Apóstolo, usavam traje próximo do descrito, mas com feição talar mais pronunciada: sotaina castanha recortada quase junto aos calcanhares e beca escarlate pela meia perna , sendo da mesma cor a chamarra. A estola, também de assentar sobre o peito em V, era em tom violeta .
Os alunos da Ordem Militar de Avis, alojados no Colégio dos Militares, vestiam sobre o traje civil uma beca de mangas estreitas, de corpo largo, embainhada pelo joelho. Sobre esta veste o reitor colocava em cerimónia solene de tomada de becas a insígnia: uma murça munida de capuz curto, ostentando nas costas e peito um escapulário cujas pontas desciam até à púbis e eram fixadas pelo cinto que torneava a túnica.
E como não ver o cancelário, o D. Abade do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, nos cortejos de aparato e nas cerimónias de colação dos graus de doutor em cânones e teologia, com a sua batina branca de cauda, o roquete rendado, o mantellette preto, a romeira preta e o barrete quadrangular, com a fralda transportada por pajem?
Quanto à chamarra, veste de fora que estudantes e lentes traziam ordinariamente sobre a sotaina , não havia um modelo único. À semelhança do que acontecia com os estudantes das universidades católicas romanas, camaristas da Casa Papal, mestres de cerimónias das catedrais anglicanas e juízes portugueses, a veste designada por chamarra, chimera, zimare, soprana, mantellone, crocia e garnacha, podia não possuir mangas, dispor de meias mangas, de mangas tubulares fendidas ou de mangas de boca de sino . Mais completa, a garnacha distinguia-se da chamarra pela presença de duas generosas estolas ou bandas aplicadas verticalmente em cada uma das bainhas dianteiras, mangões tubulares fendidos ou meia manga e comprido cabeção a descair pelas costas.
No rescaldo do triunfo liberal, os colégios conimbricenses das ordens regulares foram formalmente abolidos por Decreto de 28 de Maio de 1834, do Ministro da Justiça Joaquim António de Aguiar, que por Portaria de 3 de Junho ordenou ao governador da Diocese de Coimbra que fizesse desocupar rapidamente as casas. Restavam ainda quatro colégios em funcionamento, os dois das ordens militares e os reais de São Pedro e de São Paulo. O Decreto de 16 de Julho de 1834, oriundo da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, mandou encerrar estes colégios .
Os lentes laicos e os religiosos que não pertenciam às ordens religiosas, usavam habitualmente uma loba preta ou castanha escura, de seda lisa ou de brocado, de dois corpos sobrepostos, e mantéu de gala de pano de seda (ferraiolo com estolas dobradas sobre o peito, gola descaída pelas costas e cordão de borlas). Era a loba dos doutores, oriunda do século XV, que fora comum às universidades de Bolonha, Roma, Coimbra, Paris, Salamanca e Oxford, fixada por pintores como Masolino (Histórias da vida de Santa Catarina. Disputa com os filósofos de Alexandria, 1428-1430), Giovani Boccati (Virgem da Pérgula, 1447), Neri di Bicci (Saint Yves), Andrea del Castagno (Bocaccio, 1450), Melozzo da Frolì (O Papa Sisto IV entrega a Biblioteca Apostólica a Palatina, 1497), Giovanni António Boltraffio (Retábulo Casio, 1500), Benozzo Gozzoli (Histórias da vida de S. Francisco. Renúncia aos bens, 1542), Ticiano (Retrato de Piero Arentino, 1545), Giovanni Battista Moroni (Gian Frederico Madruzzo e Giovanni Ludovico Madruzzo), António e Giulio Campi (São Paulo Borromeu institui os cursos de doutrina cristã), e Francisco de Zurbarán (Doctor en Derecho).
Uma escultura setecentista de Santo Ovídio, existente na igreja do Colégio da Esperança da cidade do Porto fixou com algum requinte os pormenores do hábito talar dos lentes coimbrãos (Medicina), com a longa sotaina de mangas estreitas e a chamarra de fora com as suas abas abertas na dianteira. Para o caso espanhol, prestam informação complementar as imagens de São Cosme e São Damião, existentes na Iglesia de San Julián e Santa Basilisa (Salamanca) , a estatueta de um estudante do século XVII (Museo de la Universidade de Salamanca), e o retrato de corpo inteiro de Santo Tomás de Villanueva (Universidade Complutense, proveniente de Alcalà de Henares) .
Os lentes integrados no clero regular vestiam diariamente os trajes talares prescritos para as respectivas dignidades. Não sendo obrigatório que um docente cónego, bispo ou arcebispo usasse o preto, o mais frequente era avistarem-se hábitos talares pretos avivados ou nas cores especificadas para os diversos dignitários do clero romano.
Regra era sim, e bem conhecida pelos interlocutores familiarizados com a cultura académica, o uso de insígnias doutorais completas pelos lentes laicos e o privilégio da dispensa de capelo pelos lentes eclesiásticos .
Na transição para o século XIX, os estudantes não conformistas cedo deram mostras de afirmação de comportamentos provocatórios, afrontando os velhos normativos vestimentários com recurso ao alteamento das bainhas das vestes . Os estudantes que haviam combatido as tropas francesas entre 1808-1811, que no seu regresso às aulas após a reabertura da UC já não usam diariamente o sapato preto ornado de fivela de prata, fazem gala em abandonar as meias altas de seda preta, as perucas empoadas, os penteados de rabo de cavalo e os sinaizinhos artificiais de veludo. Os calções começam a ser considerados pouco viris após as campanhas desenvolvidas desde 1789 pelos “sans-coulotte” e membros da Comuna de Paris .
Breton, na obra L’Espagne et le Portugal, publicada em Paris no ano de 1815, continua a referenciar a antiga loba, composta por sotaina pela meia perna, chamarra de mangões de boca-de-sino, mantéu talar e gorro .
A partir da Revolução Liberal, os estudantes de Coimbra aceleram as transgressões e metamorfoses clandestinas ao uniforme, reclamando a sua abolição, à semelhança do que acontece na vizinha Espanha em 1834.
Vozes da imprensa estudantil afecta ao radicalismo liberal vintista acusam as escolas maiores de reaccionarismo (Teologia, Cânones, Leis), vociferam contra o facto de o reitor ser um eclesiástico e criticam os colégios reais de São Pedro e São Paulo apodando a beca de “tanga vermelha” (1823) .
Ao longo de 1821-1822, nos debates parlamentares, o desembargador-deputado liberal Manuel Borges Carneiro (1774-1833) criticou asperamente a UC. Perante a proposta de laicização da instituição e de extinção das escolas maiores de Teologia, Cânones e Leis, perorou:

(…) Tudo é clerical, jesuítico, e portanto inquisitorial e misterioso; os lentes e estudantes de batina, cabeção e volta; o reitor eclesiástico, os lentes quase todos clérigos ou frades; os graus académicos conferidos em nome e por autoridade do Papa (….). A universidade é destinada para o ensino da mocidade, não para faustos e luxo de capela e festas.

Eis uma imagem duradoura, recorrentemente reproduzida pelas elites que se propunham extinguir ou reformar a UC, comum à cultivada nos meios políticos e universitários franceses. A condenação dos dias de função associados ao pulsar do calendário, então parte integrante do quotidiano escolar e instrumento de afirmação da identidade da Alma Mater, subirá de tom no curso da centúria. Em nome da moralização e dos valores da ordem, do trabalho e da extirpação da ociosidade Teófilo Braga condenará os momentos festivos, o riso e o humor, numa crescente escalada de puritanização e de intransigência .

A primeira grande mudança parece ocorrer nos anos que se sucedem ao regresso dos estudantes que haviam lutado activamente na Guerra Civil e à publicação do Decreto de 28 de Maio de 1834 que ordenou a extinção e nacionalização dos colégios universitários.
Mantendo as meias altas, os calções, a volta branca e o cabeção preto, os grupos académicos mais sintonizados com os predicados do abolicionismo trocam espontaneamente a loba pela batineta romana de um corpo, alargando-lhe as mangas que antes soíam afunilar na direcção dos punhos. Era uma opção com o futuro hipotecado, pois o traje académico entalado entre acusações de clericalismo e laicismo não mais deixou de derrapar: da loba para a batineta romana, da batineta para a casaca burguesa (frock coat: 1850-1860) de carcela fechada, com notórias cedências aos domínios do sobretudo/gabardine (décadas de 1870/1880), e deriva final pelo imaginário urbano masculino da casaca burguesa de lapelas de cetim (1907-1910).
A reflectir as mudanças espontâneas emergentes, o vocabulário de antanho sofre alterações. Na linguagem oficial do governo central fala-se em “vestido académico” . A Casa Reitoral, nos sucessivos editais que regulam e actualizam a matéria continua a empregar hábito talar. Os estudantes trocam a expressão “loba e mantéu” pelo neologismo liberal “capa e batina”. Está bem de ver que não se tratava de mera cosmética semântica. A loba era uma veste acentuadamente comprida, constituída por dois corpos sobrepostos que para ser convenientemente confeccionada pedia uns bons onze a doze metros de pano. Daí o ser chamada “loba”, isto é, um conjunto talar duplo que consumia enorme quantidade de tecido, à semelhança do que acontecia com vestes como a capa de honras de Miranda do Douro e a beca dos juízes portugueses. Grande parte do seu peculiarismo radicava no formato cónico da sotaina, que era de enfiar pela cabeça. Para que a entrada e saída da cabeça e dos braços ocorresse sem obstáculos, a sotaina alargava muito dos ombros para a meia perna, sendo ajustável no colarinho graças a um dispositivo de cordões semelhante ao do corpete que era aplicado na zona da coluna vertebral.
A batina era uma veste de um só corpo, confeccionável com menos de cinco metros de tecido, que a breve trecho derivou para a casaca burguesa masculina. O mantéu ou ferraiolo era uma capa de amplo panejamento, de corte evasé, munido de estolas dianteiras, cordão de borlas e cabeção. A capa, de confecção mais singela e menor panejamento, não tinha estolas nem cabeção.
Numa aguarela do Arquivo Histórico Municipal de Coimbra, reportada à década de 1830, emerge um lente de Medicina com borla e capelo, capa talar, sapato preto de fivela, calção, meia alta, e aquilo que nos parecer ser uma opção pela batina romana de um corpo . O mesmo se pode inferir da visualização da aguarela da mesma colecção que retrata um estudante erecto, vestindo batineta de tipo romano de abrir na frente com carcela vertical de botõezinhos e mangas acanhoadas .
O artista George Vivian (1798-1873) passou por Coimbra na década de 1830, tendo fixado imagens de estudantes em duas litografias, uma alusiva à utilização da Fonte de Santana, junto aos Arcos do Jardim, outra celebrativa das belezas dos jardins do vale do Mosteiro de Santa Cruz. Nesta última, o pintor conferiu grande atenção a dois académicos que numa varanda do Colégio de Tomar olham os jardins dos crúzios. Num deles vê-se o figurino da batina, de cor acastanhada, que é de um só corpo, conforme o tipo romano .
No álbum amador de Maria José Pereira Forjaz de Sampaio, revelado por António de Vasconcelos , o lente de Leis, que se presume debuxado no decénio de 1830, veste uma batina romana de um só corpo, com a bainha alteada.
Quatro gravuras relativas às décadas de 1840-1850 confirmam esta metamorfose espontânea a que a instituição ia fechando os olhos:

-“Mosteiro de Santa Cruz”, gravura reportável a ca. 1850, com figuração da fachada principal da igreja de Santa Cruz, igreja de São João, adro, parte do Largo de Sansão e fachada do mosteiro na parte que veio a ser demolida para construção dos Paços do Concelho. Figura populares, fieis e um estudante de costas, com calção e meias altas, capa traçada e gorro lançado para trás . O estudante conversa com um burguês de casaca e cartola, numa espécie de projecção do alter-ego daquilo que os académicos ambicionavam vestir;
-“Étudiant de Coimbre”, trabalho assinada por Ferdinand, de ca. 1850, obtido a partir de chapa metálica incisa. Regista um estudante com sapatos de couro, calções e meias altas, batineta de um corpo, com bainha subida pela linha dos joelhos, ferraiolo ainda munido do antigo cabeção, colarinho de volta branca e gorro comprido ;
-“Estudante de Coimbra”, de 1844, litografia assinada por João Macphail nas séries “Costumes Portugueses”. Mostra um estudante enquadrado num cenário arquitectónico interior, com corredor e arcos. O escolar ostenta sapatos pretos estilo império, sem fivela, meias altas, calções, batineta munida de carcela romana, capa talar traçada à fidalgo, cabeção, volta branca e gorro. Nas mãos avistam-se um livro e um lenço. Esta proposta terá suscitado algum repúdio no “milieu”, mas o debuxo Macphail respeita escrupulosamente o figurino usado na década de 1840, apenas omitindo as polainas pretas que se envergavam nos invernos rigorosos e as luvas;
-“Estudante”, por João Macphail, aguarela das colecções da Biblioteca Geral da UC, não assinada, apresentando o figurino sapato preto estilo império, meias altas, polainas de lã, calções, batina de um corpo muito cintada ao gosto das décadas de 1830-1840, com longa carcela dianteira, cabeção, volta branca, capa talar munida de cordão de borlas e gorro;
-“Estudante de Coimbra”, litografia não assinada, divulgada no Álbum de Costumes Portugueses, Lisboa, David Corazzi, 1888, com texto crítico de José Ramalho Ortigão : sapatos pretos de couro atacados com laços de seda preta; meias altas pretas; calções pretos; batina de um corpo, com a convencional carcela de botõezinhos, mangas de tipo sobretudo, possivelmente com a parte posterior em mudança para o corte da casaca burguesa; camisa branca, já sem cabeção; volta branca; gorro longo, guarnecido de generosa virola em torno da caixa craniana; capa talar traçada à fidalgo, acusando sinais de envelhecimento; pasta com fitilhos atados; material escolar, óculos e cigarro. O desenho reporta-se ao estádio final do traje antes das mudanças autorizadas em 1863 pela Casa Reitoral, servindo de modelo o jovem José Eça de Queirós.

O Decreto de 17 de Novembro de 1836, do governo Passos Manuel, que mandava estabelecer liceus nas capitais de distrito administrativo do continente, ilhas e ultramar, determinou no seu artigo 43.º que o Lyceu de Coimbra ficasse instalado nos gerais do antigo Colégio das Artes [Liberais], não como instituição autónoma, mas constituindo “uma secção da Universidade”.
Em consequência, a Portaria de 10 de Outubro de 1836 determinou que o Reitor do Lyceu de Coimbra fosse o Reitor da UC, devendo os docentes do Lyceu ser considerados membros do Studium Generale, com as inerentes honras e prerrogativas .
O lyceum conimbricense afirmava-se assim na continuidade das escolas menores que haviam integrado as universidades de Coimbra ou Salamanca, seguindo um rumo distinto dos demais liceus portugueses. Não por acaso, num edital de 22 de Abril de 1839, sobre matéria disciplinar comum ao lyceu e à universidade, o Vice-Reitor José Machado de Abreu identificava o lyceu como “Collegio das Artes” .
A ligação institucional e administrativa, reafirmada pelo n.º 2 do artigo 78.º do Decreto de 20 de Setembro de 1844, manteve-se em vigor até ao ano lectivo de 1879-1880, data em que o Lyceu de Coimbra se autonomizou definitivamente da UC . De acordo com as disposições oitocentistas, até 1880 o traje dos alunos da UC era o mesmo envergado pelos discentes do Lyceu de Coimbra, e os lentes do dito Lyceu usavam obrigatoriamente o hábito talar no exercício da sua função docente, marcando presença em cerimónias académicas como a abertura solene das aulas, as recepções aos chefes de estado, a celebração do aniversário natalício do monarca reinante, a entrega de prémios a alunos distintos, as cerimónias fúnebres, a Procissão da Rainha Santa Isabel, as colações de graus e as investiduras dos reitores.
Em termos de protocolo, os lentes do lyceu desfilavam à cabeça dos préstitos académicos, visto serem a “escola menor” mais recente da UC. No encalço do exemplo do Lyceu de Coimbra, em 1860 o Lyceu de Évora solicitou e obteve autorização do governo central para o uso deste mesmo traje masculino . Entre a década de 1870 e o crepúsculo do século XIX inúmeros foram os liceus portugueses que obtiveram autorização do Ministério do Reino para uso da capa e batina, numa fase gradativamente terminal, em que este antigo uniforme perdia a sua característica talar para se confundir com os pequenos uniformes burgueses oitocentistas em processo de acreditação em colégios britânicos, franceses, canadianos, norte-americanos e brasileiros. O liberalismo burguês deixava a sua marca no percurso histórico e na memória da UC.
Pormenor a não descurar, enquanto que no ensino secundário os reitores, encarregados de educação, alunos e docentes, viam na capa e batina um instrumento de instauração da ordem, da disciplina, da dignificação sócio-cultural e de reforço da identidade, na UC, alunos e docentes de diversas Faculdades sentiam o hábito talar, as insígnias e as cerimónias académicas como incómodos vestígios de passadismo.

A lenta distritalização da capa e batina:
Lyceu de Coimbra (José Falcão): 1836
Lyceu de Évora (André de Gouveia): Portaria de 27.10.1860
Colégio de São Bento (privado, Coimbra): Edital de Setembro de 1864
Lyceu de Santarém (Sá da Bandeira): ?
Lyceu de Beja (Diogo de Gouveia): 1873
Lyceu de Braga (Sá de Miranda): Ofício de 2.04.1873
Lyceu do Funchal (Jaime Moniz): 1889
Lyceu Rodrigues de Freitas (Porto): antes de 1890
Lyceu da Guarda (Afonso de Albuquerque): ?
Lyceu de Guimarães (Martins Sarmento): Janeiro de 1892
Lyceu de Lamego (Latino Coelho):antes de 1894
Lyceu de Castelo Branco (Nuno Álvares): antes de 1898
Lyceu Alexandre Herculano (Porto): 1906

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