quinta-feira, 29 de março de 2018


Santos com trajes e/ou insígnias doutorais

João Durães deixou um novo comentário na sua mensagem " Santo Ovídio "Doutor"Inesperada e notável, eis um...":

Tanto quanto sei, existem mais dois casos de esculturas de Santo Ovídio representado como Doutores pela Universidade de Coimbra: na Igreja Matriz de Santo Ovídio, em Vila Nova de Gaia, sendo o capelo (tal como o resto das vestes) castanho, de murça única e sem alamares, e o barrete não tendo borla alguma, e na Igreja do Convento de S. João Novo, estando aqui representado como Doutor pela Faculdade de Direito, pois o capelo (não sei se de dupla murça ou apenas de uma), com alamares, parece-me ser vermelho e o barrete parece apresentar borla desta cor. Em ambos os caos acha-se omissa a capa talar.
De resto, grande parte das esculturas de Santo Ovídio presentes no nosso país, nos casos que não o representam como bispo de Braga representam-no em hábito talar de estudante de Coimbra, com sotaina, chamarra e barrete (mas sempre sem mantéu). Aparentemente, a justificação para ser representado com vestes talares é por, segundo a lenda, Santo Ovídio ter sido contemporâneo dos apóstolos e vivido em Roma (o que é dito no "Agiologio Lusitano"), o que não me convence.

Reposta
Caro João Durães
Grato pelo seu comment bem documentado e com léxico rigoroso. É sempre bom falar grego com quem fala grego.
Existem vários "santos doutores" provenientes das oficinas de santeiros de arte sacra em igrejas de Espanha, Portugal e Brasil, produzidos entre os séculos XVII-XIX que de forma pouco documentada figuram Santo Ovídio, Santo Ivo da Bretanha, e São Cosme e São Damião, com hábitos e insígnias doutorais.
Os escultores santeiros copiariam as imagens umas pelas outras (de as ver em determinadas igrejas e procissões), por gravuras e através de instruções oriundas dos párocos encomendadores.
No Recife e na igreja da Santa Casa da Bahia existem imagens sacras em madeira estofada e policromada que representam doutores da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra com elevado grau de rigor morfológico no que concerne aos "santos doutores" Cosme e Damião.
Nas ordens terceiras franciscanas de Ovar, Porto e Vila do Conde existem imagens de roca (de vestir) de Santo Ivo da Bretanha que misturam hábito talar romano com hábito talar coimbrão e jogos e insígnias doutorais de Cânones e Teologia de forma completa ou incompleta. Enquanto que a imagem de Ovar parece replicar a da Ordem Terceira do Porto (que eu infelizmente não pude estudar, tal foi a inibição de requerimentária burocrática exigida), já em Vila do Conde o Santo Ivo foi vestido com beca de juiz à portuguesa, mas mantendo o jogo completo de borla e capelo da Faculdade de Cânones da Univ. de Coimbra, infelizmente degradado mas notabilíssimo artefacto de passamanaria. Na igreja do convento de Mafra o Santo Ivo ostenta hábito talar e insígnias singelas da 1ª metade do século XVIII, ainda não inteiramente influenciadas pela gramática barroca. Contudo, num dos altares da igreja do mesmo convento existe um alto relevo no qual o santo apresenta vestes romanas como sobrepeliz e insígnias barrocas completas, vendo-se distintamente o capelo de duas murças.
Seria interessante obter fotografias das imagens de Santo Ovídeo de VNG e de S. João Novo.
Para Espanha, México e Filipinas, existem também numerosos casos de arte sacra (pintura e escultura) com santos doutores. Nelas pudemos encontrar de tudo, desde o máximo rigor à fantasia quase carnavalesca.
Para a França, vale a pena ver e perceber como é que as imagens do Santo Ivo da Bretanha foram sendo vestidas. E aqui também encontrei de tudo, desde hábitos talares romanos a togas e barretes de advogados.
Esta matéria foi largamente tratada naquilo que se conseguiu localizar até 2013 no livro "Identidade(s) e moda, percursos contemporâneos da capa e batina e das insígnias dos conimbricenses". Não sendo o assunto considerado tema de interesse científico, a edição teve de ser paga pelo autor, mas isso já é outra conversa.
AMN
Imagem de Santo Ovídeo, venerada em VNG/Portugal, editada em https://avozdegaia.wordpress.com/2008/09/18/festas-de-santo-ovidiohistoria-de-mafamude/.

Imagem sacra em madeira entalhada, estofada e policromada, de vulto inteiro, mas de pequena estatura, possivelmente do século XVIII (?), não sendo inteiramente congruentes os referentes da estética barroca, pelo que pode tratar-se de uma obra posteriormente repintada (?) ou de trabalho de santeiro insuficientemente documentado. O santo aponta com a mão direita para o ouvido e traz na mão esquerda um livro, que talvez não seja de mezinhas médicas mas sim de orações. Veste uma sotaina talar de um corpo, com mangas estreitas, que se enfiava pela cabeça e tinha uma carcela frontal entre o pescoço e o diafragma, que os jesuítas designavam por roupeta. Há quem confunda sotaina com batina romana, mas estas duas vestes não são de todo idênticas e estão erradamente referenciadas na maioria dos dicionários e enciclopédias como se pode ver por Thiron (Album historique des constumes religieux, 1869, autor que sabia da poda). A sobreveste é uma garnacha ou zimarra, também talar, sem mangas, apertada no pescoço, vendo-se muito bem as cavas. A este conjunto de sotaina e chamarra/zimarra aberta chamava-se justamente loba aberta. Loba, porque os alfaiates consumiam na sua confecção uma enorme quantidade de pano. Esta veste de corpos duplos desapareceria da Univ. de Coimbra sem deixar memória. Boa sorte a nossa, em 1907 ainda foram fotografados alunos do Colégio dos Inglesinhos, de Lisboa, com o que dela restava, e nos seminários católicos de Espanha sobreviveu a versão fechada que foi fotografada até aos anos 30 do século XX. Em Portugal, a única veste semelhante que também praticamente já desapareceu era a beca de corpos duplos dos juízes que ainda há poucos anos era feita em alfaiatarias de Coimbra. Por cima desta veste observamos um capelo muito modesto, munido de capuz dorsal, sem alamares, que talvez corresponda a sua formulação naif ao capelo de bacharel que os Estatutos da Univ. de Coimbra de 1653 referem, sem desenho nem descrição, dele apenas dando as cores científicas e o pano de seda. Mesmo que fosse capelo de bacharel em Medicina, de uma só murça, deveria ter alamares. O barrete cilindriforme com copa cónica será porventura a peça mais insólita deste conjunto. Na verdade faz lembrar mais uma mitra episcopal do que um barrete académico. Não tem borla alguma, não tem pega de tipo maçaneta e não ostenta franja. Pelo que lhe falta completa inspiração no que se usava na Univ. de Coimbra e nas universidades de Espanha e da América Latina.
Tudo indica que o santeiro entalhou com grande liberdade criativa.


Santo Ovídeo, igreja do Colégio da Esperança, Porto/Portugal.


Seminaristas do Colégio dos Inglesinhos junto ao adro da Sé de Lisboa na saída da procissão do Corpo de Deus, Lisboa, junho de 1907, revista Ilustração Portuguesa, nº 68, de 10.06.1907.
Sapatos pretos de pele, com fivela de prata; batina talar romana; chamarra sem mangas, aberta na frente, fixada no pescoço com atilho de tecido; volta branca e cabeção preto; barrete preto de quatro arestas com três cristas e borla de tipo pompom; sobre os ombros, uma beca de pano vermelho, lançada em V, com as pontas caídas pelas costas, que se usou em vários seminários de Portugal, Espanha, México e Perú, presentemente retomada nas tunas universitárias de Espanha e em várias universidades espanholas que promovem atos de licenciatura.

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Caro Prof. (...)
Infelizmente, não sou um entendido na matéria, pelo que tudo o que eu sei actualmente aprendi-o através da leitura deste site, do qual tenho o prazer de frequentar.
A imagem de Santo Ovídio de Vila Nova de Gaia a que me referia é essa mesmo que consta nesta publicação. Pode observar-se uma foto dessa mesma imagem neste site: http://memoriasgaiensesbibliotecadegaia.blogspot.pt/2010/10/festa-e-o-culto-santo-ovidio.html (1.ª foto).
Quanto à imagem de Santo Ovídio da igreja do convento de S. João Novo, só pude observá-la através da existência de duas fotos em meios online, estando em ambas retratado a alguma distância do local de captação da imagem (não se podendo observar, por isso, em pormenor): http://portojofotos.blogspot.pt/search/label/S.%20Jo%C3%A3o%20Novo (19.ª foto da 1.ª publicação) e http://portoarc.blogspot.pt/2014/11/conventos-de-religiosos-xii.html (8.ª foto, no lado inferior). Pelo que me parece, e como tinha dito anteriormente, Santo Ovídio está representado como Doutor pela Faculdade de Leis da Universidade de Coimbra, pois parece-me que o capelo (de dupla murça, penso, e com alamares) é vermelho, apresentando o barrete uma borla da mesma cor. Contudo, penso que há que ter cautela nesta leitura, pois a chamarra é da mesma cor, quando em rigor penso que deveria ser preta ou castanha.
Entretanto, descobri que existe uma imagem do mesmo santo em Meixomil-Paços de Ferreira, onde está também representado como Doutor, com loba e barrete redondo de picos (sem borla, parece-me). Penso que aqui, tal como na imagem do Colégio da Esperança, a figuração da loba é bastante rigorosa (especialmente no detalhe da carcela da sotaina). Contudo, o capelo (de dupla murça) não apresenta alamares nem carcela, assim como cor científica (não sei se por ignorância do "santeiro" se por intenção, de modo a não o veicular a nenhuma especialidade científica). Uma vez que não sou entendido em História de Arte, não me arrisco a dar cronologia para a elaboração destas imagens.
Realço que desconheço os motivos para vários "santeiros" figurarem Santo Ovídio como doutor pela Universidade de Coimbra (indicando ou não a especialidade), uma vez que, segundo a lenda, não se conhece a profissão deste santo (ao contrário dos Santos Cosme e Damião e de Santo Ivo) antes de "ter sido" 3.º bispo de Braga. George Cardoso, no 3.º tomo do "Agiologio Lusitano", fornece parcialmente a explicação, afirmando que se representa algumas imagens "vestidas com roupas talares à romana, por ser contemporâneo dos Apóstolos", o que (como já tinha dito) não me convence, pois alguns santos também de origem romana e contemporâneos dos Apóstolos não eram/são representados desta forma por esse motivo. Seria interessante explorar em documentação histórica se Santo Ovídio teve alguma ligação à Universidade de Coimbra que desconhecemos.
Com os melhores cumprimentos e votos de uma Boa e Santa Páscoa,
João Durães.
(31.03.2018)

Caro João Durães
Não consegui observar como gostaria o Santo Ovídio que avulta no altar-mor da igreja do convento de S. João Novo (cidade do Porto). A não ser que tenha havido distorção do padrão cromático, parece realmente ser capelo vermelho. A ser vermelho, trata-se de erro do santeiro ou então a imagem pode ter sido sujeita a repinte.
Em Portugal, Brasil, Espanha, México, Perú e Filipinas os escultores e pintores reproduziram na arte sacra dos séculos XVII/XVIII/XIX trajes e insígnias de santos doutores com atributos associados às universidades de Coimbra, Salamanca, Real e Pontifícia do México, San Marcos de Lima e Santo Tomás de Aquino de Manilha. Os casos dos santos doutores Come e Damião, as insígnia doutorais de Medicina são bastante fiéis à realidade, na morfologia como na cor científica amarelo-ouro. Mas em retratos a óleo de professores-bispos e reitores-cónegos é frequente a confusão de cores científicas certamente por desconhecimento dos pintores contratados.
Veja-se esta imagem de São Tomás de Aquino, do séc. XVIII (?), venerada nas Filipinas, com barrete doutoral de quatro picos, borla e franjado de cachos. Tudo banhado a ouro, quando o barrete deveria ser forrado em pano preto de seda e os elementos de passamanaria em seda branca, cor científica da Teologia.




Seguidamente, barrete de graduado em Teologia, com estrutura cartonada preta, franja e borla em seda branca, Valência, Espanha, 1888, numa curiosa sobrevivência do antigo barrete que por lei tinha sido erradicado nas universidades espanholas em 1850:


O quadro seguinte respeita a São Francisco Xavier na qualidade de teólogo. Pintura produzida no México em 1704, figura o santo com indumentária talar romana associada à Companhia de Jesus e insígnias doutorais da Faculdade de Teologia da Real e Pontifícia Univ. do México. O barrete segue o figurino luso-hispânico. O capelo é de dupla murça, sendo a interna em seda preta e a exterior em seda branca com carcela pouco visível.


Representação de São Tomás de Aquino como doutor da Igreja em sagrada Teologia, pintura proveniente do México, primeira metade do século XVIII, acervo do Museu de Brooklyn, USA.


1 Comentários:

Blogger Unknown disse...

Sou obrigado a confessar que ainda não percebi o facto de Santo Ovídio dever ser representado com as insígnias doutorais de Medicina e não com as de outra especialidade científica, como Artes ou Leis. Atendendo a que, segundo a sua hagiografia, Santo Ovídio não exerceu Medicina (ao contrário dos Santos Cosme e Damião), por que é que as suas insígnias doutorais deveriam ser da cor desta ciência? Estaria relacionado com o facto de ser invocado como patrono contra os males da audição e, desta forma, ser "médico celeste" junto dos seus devotos?
Obrigado pelo esclarecimento.

18 de junho de 2018 às 07:09  

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