sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Património vestimentário... (cont.)
Os estranhos atalhos da feminilização

Corpo discente

Ao longo do período em análise, os debates sobre a desnecessidade do traje académico, ou da transformação da morfologia multissecular num figurino burguês oitocentista detectam-se apenas no interior de práticas discursivas identitárias masculinas juvenis. Não participam no debate, nem sufragam as propostas contraculturais em curso a Casa Reitoral, facções representativas do corpo docente, os funcionários ou as primeiras gerações de matriculandas.
Estas ingressam na Faculdade de Matemática da UC no ano lectivo de 1891-1892 pela mão de Domitila Hormizinda Miranda de Carvalho, sendo a instituição frequentada por 874 alunos . Só em 1896 se lhe viriam juntar outras duas alunas, Maria do Carmo Teixeira Marques e Sofia Júlia Dias. Ocupava a cátedra reitoral António dos Santos Viegas (1837-1914), a quem Domitila de Carvalho endereçou o requerimento de matrícula. A 16 de Outubro de 1891 o Reitor oficiava ao Ministro da Instrução Pública e Belas Artes, João Marcelino Arroyo (1861-1930), o teor do pedido e diversos considerandos favoráveis à admissão.
Em 1860 e 1872 duas mulheres tinham realizado na Faculdade de Medicina exame de aptidão farmacêutica e em 17 de Julho de 1883 o Reitor da Universidade de Liège solicitara a Coimbra o preenchimento de um questionário sobre o estado da feminilização na UC. Na resposta, assinada pelo Vice-Reitor Bernardo de Serpa Pimentel (1817-1895), assumia-se uma atitude favorável ao processo de feminilização, dando-se conta que o Reitor Visconde de Vila Maior fora encarregado pelo governo de elaborar a lei de bases destinada a regulamentar a admissão de mulheres no ensino superior português.
Aquando da primeira formatura feminina concedida pela UC a Domitila de Carvalho em 1903 já havia alunas graduadas nos EUA, Suíça, Itália, Escócia, Irlanda , Grã-Bretanha, Austrália , Nova Zelândia, Índia , França, Suécia, Dinamarca, Holanda, Bélgica e nos estabelecimentos politécnicos de Lisboa e Porto.
Carolina Wilhelma Michaelis de Vasconcelos (1851-1925), que em 1911 foi convidada a leccionar na nóvel Faculdade de Letras da UC, tinha sido proclamada doutora honoris causa pela Universidade de Friburgo em 1893 . Maria Montessori (1870-1952) formou-se em Medicina na Universidade de Roma em 1896 e na prossecussão da sua carreira académica usou a toga e o barrete dos doutores italianos. Nos colégios e universidades anglo-saxónicas há informação confirmativa de que as graduandas envergaram a “gown” masculina e com ela começaram a frequentar as cerimónias de formatura pelo menos desde finais da década de 1860: Escócia, Irlanda, Grã-Bretanha, EUA, Canadá, Índia, Nova Zelândia e Austrália. A feminilização começara justamente no Geneva College de Nova York, estabelecimento de ensino que em 1849 concedera formatura em Medicina a Elizabeth Blackwell (1821-1910). As instituições de formação pioneiras parecem situar-se no campo da especialização em Medicina e localizam-se nos EUA .
A cultura académica anglo-saxónica revelou a sua plasticidade ao transformar as vestes talares históricas em vestes unissexo, situação que em finais da década de 1890 seria alargada ao universo do judiciário quando as primeiras graduadas em Direito ingressaram na advocacia. O primeiro caso pode ser ilustrado com o exemplo de Agnes Pichen, que após formatura com "cap, gown and hood", ingressou em 1908 no corpo docente da Universidade de Glasglow como lente de inglês, ali usando o traje masculino clássico , com as primeiras formandas em Medicina na Universidade de Sydney, no ano de 1898 , ou o primeiro doutoramento honoris causa da University of Queen's, Canadá, conferido pela Faculdade de Direito à Condessa de Aberdenn Ishbel Marjoribanks, em Maio de 1898 .
Quanto ao segundo caso, atente-se no acesso à advocacia na Nova Zelândia protagonizado por Ethel Benjamin. Na transição do século XIX para o século XX as primeiras mulheres formadas em Direito ingressaram em profissões jurídicas tradicionalmente monopolizadas por homens, como a advocacia e a solicitadoria. Em países como a Inglaterra, Canadá, Índia, Austrália e Nova Zelândia o ingresso das mulheres nas profissões jurídicas representou um processo bem sucedido de adaptabilidade inclusiva. A peruca, o plastron e a toga foram transformadas em veste profissional unissexo. Serve de exemplo uma fotografia de Ethel Rebecca Benjamin (1875-1943), formada em Direito pela University of Otago no ano de 1897. Em 10 de Maio de 1897 foi admitida como primeira advogada e solicitadora na Supreme Court da Nova Zelândia .
Situação idêntica se viveria em França e na Itália em termos de vestes académicas e judiciárias, embora a imprensa francesa tenha revelado o seu lado mais misógeno em caricaturas e postais ilustrados.
O combate em prol da abertura da advocacia às mulheres em França foi liderado por Jeanne Chavin (1862-1926), que em 2 de Julho de 1892 defendeu na Faculdade de Direito da Universidade de Paris uma tese de doutoramento de 196 páginas intitulada Des profissions acessibles aux femmes, en droit romain et en droit français. Évolution historique de la position économique de la femme dans la societé. A prestação do primeiro juramento profissional por Me. Petit como advogada foi motivo de capa do Suplement Ilustré do Le Petit Journal, nº 527, de 23 de Dezembro de 1900. No início do ano seguinte começou a circular em França uma série de quinze postais ilustrados com o título “La femme avocat”, onde uma figurante em toga e barrete depreciava a nova profissão com recurso a poses caricatas, legendas de conteúdo negativo e um bebé que recordava a impossibilidade de conciliar as tradicionais funções de esposa e de mãe com a independência profissional .
Ao contrário do que se possa pensar, a situação francesa não foi propriamente pautada por atitudes de “vanguardismo” ou de “pioneirismo”. Nas escolas profissionais de artes e ofícios, o tailleur tipo marinha só viria a emergir em 1964. Na Escola Politécnica de Paris, a versão feminina do uniforme ocorre apenas em 1974. E no Instituto de França será necessário dobrar o limiar da década de 1980 para vermos académicas em “habit vert”, quando em Portugal a Academia das Ciências admitira as primeiras duas sócias em 1912.
Na Suécia, Betty Pettersson (1838-1885) matriculou-se no ano de 1872 em Filosofia e Línguas na Universidade de Uppsala, e uma vez concluído o curso dedicou-se à docência. Pettersson figura numa fotografia de época com o boné dos estudantes. Em 1883 Ellen Fries (1855-1900) obteve o doutoramento em História também em Uppsala .

Em Coimbra, o pedido de dispensa do porte de hábito talar parte da própria Domitila de Carvalho, solicitação que o Reitor Santos Viegas reporta ao governo e considera aceitável “visto não ser admissível às mulheres o uso da capa e batina, que é o uniforme adoptado na Universidade; e parece-me conveniente que se lhe imponha a obrigação, a que ela própria se oferece, de comparecer nas aulas e nos actos académicos honestamente vestida de preto, com o traje próprio do seu sexo” . Em abono da sua posição, Santos Viegas lembrava que os alunos militares e os internos da Santa Casa da Misericórdia de Coimbra também estavam dispensados do uso da capa e batina.
Em bom rigor, a decisão reitoral espelhava a visão das elites portuguesas da época sobre a natureza feminina, partilhada por jurisconsultos, militares, médicos, matemáticos e clérigos. De acordo com o direito positivado e com os preconceitos científicos apregoados pelo direito, antropologia, medicina e biologia, a mulher estaria marcada por um conjunto de estigmas físicos e psíquicos, incapacidades que a colocavam numa posição de inferioridade perante o homem, dispondo-a apenas para o casamento e reprodução .
A capa e batina dos estudantes e lentes laicos conforme o figurino usado em 1890 era um traje masculino à base de casaca preta civil, colete masculino , calça comprida, laçarote e capa singela. Sendo a casaca preta e a calça comprida símbolos da masculinidade burguesa urbana por excelência, era impensável aos olhos dos lentes, reitor e estudantes que as primeiras alunas se atrevessem a apropriar-se deste traje, visão que coloca a UC em situação de rigidez cultural perante a elasticidade das “gowns” anglo-saxónicas.
Mas o que verdadeiramente inquietava a Casa Reitoral e os estudantes era a possibilidade dessas primeiras alunas adoptarem uma toilette viril, invadindo o território masculino . A concordar com o uso da capa e batina pelas alunas, não estaria a UC a contribuir para acentuar o fantasma da desfeminilização da mulher? O receio era fundamentado com exemplos de mulheres que se vestiam com calças compridas, sobrecasaca e botas de equitação, como George Sand (1804-1876) , e de figurinos divulgados em revistas de modas. Em 1831 surgira em Inglaterra o vestido de equitação, com a parte superior masculinizada. Em 1851 a norte-americana Amélia Bloomer propusera sem sucesso o lançamento da calça comprida em Londres, tendo apresentado um conjunto túnica/calça que lembrava as vestes das mulheres persas e indianas . A partir de 1878, as revistas de modas tinham vindo a divulgar nos EUA, França e Inglaterra trajes femininos para ciclista, passeio à beira mar, equitação, ténis e golfe, onde eram bem visíveis os cortes funcionais, os tecidos lisos e a supressão de rendas, bordados e folhos. No caso da ciclista, a saia-calção dera que falar desde Março de 1894 . Num registo comparativo, de há muito que as ceifeiras do Alentejo se tinham antecipado à moda cosmopolita, transformando as saias de trabalho em práticos calções .
Ao inviabilizar a solução unissexo na UC, o titular do cargo reitoral reforçava os preconceitos existentes, sossegava os incomodados e garantia uma radical separação de géneros por mais de 100 anos.
Proibidas de confundir-se com os seus colegas alunos, as estudantes optam por vestir-se de acordo com os padrões da média burguesia e do campesinato provincial abastado: vestido preto comprido, chapéu urbano, e em determinadas cerimónias ou momentos festivos a pasta com fitas de seda e a capa preta. É para todos os efeitos o chamado traje domingueiro das mulheres das aldeias, vilas e cidades de província, com a diferença que as chamadas meias senhoras e burguesas vestiam capas e capotes de honra, ricamente confeccionados, enquanto as estudantes trajavam uma capa de tecido e corte vulgares.
As políticas de exclusão das mulheres na UC não se limitaram ao traje. Ao longo das décadas seguintes, as alunas viverão um autêntico “apartheid” académico. Com efeito, foi no interior da Academia de Coimbra que mais intensa e duradouramente os estudantes praticaram a separação de género e procuraram manter as suas colegas afastadas da “praxe” e da vida cultural, associativa e desportiva extra-curricular . Antes de 1938 as estudantes não entram no edifício sede da Associação Académica nem fazem parte de organismos desportivos, corais, teatrais ou instrumentísticos de dimensão extra-curricular. Muito lentamente, em 1938 ingressam no Teatro dos Estudantes (TEUC) , seguindo-se com intervalos mais ou menos longos a Comissão Central da Queima das Fitas (1940), o Coral dos Estudantes da Faculdade de Letras (1954), o Coro Misto (1957), a Tuna Académica (TAUC, 1960), o Orfeon Académico (1974), a presidência da Associação Académica (1976), e a presidência do Orfeon Académico (1987) .

Com a Revolução Republicana de 5 de Outubro de 1910 as vestes, insígnias e cerimonial da UC são suspensos pelo governo provisório. Relativamente às estudantes são mantidas as decisões adoptadas em 1891. A documentá-lo visualmente, a Ilustração Portuguesa, nº 310, de 29.01.1912, fotografou a estudante Regina Quintanilha e outras colegas como Maria da Conceição Ferro e Silva em traje civil feminino e pasta com fitas de seda. Matriculada em Direito no ano lectivo de 1910-1911, Regina Quintanilha, ainda com o curso incompleto, foi a primeira mulher a advogar em Portugal . A sessão teve lugar no Tribunal da Boa Hora, Lisboa, em 14.11.1913, tendo Regina Quintanilha vestido toga de advogado, evento que foi motivo de capa da Ilustração Portuguesa de 24.11.1913.
Não há notícia de que os magistrados e advogados presentes, todos eles antigos estudantes da Faculdade de Direito da UC, tenham apoucado Regina Quintanilha ou obstado a que vestisse a toga forense. Aliás, o estado da situação do acesso das mulheres às profissões médicas e jurídicas no Ocidente era bem do conhecimento dos lentes e estudantes da UC. A título de tese de conclusão de curso, João Henrique Ulrich apresentara à Faculdade de Direito um ensaio intitulado Elementos para o estudo da advocacia portuguesa, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1902, onde revelara actualizado conhecimento do que se estava a passar na Europa, Rússia e América do Norte. Nesta surpreendente dissertação, dedicada a Afonso Costa e ao Conde de Casal Ribeiro, Ulrich defende que as mulheres diplomadas com cursos superiores devem exercer profissões liberais e ingressar na função pública, revelando os seguintes dados:

-países que proíbem que a mulher frequente cursos jurídicos: Alemanha, Áustria, Hungria;
-mulheres diplomadas em Direito, cujos países autorizam o exercício da profissão: Dinamarca, EUA (em 32 dos 47 estados), França (Lei de 1.12.1901), Índia (1896), Canadá, Nova Zelândia, Austrália, Noruega (1902), Suécia (1897); Suíça (Neuchatel e Zurique);
-mulheres diplomadas em Direito cujos países interditam o acesso à advocacia: Bélgica, Dinamarca, Espanha, Inglaterra, Itália .

Este estudante propunha que Portugal abrisse as portas da administração pública a mulheres diplomadas em direito, tese que teve acolhimento favorável entre os elementos do júri. Reconhecendo o espaço crescentemente ocupado pelas mulheres no professorado, correios, repartições públicas, enfermagem, artes médicas e actividades comerciais, seria o governo republicano a promulgar em 1918-1919 os primeios diplomas que legalizavam em Portugal as profissões de notária, advogada e conservadora dos registos:

-o artigo 1º do Decreto nº 4:676, de 17.07.1918, autorizava às diplomadas em Direito as profissões de advogada, ajudante de notário e ajudante de conservador dos registos. Era titular da pasta da Justiça Alberto Osório de Castro que invocou directamente as leis francesas de 7.12.1897, 23.01.1898 e 1.12.1900;
-o artigo 16º do Decreto nº 5:625, de 10.05.1919, do gabinete do Ministro da Justiça António Joaquim Granjo, que permitia às diplomadas em Direito o exercício do notariado .

Deste modo, a partir de 1918 a toga forense é convertida sem crispação em veste profissional unissexo, situação não verificada ao nível das notárias e conservadoras que nunca chegaram a ter traje profissional.
A obrigatoriedade de uso diário de uniforme masculino estudantil na UC foi abolida por Decreto de 23.10.1910, situação de certa forma extensiva aos liceus onde o porte masculino fora autorizado por diplomas do Ministério do Reino. O diploma referido não interditava o traje, apenas o tornava facultativo, tanto mais que no curto prazo a esmagadora maioria dos alunos da UC, da Tuna Académica (TAUC), do Orfeon Académico e da Tuna do Liceu Central de Coimbra manifestaram vontade de continuar a envergar a capa e batina.
Quando em 19 de Outubro de 1910 o Ministro do Interior António José de Almeida e o novo reitor da confiança do governo Manuel de Arriaga chegam a Coimbra com o propósito de reformar e republicanizar a UC, a maioria dos alunos da Alma Mater e do vizinho Liceu continuava a envergar a capa e batina. Desde a Greve Académica de 1907 que os alunos inconformistas haviam deabotoado a casaca, aplicando-lhe lapelas de cetim, a capa andava enrolada no colarinho ou deitada pelo ombro como se fora um salpicão, e nas gravatas, coletes e sapatos avistavam-se cores transgressivas e provocatórias como o laçarote vermelho dos carbonários.
Tendo a Casa Reitoral deixado de regulamentar o porte do hábito talar discente e as transgressões que lhe estavam intimanente associadas, o “negregado balandrau” (Hipólito Raposo) não é de imediato apropriado pelo Conselho de Veteranos (CVAC). Aliás, até à década de 1920, o CVAC não se pronuncia publicamente sobre o traje académico quanto a figurino, cores, modo de usar, interdições ou punições. Após décadas de predomínio da tradição oral, só em finais da década de 1950 o referido órgão opta por integrar a capa e batina nos domínios estritos da “praxe”, regulamentando o traje com o vocabulário e os instrumentos de controlo habitualmente usados para enquadrar as fardas militares e paramilitares .
Após a promulgação das primeiras medidas abolicionistas, quem começa por tentar regulamentar o porte do que resta do hábito talar discente são as direcções da TAUC e do Orfeon, preocupadas com a eficácia da sua comunicação imagética extra-muros. Entre 20 e 29 de Fevereiro de 1911, a TAUC deslocou-se em digressão a Valladolid, Salamanca, Zamora e Ciudad Rodrigo, com os tunos em capa e batina. Confirmada a digressão a Paris, em Março de 1911, o Orfeon desdobrou-se em concertos promocionais no Porto, Coimbra e Lisboa, sempre de capa e batina, tendo participado a 2 de Abril na inauguração do primeiro Jardim-Escola João de Deus aberto em Portugal.
A 8 de Abril o Orfeon seguiu de comboio para Paris, com programa coral e serenateiro agendado para o Eliseu, Sorbonne, Associação dos Estudantes de Paris e visitas às manufacturas de tapeçarias. Com data de 1 de Março de 1911, a direcção do Orfeon divulgara junto dos 300 estudantes inscritos uma nota sobre as “Condições para integrar a excursão”, na qual constava expressamente que “O traje académico de capa e batina é obrigatório”.
No ano seguinte, procurando normalizar uma certa iconoclastia de cores e acessórios, a digressão da TAUC a Évora, Beja, Faro, Silves e Lagos, realizada entre 14 e 21 de Fevereiro de 1912, levou a direcção da tuna a divulgar um comunicado de “Informações úteis”, onde se frisava “Devem todos apresentar-se de capa e batina, gravata preta, colete preto, e respectivo distintivo (laçarote no ombro da batina) . Todos os instrumentos devem trazer fitas”.
Entre 1911-1912, na UP, os sócios da Tuna e do Orfeão secundaram as medidas adoptadas em Coimbra. A maior parte dos liceus manteve a capa e batina que já era usada desde a segunda metade do século XIX, ou a ela aderiu. Seguindo na esteira dos movimentos em vias de expansão nas high schools britânicas, norte-americanas e japonesas, as alunas dos liceus de Lisboa e do Porto surpreenderam ao optarem pela invenção de um uniforme facultativo semelhante aos das enfermeiras da Grande Guerra.
Em Lisboa, alunos dos liceus reuniram por alturas de Setembro/Outubro de 1915, com o fito de discutir e aprovar que trajes envergar por alunos e alunas. Estas sessões terão sido participadas por alunos da UL que decidiram adoptar a capa e batina. Alunos mais radicais reclamaram mesmo o retorno da obrigatoriedade de porte, mas na prática o uso da capa e batina ficou confinado aos edifícios do Campo de Santana, a grupúsculos masculinos da Faculdade de Direito e ao “Liceu do Carmo”.
Na UP, em reunião inter-faculdades, realizada em finais de Fevereiro de 1916, decidiu-se implementar o uso generalizado da capa e batina a partir do dia 15 de Março de 1916 . Faltam-nos dados sobre as matérias deliberadas nestas reuniões e perfil dos participantes, não sendo possível afirmar se a decisão abrangeu apenas alunos e alunas da UP, ou se nelas marcaram presença alunos/alunos dos liceus.
A Gazeta de Coimbra, nas suas edições de 27.10.1915 e 4.03.1916 informa que em Lisboa já se viam "meninas" trajadas, certamente liceais. Aliás, a promulgação do Decreto nº 10.290, de 12.11.1924, que procedeu à nacionalização da capa e batina nos liceus e estabelecimentos de ensino superior teve como antecedente imediato os conflitos e movimentos grevistas que em Outubro de 1924 perturbaram os liceus lisboetas. O articulado do referido diploma não teve qualquer aceitação na UC ou nos liceus de Coimbra, persistindo o entendimento masculino segundo o qual as alunas não podiam usar traje académico.
O traje feminino, espontaneamente consagrado em Lisboa no segundo semestre de 1915 é um tailleur preto trapezoidal, à base de saia pela meia perna, casaco cintado, cortado pelo meio da coxa e blusa branca. A gravata demoraria a impor-se. Numa fotografia da turma de finalistas da poetisa Florbela Espanca, captada no Liceu de Évora em 1917, é bem visível o tailleur preto com capa e blusa branca sem laço ou gravata . Em fotografias de inícios da década de 1940 relativas a alunas do Liceu de Évora, a blusa branca ostenta as golas abertas, sem gravata alguma. Já no Liceu de Braga, num programa festivo de 1935, a aluna exibe um papillon preto . No caso do Porto, a gravata terá sido usada pelo menos desde a década de 1920. Assim está documentado numa fotografia tirada em 1925 por uma aluna do Liceu Alexandre Herculano e numa de 1946-1947 relativa ao Orfeão Universitário.
O fato referido era o mesmo envergado pelos corpos de enfermeiras da marinha e da Cruz Vermelha, nos EUA (em azul marinho, com capote e chapéu de abas), e em certos hospitais europeus pela mesma época (em cinzento), conforme determina o Decreto nº 4:136, de 24.04.1918, e respectivos desenhos anexos, que o manda aplicar às enfermeiras militares portuguesas. Ao referido conjunto se adicionou um capote azul-escuro forrado de vermelho e uma barretina, conforme atestam fotografias de época. Este último elemento, resulta de uma transformação do barrete islâmico do magrebe, o "chéchia" ou "kufix", que também era usado desde 1859 em escolas militares britânicas de formação de cadetes ("pillbox hat"). Antes de ter feito a sua entrada triunfal nos liceus de Lisboa, Porto e Évora ("tacho"), em versão unissexo, o "pillbox" já era largamente usado em Portugal por militares, impedidos de oficial e alunos da Academia Militar.

Ia adiantado o século XX quando se acendeu a discussão sobre a necessidade de as alunas da UC tirarem benefícios práticos do uso de um traje de tipo uniforme. Não ter traje académico fazia parte da identidade das académicas da UC desde 1891, ano em que contemporaneamente se matriculou a primeira aluna. A não participação feminina na vida associativa, a ausência de organismos culturais mistos até 1938 e a omissão da cerimónia de formatura de bacharéis e licenciados desde 1910, foram justificando a inércia observada em Coimbra. A nível dos liceus locais, mesmo considerando o Liceu Feminino Infanta D. Maria , nada consta quanto a um hipotético uso de farda, se considerarmos que a bata branca não era propriamente um uniforme escolar.
As alunas da UC tinham o privilégio do uso de pasta de luxo em tecido pintado ou bordado com fitas de seda e capa preta sem uniforme, costume que na década de 1980 ainda era praticado por quintanistas que iam ao Baile de Gala das Faculdades durante os festejos da Queima das Fitas. Era o equivalente aos trajes cosmopolitas de ir à ópera e ao teatro, usados até à década de 1950 em Nova York, Paris, Londres, Milão e Lisboa.
Nos finais da década de 1940 este estado de coisas começou a mudar quase imperceptivelmente. As universitárias de Coimbra estavam a par do uso do tailleur preto nos liceus portugueses e no Orfeão Universitário do Porto. O tailleur tinha vindo a conhecer crescente popularização no Ocidente graças às enfermeiras da Segunda Guerra Mundial e aos corpos de hospedeiras das companhias de aviação civil. As divas de Hollywood exibiam o tailleur e estilistas como Christian Dior apostaram na sua apropriação pela indústria da alta-costura. O peso crescentemente atribuído desde meados da década de quarenta às latadas de começo de ano escolar e às cerimónias de imposição de insígnias (grelos no 4º ano, fitas no 5º ano), começaram a suscitar em alunas da Faculdade de Letras vontade de adopção de um traje académico. No dia da imposição de insígnias às novas greladas e novas fitadas de Medicina e Farmácia, a 19 de Novembro de 1949, a estudante de Germânicas Ilda Pedroso desfilou com um conjunto saia/batina/capa, acontecimento muito comentado no millieu e bem acolhido segundo os relatos recolhidos . Todas as informações consultadas testemunham a opção pela saia embainhada abaixo do joelho, numa época em que os códigos da moralidade e do pudor vigentes em Portugal não poderiam aceitar na mulher o porte de calça comprida, e pela batina masculina também embainhada abaixo do joelho (frock coat), com lapelas de cetim.
Parecia encontrada uma solução, numa instituição onde a cultura histórica não legitimava de ânimo leve nem o tailluer, nem uma distinção formal entre modelo masculino e modelo feminino. No curto prazo, a evolução seria bem outra.
Em 1951 as alunas do Teatro dos Estudantes (TEUC) prepararam uma digressão ao Brasil, tendo decidido levar um conjunto vestimentário funcional que substituísse os custos e os incómodos habitualmente havidos com os vestidos de gala. Ficou decidido tarnsportar nas bagagens o tailleur preto conforme modelo em voga na alta-costura e no pronto-a-vestir. Entre 12 de Agosto e finais de Outubro de 1951 o TEUC actuou no Brasil e visitou a Universidade de São Paulo .
A opção pelo tailleur como que passou despercebida no meio académico. Decisão espontânea, terá contado com o beneplácito de figuras masculinas que integraram a comitiva como Francisco Barrigas de Carvalho (Dux Veteranorum), Maximino Correia (reitor), bem como os lentes João Pereira Dias, Manuel Lopes de Almeida e Eduardo Correia. O protagonismo coube a Maria do Céu Fidalgo, Margarida Costa, Ermelinda Gomes Leal, Ilda Pedroso, Maria Ascensão Albuquerque, Maria Augusta Mimoso e Albertina Botelho.
De 1951 a 1954 não se sabe com rigor que nível de adesão o tailleur terá conhecido em Coimbra, que lhe possa ter grangeado ser mais do que o fato que as alunas do TEUC levaram ao Brasil. Uma coisa é certa, se estivesse popularizado e se fosse querido das estudantes, não teria havido necessidade de o impor por decreto .

Pouco antes da Queima das Fitas de Maio de 1954, o Conselho de Veteranos da Academia de Coimbra (CVAC), após decisão exclusivamente masculina, deliberou impor por "decretus" o tailleur preto à base de casaco preto curto/saia como traje discente feminino. Ficou determinado que nas latadas das Faculdades e imposições de insígnias de Novembro desse ano as novas greladas e novas fitadas não pudessem usar pastas com grelos ou fitas sem o tailleur.
Entre Setembro e Novembro de 1954 Coimbra viveu dias de corrida ao "fato", abrindo desde então as portas ao pronto-a-vestir. A imprensa periódica que efectuou a cobertura dos eventos relatou que a quase totalidade das novas greladas e novas fitadas usava o tailleur. O concentrar das atenções da comunicação social em Coimbra fez esquecer que a mesma indumentária era usada ia para 39 anos nos liceus portugueses e pelo menos desde há 8 anos no Orfeão Universitário do Porto.
A medida decretada em meados de 1954 gerou uma onda de descontentamento entre as alunas que não se sentiam agradadas com o modelo escolhido, ou que liam a obrigatoriedade como um atropelo masculino à sua tradicional prerrogativa de não uso de uniforme académico. Outro pomo de discórdia residiu na imposição das meias altas pretas, quando as estudantes preferiam não vestir meias ou usá-las na cor da pele. Ao longo da segunda metade da década de 1950 as alunas pintarão riscos pretos na parte de trás das pernas. Não vestindo meias, na verdade pareciam estar a usá-las graças ao artifício do risco pintado na pele, o qual imitava a costura posterior vertical que as meias altas femininas da década de 1950 ainda comportavam. Procurando suavizar os descontentamentos, o CVAC integrou o tailleur no "Código da Praxe de 1957 " e manteve a velha prerrogativa do uso de capa preta com vestido de gala. O primeiro grande utente e divulgador do tailleur terá sido o Coral da Faculdade de Letras (CELUC) que se apresentara em público em Abril de 1954.
A decisão, que parecia colidir com os interesses de gestão imagológica da Mocidade Portuguesa Feminina, suscitou as atenções da comunicação social mundana, tendo a revista FLAMA, n.º 353, de 10.12.1954, dedicado o rosto e páginas ao assunto. Se as alunas não foram parte activa na decisão, também a Casa Reitoral liderada por Maximino José Morais Correia (1893-1969) se manteve à margem da decisão tomada pelo CVAC, em respeito à máxima campeante desde 1910 segundo a qual a Reitoria não deveria imiscuir-se nos assuntos dos estudantes (=“A Academia é soberana”).
Vingava assim na UC, por decisão marginal ao senado e decreto assinado à revelia das interessadas, um fato de tipo "high school", ou escola de artes e ofícios (França), cujo figurino e contexto cultural nada tem que ver com a história e as tradições da Alma Mater. O design adoptado não tem originalidade nem comporta valor estético bastante para individualizar no conjunto características artísticas ou patrimoniais. A confecção da saia e do casaco é de tipo pronto-a-vestir. Os tecidos mais utilizados, não sendo ordinários, também não se adequam a um traje contemporaneamente usado em contextos cerimoniais. Os preços praticados pelas lojas do pronto-a-vestir exorbitam o real valor do conjunto de confecção industrial.
Olhando ao que se passa em universidades históricas como Oxford ou Cambridge, nunca foi suficientemente provado que numa universidade como Coimbra haja necessidade de trajes diferenciados para alunos e para alunas, solução que só o desconhecimento do percurso e características das vestes talares poderia justificar.
Nunca tendo conquistado na UC o capital simbólico de que goza nos corpos militares, forças policiais, “business schools”, gestoras de empresas, administradoras e dirigentes intermédias e superiores da administração pública, o “fato” sobreviveu, e no Código da Praxe da Universidade de Coimbra de 2001, mantinha-se a diferenciação de género e autorizava-se a título de acessórios as lapelas de seda, a mini-saia e o colete , numa possível aproximação aos trajes de majorettes.
A impropriedade do “fato” assenta num conceito ultrapassado de normalidade vestimentar determinada pelas elites burguesas em função da permanente diferenciação dos sexos, situação que na UC é materializada pelo dimorfismo casaca/calça comprida e casaco curto/saia. Acrescem a isto a ausência de raiz talar nesta veste e o facto incontornável de o tailleur ser a indumentária das funcionárias da UC em contextos cerimoniais. Com o seu forro de cetim, estolas dianteiras e cabeção, a capa de cerimónia das funcionárias acentua a singeleza da capa da estudante. Outrotanto acontece num confronto entre a capa escolar e a reconstituição etnográfica das capoteiras e capotes de gala exibidos pelas tricanas conimbricenses de oitocentos .

A diferenciação apontada reflecte-se nos preços de confecção do pronto-a-vestir. Atendendo aos preços praticados em 2008-2009, enquanto o conjunto masculino clássico importa em €125, o tailleur custa €84. Confrontando estes montantes com o custo de trajos académicos femininos de outros estabelecimentos de ensino superior criados em Portugal a partir de 1989, o resultado é arrasador: €189,50 na Universidade do Algarve, €148 no Instituto Politécnico de Leiria, €119 para o conjunto da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, €145 no IADE e €155 na Universidade da Beira Interior.

1 Comentários:

Anonymous Alexandra disse...

Olá! Seria possível saber quais as fontes consultadas para este artigo? Achei-o muito interessante!

23 de janeiro de 2021 às 05:15  

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial