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segunda-feira, 14 de dezembro de 2009


Forro original da batina de Bernardino Machado em axadrezado (MBM). Apetece escrever, discreto este da década de 1890 quando comparado com os vermelhos, brancos e berrantes ostentados pelos estudantes nas décadas de 1850-1860. Falta de sobriedade? Nem por isso, se considerarmos que na mesma época os forros das casacas militares também não eram pretos.


Batina de Bernardino Machado: visualização da carcela interna com caseado e botões planos forrados de tecido. Antes de 1910 era impensável que um membro do corpo docente da UC usasse a veste profissional com botões de massa, o que a acontecer seria considerado sinónimo de mau gosto e de vulgaridade.


Batina de Bernardino Machado: canhão da manga e carcela orlamental (MBM).

Batina de Bernardino Machado (MBM). Pormenor da inserção dos bolsos nas costuras posteriores, elemento de confecção também registado em casacas norte-americanas do período da Guerra Civil.


Batina de lente de Bernardino Machado. Plano integral das costas (MBM).


Feito das costas da batina de Bernardino Machado (MBM).


Feito do peito, ombros, colarinho e carcela ornamental da batina de Bernardino Machado. Vista do bolso de peito, de corte oblíquo (MBM). Seda preta cansada e desbotada.


Batina de lente de Bernardino Machado. Vista de frente.
Fotografias realizadas em 2009 no Museu Bernardino Machado (MBM), VNFamalicão, com o apoio da Dra. Paula Lamego.

Bolso metido na costura posterior da aba da casaca, conforme confecção da década de 1860. A batina de Bernardino Machado confirma esta antiga usança.
Casaca do periodo da Guerra Civil norte-americana, 1862.


Plano de pormenor de acabamento de aba de casaca e respectivo forro. Modelo norte-americano de 1862 usado na Guerra Civil.


Costilhas de casaca
Modelo original de 1862, usado por combatente da Guerra Civil dos EUA.


Imagem devocional de São Ivo com borla e capelo de Direito Canónico.


Insígnias de Cânones
Insígnias doutorais da antiga Faculdade de Direito Canónico da Univ. de Coimbra, conjunto rocaille em cetim, veludo e seda verde-esmeralda.
(Imagem de São Ivo, Igreja do Colégio do Carmo, Coimbra)

Património vestimentário (cont.)
O conjunto vestimentário legado por Bernardino Machado

Batina de Lente (frock coat)
A frock-coat exposta no MBM não é seguramente a peça usada por Bernardino Machado enquanto estudante da UC, como também não será a “batina” envergada nos primeiros anos de lente, pela segunda metade da década de 1870.
A “batina de estudante” adquirida e usada por Bernardino Machado entre 3 de Outubro de 1867 e 1873 está documentada em fotografias de 1867 e anos seguintes. O jovem académico figura com o hábito pequeno resultante da reforma de 1863: cabeça descoberta, calças compridas de alçapão, capa talar singela e frock-coat embainhada pela meia perna, sendo esta munida de carcela vertical externa. Bacharel em Matemática e Philosophia Natural em 15 de Julho de 1873, Bernardino Machado teve acto de formatura a 21 de Julho de 1873. Prosseguiu estudos, atingindo a licenciatura em 14 de Janeiro de 1875 e o doutoramento em 9 de Junho de 1876. A cerimónia de imposição de insígnias doutorais ocorreu na Sala dos Actos Grandes quase um mês após a aprovação em acto de conclusões magnas, a 2 de Julho de 1876[1]. A estes três graus era obrigatório comparecer em hábito talar.
Mas o que era o hábito talar de lente da UC entre 1876-1910? Os docentes detentores de ordens sacras, membros do clero secular e regular podiam, por ancestral tradição, usar as vestes próprias da sua dignidade. Com a extinção da Faculdade de Direito Canónico em 1836 e a nacionalização dos bens monásticos em 1834, os lentes clérigos tenderam a rarear no Studium. No tempo de Bernardino Machado era possível encontrar alguns docentes clérigos na Faculdade de Teologia e em Direito, continuando estes a envergar a batina eclesiástica romana de um só corpo. Alguns velhos lentes, doutorados antes das reformas vestimentárias consentidas pela Casa Reitoral em 1863, ainda trajavam o conjunto ferraiolo e loba de corpos duplos. Entre os lentes defensores do abolicionismo, laicismo e republicanismo, vinha a generalizar-se desde a década de 1870 a casaca preta oitocentista munida de carcela vertical dianteira, completada por capa preta talar singela. O calção preto pelo joelho e o sapato de fivela de prata mantinham-se em uso nas cerimónias de colação dos graus, e diariamente pelos docentes clérigos.
Na segunda metade do século XIX não existia na UC um traje docente padronizado. Eram e ainda são, para todos os efeitos, considerados trajes docentes os conjuntos talares específicos dos dignitários do clero secular e regular, os quais desde remota data tinham privilégio de dispensa de capelo. Considerava-se como hábito de lente o conjunto capa preta talar/batina preta romana de um corpo, já sem obrigatoriedade de cabeção preto[2], volta branca e sapato de fivela de prata, mas a maioria dos lentes laicos optava pelo uso de um traje de trabalho ou “pequeno uniforme”, à base de calça comprida/casaca civil/capa. De caminho, piscava-se o olho ao abolicionismo e sonhava-se com o uniforme militar napoleónico consagrado nas academias científicas, ministérios, corpos diplomáticos e escolas politécnicas.
Tudo parece indicar que o Hábito Talar preservado no MBM terá sido encomendado em alfaiataria conimbricense pela década de 1890, correspondendo mutatis mutandis ao modelo presente em fixações fotográficas dos anos de 1896-1897.

O remanescente do hábito talar legado por Bernardino Machado é uma preciosidade, valor acrescido pela autenticidade da confecção artesanal de época e pelo facto de não se conhecerem exemplares congéneres nem antes nem depois do período considerado. Tradicionalmente a Casa Reitoral da UC não preservava trajes nem insígnias. Os trajes e insígnias dos lentes, de ordinário guardados num vestiário anexo à Sala dos Actos Grandes, eram levados pelos respectivos proprietários no momento da jubilação e utilizados como andaina mortuária. Excepcionalmente poderia um lente jubilado ofertar as suas insígnias a um santo da sua devoção ou a um jovem doutor que fora convidado a apadrinhar, mas este não era o procedimento habitual.
O modelo da frock-coat adoptado por Bernardino Machado foi clandestinamente introduzida na UC nos alvores da década de 1850 pelos estudantes não conformistas adeptos da laicidade. Nos primeiros anos, a frock-coat simulava ser uma batina na confecção do corpo dianteiro (mantinha a carcela de tipo clerical e o colarinho raso), mas as mangas e o talhe das costas tinham adoptado o feitio da casaca burguesa oitocentista.
A partir de 1863, fruto de medidas reitorais apostadas na simplificação e laicização do hábito talar, a frock-coat dos estudantes começou a generalizar-se nos círculos de lentes republicanos e dos adeptos do laicismo e do cientismo[3]. Contudo, os eclesiásticos membros do corpo docente de Direito e de Teologia continuavam a envergar no dia-a-dia conjunto clerical completo.
O debate sobre o abolicionismo vestimentário conhecera o seu momento alfa na Revolução Francesa de 1789, conjuntura que ditara a abolição liminar dos trajes profissionais judiciários e universitários. Ulteriormente, Napoleão Bonaparte fizera retomar trajes judiciários e universitários de tipo toga, mas expurgados da anterior simbologia cristã ou monárquica (murças reitorais de arminhos, barretes de borlas dos lentes da Sorbonne).
As propostas napoleónicas que faziam furor na Europa de meados do século XIX não eram as togas talares mas sim o chamado “grand uniforme” de inspiração militar, progressivamente generalizado nas escolas politécnicas, governos civis, academias científicas, membros de corpos diplomáticos e estadistas. O equivalente civil do grande uniforme bordado e agaloado era o puritano fato preto masculino de pano liso, composto por calça comprida, colete, casaca de abas de grilo e cartola, considerado o traje de acreditação sócio-profissional de políticos, diplomatas, banqueiros e empresários. A sua consagração e generalização ocorre em França após a revolução burguesa de 1848, num acto de afirmação da média e alta burguesia que não desejavam confundir-se com os padrões de vida dos camponeses, aristocratas, clérigos, operariado e pequenos-burgueses[4].
Em 1834 o governo central de Madrid declarara abolido em todas as universidades o antigo uniforme dos estudantes, e em 1850 fizera substituir a capa, a loba e o barrete dos doutores pela toga e barrete poligonal de advogado. Em países do Norte da Europa, de que era exemplo a Suécia, a cartola alta e a casaca burguesa de tipo grande orquestra colhiam as preferências dos docentes.
Em meados da década de 1850, concretamente em 1856, a Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa consagrou uma toga preta talar como traje de porte quotidiano e uma versão do “grand uniforme” napoleónico a título de farda de gala. Traje quase contíguo a este campeava desde meados da década de 1830 como uniforme de gala dos governadores civis e administradores dos concelhos, tendo sido adoptado em 1860 pelos magistrados do Tribunal de Contas. A Academia das Ciências também se rendera em 1856 ao paradigma napoleónico do Institut de France. Se o “grand uniforme” adoptado pela Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa em 1856 apelava a valores militares, a toga preta talar remetia para o universo do judiciário, constituindo uma bem conseguida fusão entre a beca dos juízes e a toga dos advogados. Nas décadas que se seguiram, a solução politécnica faria sucesso na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa e na Politécnica do Porto.
Os estudantes e lentes da UC acompanhavam com exaltado entusiasmo os discursos produzidos na Europa continental em torno da laicização da universidade, do abolicionismo de trajes, insígnias e rituais. A guinada em direcção às soluções militares e judiciárias parecia imparável.
A tirada de Cícero, “cedant arma togae”, não parecia ter lugar na cultura universitária masculina oitocentista tributária do paradigma germânico. Numa sociedade tradicional académica dominada pelos valores da masculinidade convencional, imperavam códigos bastante rígidos assentes na visão masculina do traje, na esgrima, na frequência da taberna, do bordel e da livraria, no duelo, na caça, no papel cortejador da serenata, sendo o travestismo muito apreciado[5]. Olhado como símbolo da virilidade, da ordem e da compostura, o paradigma militar via-se acolhido pelos corpos policiais emergentes, carteiros, filarmónicas, bombeiros, porteiros de hotel e menores institucionalizados em orfanatos. As empresas capitalistas, crescentemente rendidas ao marketing e à publicidade sincretizaram a ideia de qualidade com a imagem uniformizada, exibindo porteiros e empregados fardados de soldadinhos.
Com efeito, o incessante recuo e desprestígio do paradigma eclesiástico (que constituía matriz do cerimonial e da vestimentária conimbricense), parecia ser confirmado pela adesão à moda militar e/ou judiciária. Se as novas universidades fundadas nos domínios britânicos continuavam a consagrar a “gown” e as insígnias doutorais da tradição anglo-saxónica, os politécnicos portugueses, as universidades espanholas, italianas e francesas não pareciam ter dúvidas quanto à toga de inspiração judiciária. A partir de 1817, os corpos docentes das novas universidades belgas de Gand (1817), Liège e Libre (1834) consagram invariavelmente a toga talar.

O modelo frock-coat usado por Bernardino Machado e o sucedâneo puritano que foi normalizado em 1915 como peça nuclear do traje profissional docente masculino da UC não pode considerar-se “evolução natural” da batina eclesiástica, e muito menos da antiga loba talar de dois corpos.
O traje clássico da UC, com elementos comuns aos que se usaram em Salamanca, Bolonha, Paris e Oxford nos séculos XV e XVI era a loba dos doutores, veste talar de dois corpos sobrepostos próxima da beca judiciária portuguesa. Progressivamente abandonada desde a Revolução Liberal, a loba foi sendo mantida pelos docentes até aos anos de 1850, mas os estudantes logo após 1833 rejeitaram-na, tendo aderido primeiro à batineta de um corpo (décadas de 1830-1840), e pouco depois da Patuleia à frock-coat.
Não entroncando a frock-coat na batina eclesiástica romana, nem na antiga loba de dois corpos, quais as suas raízes?
Na segunda metade do século XVII surgiu em Paris e em Londres, como traje de corte, uma casaca de talho evasé, cortada abaixo dos joelhos, munida de mangas rematadas em avantajados canhões e carcela dianteira de tipo clerical, sem colarinho. Em Londres, esta nova casaca que vinha substituir o gibão curto, logo foi baptizada de “túnica persa”. Foi publicamente apresentada pelo Rei Carlos II em 15 de Outubro de 1666, constando de um colete (vest) frontalmente abotoado até meio da perna e sobre este a dita “túnica”. Nos dias imediatos, os cortesãos londrinos imitaram o monarca. Pouco depois, a 22 de Novembro de 1666, Luís XIV terá determinado que os seus criados e nobres passassem a vestir a “túnica à moda persa”. O colete era a peça mais bizarra de todo o conjunto. Descendo os dois panos dianteiros até ao joelho, já o tecido das costas apertava e alargava com cordões dispostos conforme o sistema do corpete feminino e a respectiva bainha era cortada pelo fundo das costas. Havia quem o enfiasse pela cabeça como era costume fazer-se com o tabardo dos mosqueteiros.
Usada aberta pelos cortesãos e militares, esta casaca foi adoptada pelo clero rural francês por volta de 1690, num conjunto completado por sapatos pretos de salto alteado e fivela de prata, meias de seda pelo joelho, calções estreitos, colete descido ao joelho, mantéu, chapeirão de feltro e eventual regalo de peles. Uma primeira apropriação puritana deste vestuário ocorre pela mão dos Quackers, num apelo aos valores da sobriedade, seriedade, negação do porte de armas e morte ostensiva dos ornatos.
Por volta de 1730 a frock-coat era confeccionada à base de três panos inteiriços, um costal e dois dianteiros, unidos por quatro costuras nos ombros e flancos. O pano traseiro comportava racha central descaída, delineada entre o fundo das nádegas e a bainha inferior, fechando com 5 a 8 botões forrados. Dos lados eram cosidos dois machos, com arranques anormalmente descaídos. Os dois panos dianteiros exibiam bolsos muito descidos, com portinholas guarnecidas por 2 a 3 botões forrados. A carcela dianteira podia atingir 16 botões forrados, com as linhas do caseamento marcadas em relevo. As bocas das mangas exibiam canhões de aparato, com cerca de 12 a 15cms de ilharga, fendidos em V pelo lado de fora dos punhos, e fixados de cada lado por fiadas de três botões.
Reflectindo as flutuações da moda, a frock-coat preta foi consagrada como trajo nacional pela Revolução Francesa, após a qual passou a ser confeccionada em tecidos pretos, castanhos, cinzentos e azuis-escuros de sarja e lã. Espelho da abolição das desigualdades, a ornamentação aristocrática à base de galões de ouro e prata e os bordados florais desaparecem, imperando doravante um puritanismo assente na proclamação da morte simbólica do ornato[6] e dos tecidos de damasco, seda e cetim. O despojamento do vestuário masculino e a geometrização da confecção são acompanhados da pública condenação de cabeleiras, jóias exibitórias, rabos-de-cavalo, sinaizinhos postiços de rosto, cremes e pinturas faciais. Estigmatizados os paradigmas clerical e aristocrático, o burguês liberal cultiva uma imagem de austeridade assente nos valores do trabalho, da poupança, da manutenção da ordem e da imagem do “bom pai de família” propalada pelo estado de direito, desconfiando do ócio. Os cuidados corporais passam a ser suspeitos de frivolidade ou de ausência de virilidade. Os têxteis admitidos nos cenários burgueses masculinos mantinham à distância os cetins, as sedas e os tecidos em relevo. O corpo, suas secreções biológicas e ruídos passam a ser severamente vigiados e punidos por um sistema fanático das boas maneiras que, para lá das aparências convivia bem com a desigualdade de género, o trabalho infantil, a pedofilia, o bordel, o duelo, a guerra, o capitalismo selvagem e o colonialismo.
Traje de viagem de clérigos, a frock-coat conheceu longamente os favores dos militares. Fora das situações cultuais, a Concordata Francesa de 1801 impunha-a. Muito cintada nas décadas de 1830-1840, ao gosto dândi, e ainda com as mangas marcadamente estreitas e compridas, seria alvo de apropriação e normalização pelos exércitos norte-americanos durante a “American Civil War” de 1861-1865. Uma versão acentuadamente austera e geometrizada foi adoptada pelas duas forças em confronto, sem prejuízo de variantes de gala para militares graduados. O exército da União determinou em regulamento de 1861 que a frock-coat passaria a ter uma tipologia destinada aos capelães, traje que se manteve praticamente inalterado até 1884:

-“vest” ou colete preto de lã, com costilhas em alpaca de algodão, de abotoar pela frente entre a bainha inferior e a base do colarinho. Tinha colarinho raso, e abertura caseada à base de 9 botõezinhos forrados, 2 bolsos no baixo-ventre e um terceiro no peito esquerdo;
-calças compridas de lã preta com braguilha de aba, cós alto munido de 7 botões de massa, servindo 6 deles para fixar os suspensórios. Junto ao fundo da coluna vertebral, o cós abria em V, sendo ajustável com duas presilhas e fivela;
-chapéu preto de feltro, adornado com emblema à base de simbologia religiosa e cordão rematado com glandes, em evidente aproximação ao “capelli” ou chapéu dos cardeais e papas;
-frock-coat de lã preta, tipicamente oitocentista, com colarinho raso, parte posterior à base de racha central solta e dois machos laterais simples. Carcela dianteira disposta entre a base do colarinho e o baixo-ventre, de fechar com 9 botões forrados. Bolsos disfarçados nas pregas das abas posteriores.

A frock-coat consagrada pelas forças militares norte-americanas em confronto entre 1861-1865 era (com pequeníssimas diferenças ao nível da estrutura da carcela) o mesmo modelo adoptado na UC pelos estudantes adeptos dos princípios do laicismo e do abolicionismo. Catálogos de modas, ilustrados, com legendas em inglês e francês, ajudavam a reproduzir os mesmos modelos a uma escala cosmopolita globalizada. Era o caso das gravuras divulgadas no Portugal de 1863 pel’O Civilizador[7].
A respeitabilidade conferida à casaca escura, frequentemente assimilada aos valores puritanos da época vitoriana, a que não eram alheios os códigos burgueses do trabalho, poupança, “progresso” e disciplina, ditou os dias de glória da frock-coat. Muito próximas da solução à capelão norte-americano e à académico laico conimbricense, são as versões posteriores amplamente divulgadas na Grã-Bretanha a propósito da “Cavalry Officers Frock Coat (ca. 1910, ricamente ornamentada nas mangas e peito) e no território Indo-Paquistanês a propósito da “Nehru Frock Coat” (décadas de 1940-1950: seda e brocado, costas totalmente lisas, punhos com 3 botões, 2 bolsos dianteiros oblíquos, carcela de 5 botões forrados)[8].
Na sua recta final, a frock-coat usada pelos estudantes da UC nada mais era do que uma casaca preta burguesa, conquanto entusiasticamente adoptada pelos estudantes liceais de quase todo o Portugal. A linguagem de masculinidade da frock-coat era tal que a UC não conseguiu ou não soube responder às primeiras incursões femininas, bem ao contrário do que estava a acontecer nas universidades da Grã-Bretanha, Escócia, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e EUA.
Versões mais ou menos individualizadas da casaca oitocentista, via de regra associadas à cartola de feltro, viviam tempos de imparável adesão junto dos elencos governativos republicanos, instrumentistas de grandes orquestras clássicas, espectáculos dançantes levados à cena nas cidades cosmopolitas ocidentais (Brodway, Molin-Rouge), membros de corpos diplomáticos, noivos aristocratas e burgueses, e universidades próximas da esfera de influência sueca.

Voltemos à frock-coat legada por Bernardino Machado.
O que se visualiza é uma casaca burguesa oitocentista confeccionada em tecido preto de sarja-seda, apresentando sinais de desbotamento e desgaste resultantes de uso quotidiano intenso.
É constituída por três corpos principais, as costas e os dois panos dianteiros. Apresenta duas mangas tubulares simples, ligeiramente recurvadas, do mesmo tecido e padrão cromático, unidas nas costuras dos ombros, com 15 cms de largura e 30 cms de diâmetro ao nível da boca da manga. A zona do punho comporta um canhão simples, insinuado por pesponto de máquina de costura[9], com 9,5cms de ilharga, e carreira de dois botões forrados. O comprimento máximo da manga, medido do punho à costura do ombro, atinge 62cms.
O corpo principal comporta colarinho raso, de tipo clerical/ou militar, anormalmente atrofiado pois não ultrapassa 1 cm de altura, fechando na frente com colchete metálico preto. Os dois corpos dianteiros são talhados num só pano, omitindo assim o recurso às então frequentes costuras horizontais dispostas na linha do baixo-ventre. O pano frontal da esquerda remata com uma carcela vertical fingida. A carcela interna, talhada de alto a baixo, exibe 11 caseados ocultos, à esquerda, e 11 botões cilíndricos forrados. Por fora deste dispositivo foi sobreposta uma carcela ornamental de aparato, de 4cms de largura, balizada entre dois pespontos paralelos, comum às antigas vestes talares ocidentais (togas, becas, batinas eclesiásticas) com 19 caseados fingidos e outros 19 botõezinhos forrados).
Ainda na parte da frente desta veste existe um bolso peitoral, talhado no lado esquerdo, ligeiramente oblíquo, pespontado, usado pelo detentor para exibição de lencinho branco e relógio de bolso. Da base do colarinho à bainha inferior atinge este exemplar 1,10m de altura, denunciando assim a baixa estatura do portador, numa época em que a “batina de lente” laico não poderia ser cortada acima da meia perna. As costas foram talhadas em quatro quartos, dois de cada lado da coluna vertebral, com 46 cms de altura (altimetria cintura/base do colarinho). Da linha da cintura para baixo coseram-se dois panos separados por racha central, ladeada por dois machos singelos, com 34,5cms de altura, estes encimados por botões forrados. São as chamadas costas de feitio de redingote, herdadas das casacas de finais de setecentos e das casacas de abas de grilo estilo império[10].
Tem esta “batina de lente” 82cms de perímetro de cintura e 18cms de costura de ombro (do colarinho ao rebordo do ombro). Como curiosidade, em vez de bolsos funcionais apensos na linha da cintura comporta duas falsas algibeiras no interior dos machos traseiros, às quais se acedia discretamente, dispositivo confirmado por casacas do período da guerra civil norte-americana que se encontram musealizadas. O forro é de axadrezado amarelado, conforme os procedimentos de alfaiataria em voga na Europa e na América do Norte entre as décadas de 1850-1890.

Capa Talar
Capa confeccionada em tecido preto de sarja, acusando sinais de desbotamento e de desgaste. Espécime de uso corrente, apesar de manifestamente inferior ao capote clerical romano de Inverno (“tabarro”, com gola de veludo, romeira e alamares) e à maioria das capas domingueiras femininas e capotes populares portugueses em uso no século XIX, o certo é que conseguiu afirmar-se em contextos cerimoniais.
O tecido é vulgar, distanciado da seda preta dos doutores. A leveza da peça parece apontar para a manutenção da velha dualidade vestimentária assente em enxoval de Verão/Inverno, distinção que as tricanas da cidade também adoptavam nos seus xailes.
É constituída, na parte superior, por colarinho raso, com 44 cms de extensão e 3cms de altura, sulcado por 3 linhas de pespontos de máquina, duas paralelas superiores e outra a meio da ilharga. Segue a anatomia corporal, assentando nos ombros com costuras de 11 cms. Está organizada em dois corpos verticais de amplo panejamento evasé, com 1,44m de altura medidos da bainha inferior à base do colarinho. Estes corpos unem de alto a baixo pela linha da coluna vertebral, abrindo para os flancos e frente com 3 panos unidos por costuras oblíquas. Os pespontos do colarinho prolongam-se nos embainhados dianteiros e inferior. Em vez de cordão de borlas, o colarinho fecha na frente com um cordel ordinário.
Estamos em presença de uma capa talar de lente, própria para a estação do calor, não cerimonial, peça vestimentária que reflecte o debate em curso à época sobre a laicização do ensino e da UC. Querendo fugir à feição eclesiástica, esta opção não consegue ocultar um conjunto de referências que desde o século XVI passaram pela capa dos jesuítas[11], pelos seguidores de São Camilo de Lellis (1550-1614)[12], “esculápios” de São José Calasâncio (1557-1648), ou pelos clérigos da Cruz e Paixão que tomam como referência a vida e obra de São Paulo da Cruz (1694-1775)[13].
Na conjuntura em epígrafe havia dados importantes que sendo conhecidos, não eram propositadamente postos a debate. Na mesma época, a capa de gala em cetim preto, com estolas dianteiras e cabeção posterior, continuava a ser usada diariamente, quer em contextos laborais quer cerimoniais, pelos magistrados dos supremos tribunais de Portugal e do Brasil. Em Portugal, as magistraturas Judicial e do Ministério Público absorviam uma percentagem considerável dos bacharéis de Direito formados na UC, nunca tendo sido revelados dados que atestem que estes deram continuidade aos protestos juvenis no sentido de tentarem por em causa a beca judiciária.
ANOTAÇÕES
[1] Para as datas da obtenção dos graus académicos de Bernardino Machado, vejam-se os dados presentes em António de Vasconcelos, Escritos vários, Volume II, 2ª edição, Coimbra, 1987, AUC, p. 108.
[2] O cabeção era uma tira de pano preto, forrado, que se enfiava pela cabeça, com duas abas. A dianteira cobria o peito e descia até à linha do ventre, e a traseira cobria as costas, descendo até à cintura. Como era aberto dos lados, prendia-se nos flancos com quatro fitilhos que se atavam em forma de laçarotes. Na parte superior, à volta do orifício de entrada da cabeça, encaixava-se a volta branca.
[3] Para a distinguir da casaca dos estudantes, os alfaiates localmente activos em finais do século XIX chamavam-lhe “batina de lente”, expressão que conquistou foros na gíria e chegou aos finais do século XX. A propósito de uns versos feitos para serem cantados nas Fogueiras do São João pelo estudante António Fogaça, constou que o verso “Ao som da guitarra que trina dolente” passou a ser interpretado pelo rancho do bairro de Montarroio como “Ao som da guitarra batina de lente”. Cf. Octaviano Sá, A tricana no folcore coimbrão, Coimbra, Edição da Comissão Municipal de Turismo, 1942, pp. 47-48.
[4] Depois da Primeira Guerra Mundial o fato burguês de três peças, agora com a casaca subsituida pelo casaco curto, será mundializado como imagem de marca dos “colarinhos brancos”. Expressão presente no estudo-ensaio de Francisco Alberoni, “Observações sociológicas sobre o vestuário masculino”, in Psicologia de Vestir, 3ª edição, Lisboa, Assírio e Alvim, 1989, pp. 51-63 (1ª edição de 1975).
[5] Valores sintonizados com os padrões portugueses dominantes. Comparativamente, vejam-se algumas imagens de época em Joaquim Vieira, Portugal. Século XX. Crónica em imagens. 1900-1910, Lisboa, Círculo de Leitores, 1999.
[6] Comparando os percursos da casaca burguesa com os da jaqueta/jaleco popular masculina, vale a pena colocar em evidência os modelos de luxo, em tecido preto de merino e astracã, com costuras, mangas e golas orladas e emprego de botões e alamares.
[7] É nos anos de 1860 que o governo japonês inicia a ocidentalização da indumentária tradicional.
[8] Na década de 1990 a princesa Diana de Gales popularizou uma casaca deste tipo, com lapelas abertas no peito, combinada com calça comprida.
[9] A máquina mecânica de costura foi comercializada na cidade de Boston, EUA, pelo inventor Isaac Merrit Singer (1811-1875), a partir de 1851, com base num modelo pouco eficiente que fora concebido por Howe. A solução Singer apresentava como vantagens imediatas a agulha vertical e a lançadeira de vai-e-vem, movidas pela acção de uma roldana de tipo leme de piloto. Fundada a Singer em 1851, nesse mesmo ano foram comercializados os primeiros modelos portáteis em ferro. Em 1854, a Singer abriu uma filial em França que rapidamente fez distribuir o produto pela Europa. Em 1858 a Singer chegou ao Brasil. Em 1890 a empresa dominava 80% dos mercados mundiais, produzindo e distribuindo modelos portáteis manuais e modelos de pedal. Existe exemplar da primeira patente no London Sewing Machine Museum. As primeiras máquinas de costura terão entrado em Portugal entre a segunda metade da década de 1850 e a década de 1860, sendo admissível que as primeiras levas tenham sido protagonizadas por emigrantes anónimos açorianos. Para informação adicional e imagens: “Singer. History”, http://www.singer.com/company/history.html; “The history of sewings machines”, http://inventors.about.com/od/ssartinventions/a/sewing_machine.htm; “Sewing machine history”, http://www.seawalot.com/sewing_history.htm; “Sewing machine history”, http://images.google.pt/; “Singer sewing machine Co. history of the company”, http://images.google.pt/ (acedidos em 26.09.2008).
[10] Acompanhe-se a descrição técnica das casacas inventariadas e fotogradas no catálogo O Traje Império (1792-1826) e a sua época, Lisboa, Museu Nacional do Traje, 1992.
[11] Veja-se o retrato de Santo Inácio de Loiola por Jacopo del Conte, “Santo Inácio de Loiola”, Roma, 1556, Casa Geral da Companhia de Jesus.
[12] Cf. a tela “São Camilo na Glória”, existente na Igreja de Santa Ninfa, Palermo, Itália.
[13] Visualizem-se algumas imagens confirmativas em António M. Sicari, Atlas Histórico dos Santos, Lisboa, Edições INAPA, 2006.