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sexta-feira, 28 de agosto de 2009


Outra peça de indumentária regional que conseguiu escapar às purgas da moda urbana foi o capote alentejano, que a par do gabão da Beira Litoral e da capa de honras de Miranda configura uma das mais notáveis peças do vestuário regional português.
A sobreviência deste tipo de peças possibilita perceber até que ponto outros conjuntos vestimentários portugueses foram alvo de simplificação ou de degradação. Em 1888, José Ramalho Ortigão intentou um confronto estético entre este tipo de traje de honra ou de festa e aquilo em que se tinha vindo a tornar a capa e batina de Coimbra. Assumindo um discurso propositadamente burlesco e conservador, Ramalho conclui dizendo que em sua opinião o traje académico deixara de ser um traje de festa ou de honra. Que a Ramalho assistia alguma pertinência, viriam a demonstrá-lo os postais turísticos ilustrados e alguma cerâmica kitsch.

Capa de honras de Miranda do Douro segundo postal ilustrado.
À medida que sobe de tom a voz dos estudantes de Coimbra contra o uniforme imposto pela universidade em que se encontram matriculados, com um crescendo de alterações morfológicas que só estabilizarão após 1910, os etnólogos começam a "descobrir" alguns trajes regionais de festa.
Um dos mais notáveis pela riqueza ornamental é a capa de honras do município de Miranda do Douro. Ao contrário das mantilhas, biocos, cocas e capa e batina, a capa de honras embeveceu os etnólogos, seduziu os pintores e maravilhou os literatos. Eis o exemplo de uma peça de indumentária que sobreviveu à normalização imposta pela moda burguesa urbana e conseguiu transformar-se num autêntico ex-libris patrimonial.

Mantilha e véu tradicionais de Portalegre. O debate ilustrado oitocentista balizado entre reaccionário versus progressista não elegeu apenas como alvo preferencial o hábito talar académico conimbricense. O capote e capelo dos Açores, o capote e bioco do Algarve e as várias mantilhas e cocas (Coimbra) foram erradamente associadas à identidade visual da mulher islâmica e alvo de campanhas denegridoras.
Tratava-se de um debate duplamente armadilhado e sem solução a contento: primeiro porque os críticos da subalternização da mulher islâmica estavam a produzir a manter em vigor no Ocidente códigos civis e criminais que consagravam explicitamente a inferioridade da mulher; segundo, porque na cultura provincial portuguesa os capotes, capelos e mantilhas eram concebidos, apropriados e exibidos pelas mulheres como vestes de aparato que simbolizavam aquisição de honorabilidade e reforço de estatuto social.


Atraso cultural e civilizacional? Enquanto alguns estudantes de Coimbra esgrimiam argumentos que pretendiam comprovar que o hábito talar de dois corpos era sinónimo de obscurantismo e ultramontanismo, a Faculdade de Medicina da Bahia e a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro adoptavam com traje de gala o hábito talar duplo.
(foto: docentes da antiga Faculdade de Medicina da Bahia)


1907: saída da procissão do Corpus Christi da Sé de Lisboa. A fotografia é de inesperada riqueza informativa. Os caramistas da Patriarcal reproduzem a indumentária da Casa Papal (crocia) e exibem quatro mitras.


Outra variante do hábito talar: neste encontro religioso em Chicago na década de 1920, o prelado caminha ladeado por um camarista vestido com batina e garnacha (dita "crocia"). Nesta variante, usada pelos camaristas da Casa Papal e da Patriarcal de Lisboa, a sobreveste não incorpora bandas dianteiras e exibe meia-manga dupla ornada de folhos e virola. Por aqui se pode ver com algum rigor como seria a ornamentação primitiva dos ombros das becas dos magistrados.


Outra variante da loba, com exemplos documentados em Itália, Espanha, Portugal e Grã-Bretanha: a sobreveste é uma garnacha munida de bandas dianteiras, amplo cabeção a descair pelas costas e longas mangas tubulares fendidas para a saída dos braços.
Foto: encontro de vergers na Catedral de São Paulo


Variantes do hábito talar de dois corpos sobrepostos ainda em uso nalgumas catedrais britânicas: sotaina ou veste interna com abodoadura de trespasse, sobreveste ligeiramente mais curta, com pregas entre as omoplatas e meias mangas. Na versão conimbricense, a veste interna era de vestir e despir pela cabeça, situação pouco cómoda a que alude Teófilo Braga na sua "História da Universidade de Coimbra" (1902).


Retrato de corpo inteiro do Cardeal Ludovico Madruzzo (1532-1560) por Giovanni Battista Moroni. Trabalho de ca. 1560, integra o acervo do Art Institute of Chicago. Madruzzo enverga uma loba quinhentista de modelo semelhante à usada nas universidades e catedrais inglesas e pelos magistrados portugueses. Semelhante ao modelo figurado por Moroni, a loba conimbricense não tinha bandas dianteiras nem cabeção costal. É contra um modelo vestimentário desta família que os líderes estudantis da facções progressistas de oitocentos levantam recorrentemente protestos, sempre com os olhos postos no abolicionismo do uniforme ou na sua conversão num trajo singelo de características pró-burguesas ou pró-militares.

III - Património...
(Académicos de toga e académicos de espada)
O boné militar prussiano, que em Portugal ficaria profundamente associado aos maquinistas e fogueiros de comboios, tipógrafos, padeiros urbanos de Lisboa, moços de fretes e aguadeiros galegos , faria fortuna entre os estudantes da Europa Central e do Norte. Adoptado a partir dos corpos de cavalaria prussianos, o boné de pala preta rígida aparece registado em gravuras de 1815, e numa cena da década de 1820 que mostra universitários germânicos a perfurar bonés com espadas. Em 1827, na Universidade de Gottingen, os “clubb” académicos de esgrima traziam aprovados quarenta bonés de cores diferentes, classificados de acordo com as origens geográficas dos matriculados . Uma gravura de 1831 alusiva aos duelos de alunos da Universidade de Tubingen regista bonés de tecido verde, branco e carmesim, sempre com pala escura rígida .
Em 1852, esta cobertura de cabeça é observada em estudantes de Jena, e poucos anos volvidos serviu de motivo de capa a uma brochura dedicada a cantos goliardos estudantis (Allgemeines Deutsches Kommersbuchs, 1858) . Em 1863 os alunos da Universidade de Berlim que festejaram a guerra da independência foram fotografados com o mesmo tipo de boné. Em 1900, o pintor Gemalde von Georg Muhlberg aflorou o duelo estudantil e uma sessão de cantos goliardos alemães (“Auf die Mensur”, “Sabelmensur”, “Cantus”), tendo retratado a presença do boné escolar numa trintena de quadros belle-époque .
Nos dias de grande gala, associados a paradas cívicas, cerimónias académicas e recepção a altos dignitários, os estudantes alemães trocavam o boné de pala e as vestes civis por um uniforme de ostentação com bota de couro alta, calça branca, dólman de alamares peitorais, faixa de ombros e barretina redonda à cadete profusamente agaloada a ouro.
A partir de universidades germânicas como Bona, Gottingen, Heidelberga e Tubingen, o “mutze” rapidamente irradiou para a Suécia, Noruega, Suíça, Áustria, Finlândia, Islândia, Dinamarca e universidades belgas não católicas (“la penne”) .
O “studentmossa” de pala preta e copa branca de tecido começou a ser usado pelos estudantes da Universidade de Uppsala, Suécia, em 1845, na sequência de um encontro de académicos em Copenhaga . Na Noruega, os estudantes do ensino secundário e superior apropriaram-se do boné militar prussiano, baptizando-o de “duskelue” desde os anos de 1856. Neste país, os estudantes dos cursos de engenharia fizeram adicionar ao boné um cordão preto rematado em borla, costume que em 1879 passou para a Universidade Tecnológica de Calmers, em Copenhaga .
Na Finlândia, a Universidade de Helsínquia não ficou imune à voga do boné. Introduzido por volta de 1870, o “teekari” é usado desde então por alunos e alunas dos ensinos secundário e superior. Anualmente, no dia um de Maio, os estudantes da Universidade de Helsínquia organizam festejos académicos à base de cortejo alegórico, concerto musical, libações báquicas e piquenique (“wappu”). Uma versão gigantesca do “teekari” é içada por uma grua e colocada na cabeça da estátua de Havis Amanda. Tal como acontece na Noruega e na Suécia, o boné munido de borla preta é específico dos estudantes de engenharia (“teekarilakki”).
O “studenterhue” é ainda usado pelos estudantes dinamarqueses desde 1856, e pelos da Islândia (“stúdentahúfa”).
Os alunos católicos de Louvaina que combateram em Itália ao lado das forças papais e assistiram à tomada de Roma em 1870, regressaram à sua Alma Mater com o “colbach” dos zuavos húngaros, um barrete redondo, com borla pendente, de origem islâmica (“chechia”, “kufix”), que em 1859 tinha começado a ser usado em academias militares britânicas como barrete de cadete (“pillbox hat”) e entre 1890-1930 haveria de gozar dos favores dos estudantes do Liceu de Évora, liceus do Porto, liceus de Lisboa (“tacho”) e de franjas de alunos da UC (ca. 1880-1910) , não perdendo de vista o seu porte obrigatório no Colégio Militar.
Nas universidades austríacas segue-se a tradição germânica do boné de pala, e do grande uniforme militar à cadete. Nos estabelecimentos de ensino superior da Suíça os bonés de pala e as barretinas à cadete reproduzem a tradição germânico-austríaca. Neste país foram consagrados seis tipologias de coberturas de cabeça. “Le sturmer” de pala preta, com a copa redonda descaída sobre a pala, associado aos alunos tradicionalistas, que também foi usado em França nas escolas de artes e ofícios. “La tellermutze” ou “La stella”, um boné de tecido, de pala preta, variando em cor, com letras bordadas na copa. “Le schlapper”, semelhante ao “tellermutze”, apresentando copa mais baixa e arredondada, com a cruz helvética no centro da copa. A barretina de cadete é uma cobertura de prestígio e tem pelo menos duas variantes. “Le tonneli”, em tecido alaranjado, com letras na copa, é exclusivo de antigos estudantes. “Le cerevis”, igual ao “tonneli” é uma barretina de luxo agaloada a ouro, usada pelos veteranos com farda militar. Caso o portador seja “fuchsmajor”, a barretina pode comportar uma cauda de raposa pendente .
A procura de símbolos estudantis distintivos esteve na origem de uma reunião inter-estudantes belgas em 1877, cujos resultados não passaram de um enunciado de intenções. No ano lectivo de 1894-1895, impelida pelo estudante Edmond Carton de Wiart, surgiu em Louvaina a Société Generale Bruxelloise des Étudiants Catholiques, instituição que desencadeou uma operação de naturalização do “colbach” zuavo, anos mais tarde rebaptizado “La calotte” . Conhecido como o boné dos universitários católicos valões, em 1898 “La calotte” já tinha penetrado nas comunidades estudantis de Liège e de Gand.
Dois acontecimentos distanciados entre si dez anos marcaram a segunda metade do século XIX em termos de invenção de tradições estudantis europeias. Em 1878, uma exuberante formação tunante, conhecida por Estudiantina Española actuou demoradamente em Paris, originando um fenómeno de tunomania que nos anos seguintes alastrou a estabelecimentos de ensino de Portugal e da América Latina, como a Estudiantina Española de Valparaíso (Chile), fotografada com traje à espanhola em 1891.
Em Junho de 1888 múltiplas legações académicas europeias estiveram presentes no 8º Centenário da Universidade de Bolonha. As rivalidades imperialistas e o clima de nacionalismo exaltado, empolados pela Conferência de Berlim e pela partilha de África, geraram nas legações académicas não detentoras de trajes ou de insígnias um sentimento de menoridade cultural. Consequência imediata, a legação académica francesa regressou com um barrete renascentista da região de Bolonha, o qual seria alvo de intensa tradicionalização nos meios estudantis com a designação de “La faluche” (=“la feluca”) . Assim, nas festividades estudantis da Université de Montpellier, realizadas em 1891, os delegados da associação académica fizeram-se fotografar em casaca burguesa, bandeira e “faluche”.
Bolonha, secundada por outras universidades italianas, não ficaria de braços cruzados. Os estudantes ligados à animação de formações goliardas exibiram um chapéu neo-medieval de aba gótica bicuda, à Robin Hood, crismado “La feluca” (“pileo”, “goliardo”). Esta tradição conheceria grande implantação nalgumas das universidades históricas italianas, quase sempre completada por uma capa de fantasia.
Em território peninsular, refira-se a reunião de legações estudantis espanholas e de Coimbra em Madrid, nas comemorações do Tricentenário de Calderón de la Barca. A comitiva conimbricense, formada pelos estudantes Eduardo Abreu, Domingos Ramos e João Marcelino Arroyo, e pelos lentes Bernardino Machado e Gomes Teixeira, seguiu viagem no dia 22.05.1881, tendo participado nos eventos celebrativos e no desfile cívico em traje talar. Por iniciativa dos conimbricenses criou-se em Madrid uma efémera Federação Académica Peninsular, projecto pró-federalista logo acusado de republicanismo nos meandros conservantistas locais. Profusamente aplaudidos, tudo indicia que presença da legação conimbricense ajudou a sedimentar em certas franjas estudantis espanholas uma vontade de trajes e de insígnias.
No ano lectivo de 1888/1889, os estudantes do curso preparatório de Direito e Letras de Zaragoza fizeram-se fotografar em capote escuro e chapéu de coco. Em 1889, alunos de Salamanca foram fotografados com capote de romeira e chapéu de feltro . Conjunto idêntico, assente no binómio capote e cartola, foi usado pelos seminaristas espanhóis de Vich .
Nas universidades históricas da Escócia e da Grã-Bretanha mantinham-se as antigas “gowns” talares, os capelos (“hoods”) e os barretes de copa quadrangular (“mortarbord”, “academic square”). A imposição dos graus de bacharel, licenciado e doutor de joelhos ante o reitor, e a obrigatoriedade do porte do traje no acto de matrícula, demorariam pelo menos em Oxford e Saint Andrews (Escócia). Ao contrário do desprestígio vivido na Europa continental, o paradigma vestimentário e simbólico talar britânico não sofreu a erosão desencadeada pelo discurso abolicionista, tendo mesmo sido apropriado nos EUA, Canadá, África do Sul, Etiópia, Índia, Nova Zelândia e Austrália. Ao contrário do que sucedeu em Coimbra, as suas potencialidades estéticas permitiram a partir da década de 1860 um alargamento pacífico às primeiras matriculandas.
Em momentos diferenciados do século XX, Portugal e França viveriam situações idênticas à experiência académica anglo-saxónica em termos de vestes talares adoptadas pelas advogadas e magistradas. Na Coimbra de finais do século XIX, e anos que se lhe seguiram, a profunda masculinização operada no imaginário académico e no conjunto casaca/calça comprida/colete inviabilizaria por décadas o processo de feminilização. Dizendo-se um traje progressista no confronto discursivo entre cultura burguesa e herança aristocrático-clerical, o traje académico burguês revelou-se empedernidamente sexista, e nessa medida reccionário face à dinâmica de mudança. Não sendo detentor da riqueza artística das vestes talares nem da sua polivalência unissexo, os fatos burgueses apostam na demarcação territorial e simbólica dos sexos através da sobrevalorização de peças secundárias como a calça comprida (sexo M) e a saia (sexo F), mesmo quando em contextos militares e policiais tal distinção foi abandonada .
Como se verá mais adiante, os modelos de colete e de capa vulgar louvados pelos estudantes de Coimbra como grandes conquistas civilizacionais contra o “obscurantismo” eram aflorações retardadas e esteticamente inferiores a peças vestimentárias que as mulheres do povo conheciam e usavam desde o século XVI. O colete feminino, de bainha lisa ou recortes, a fechar com atilhos, era usado pelas camponesas em contextos de trabalho e solenidades. A versão de luxo podia comportar motivos bordados e tecidos de seda enramada. A capa de honras feminina das lavradreiras abastadas e meias-senhoras (bem com os capotes, mantéus e capoteiras), em lã fina, com golas e bordados ainda era usada um pouco por todo o Portugal nos casamentos, baptizados, funerais, missas, entradas régias e entradas episcopais no tempo em que as primeiras alunas chegaram à UC.
Ao abandonarem o hábito talar tradicional, substituindo-o por um traje burguês citadino, singelo em tecido e figurino, os estudantes de Coimbra proclamavam-se progressistas. Ponderando estas afirmações em 1888, um profundo especialista da cultura e dos trajes propulares, José Ramalho Ortigão, duvidou da pertinência do discurso. A partir do momento em que o traje académico se transformava num produto esteticamente inferior à maior parte das peças usadas pelos camponeses portugueses como traje domingueiro, para se nivelar com o chamado traje ou fato de trabalho, tornara-se difícil descortinar-lhe traços de progressismo.
Em Portugal, as Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa, Porto, Funchal e Ponta Delgada, fundadas a partir de 1836 , começaram por não instituir qualquer traje talar ou militar para docentes e discentes. O mesmo rumo foi seguido desde 1837 pela Escola Politécnica de Lisboa e Academia Politécnica do Porto , onde o fácies paramilitar não foi bastante para trazer aos muros destas instituições, nos anos iniciais, o grande uniforme napoleónico. Não obstante, os docentes militares das politécnicas usavam as fardas respectivas.
Novas instituições portuguesas de ensino como o Curso Superior de Letras (1859) e o Instituto de Agronomia e Veterinária (1864) não se mostraram receptivas a insígnias, rituais académicos ou trajes para alunos e docentes. A casaca preta/calça comprida/colete/cartola/chapéu de coco, com o indispensável complemento de bengala de castão de prata, terão sido os elementos vestimentários laico-burgueses mais celebrados por este tipo de instituições que não se reviam no modelo talar conimbricense.
Nos alvores da década de 1850, concretamente em 1852, a Rainha D. Maria II foi recebida pelos lentes da Academia Politécnica do Porto em casaca preta, colete, calças compridas, sapatos e meias de seda , presumindo-se que não tenha faltado a indispensável cartola.
Poucos anos antes, em 1847, o governo central de Madrid decretara que os estudantes universitários frequentassem as aulas em casaca negra, calças compridas, gravata preta e chapéu redondo (a que acrescentavam um capote de romeira).
Este era também o traje usado pelos docentes universitários suecos desde finais do século XVIII, ulteriormente transposto para a Finlândia. O paradigma sueco é merecedor de acrescida atenção, pois em 1778 o Rei Gustavo III decretou a abolição das vestes universitárias de inspiração protestante, fazendo-as substituir pelo traje da Academia Sueca: casaca de corte, banda vermelha, rosetas vermelhas na bainha dos calções e nos sapatos, e cartola forrada de seda . Poucos anos mais tarde, em 1784, os lentes de Uppsala confirmavam o conjunto anteriormente referido, mas colocando sobre a casaca uma espécie de opa preta, e cobrindo as cabeças com cartolas forradas de seda: preto para Teologia, branco para Leis, verde para Medicina e azul claro para Artes Liberais/Filosofia.
Na Finlândia, por influência da Academia Sueca e da Universidade de Uppsala, prevaleceu a opção pela casaca civil de corte, adaptada à moda do século XIX (preta, cortada no ventre, com abas de grilo), espadim e cartola. O exemplo melhor conhecido é o da Universidade de Abo, transferida para Helsingfors em 1827, onde as cartolas pretas representavam Artes Liberais e Medicina e as vermelhas Leis. Os reitores tinham ainda direito ao porte de um manto talar de veludo carmesim, orlado de seda branca. Nos restantes estabelecimentos de ensino finlandeses, uma lei de 1817 determinara o uso de farda militar.
Confirmando o paradigma laico-burguês, docentes e discentes do Curso Superior de Letras e do Instituto de Agronomia e Veterinária entrariam no século XX de labita preta e cartola, costume de certa forma prolongado após a respectiva integração nas universidades fundadas em Lisboa após 1910 .
As escolas de ensino técnico-profissional de agricultura, lançadas pela legislação fontista de 16 de Dezembro de 1852, e reorganizadas por Emídio Navarro (Decreto de 2.12.1886), não terão definido traje docente.
Quanto à Escola Nacional de Agricultura, aberta em Coimbra no ano de 1887, não se conhece prescrição de traje profissional para o corpo docente. Os alunos começaram a usar no dia a dia um pequeno uniforme composto por boné de pala ou barretina com pompom, colete e gravata, camiseiro à “farmer” e calças compridas . Nos dias de gala optavam por um grande uniforme à lavrador, cujo figurino era o mesmo do chamado traje português masculino de equitação . O primeiro destes dois conjuntos gozava de acrescido prestígio junto das quintas britânicas oitocentistas de agricultura experimental, e foi desde cedo institucionalizado em Portugal como farda dos menores internados em casas de correcção instaladas em quintas agrícolas como Vila Fernando (1895), e posteriormente na Penitenciária de Lisboa (1913 e ss.) e na Colónia Penal de Sintra (1915 e ss.). O mesmo tipo de camiseiro seria adoptado desde ca. 1900 pelos “juízes” do Tribunal de las Aguas de Valência.
Foi com um pequeno uniforme deste tipo, à base de calça comprida, camiseiro de cotim, bota de montar e barretina à cadete com pompom, que a primeira fornada de formandos da Escola Nacional de Agricultura de Coimbra se fez fotografar em 1892. A pasta de ganga esverdeada, com fitas largas verdes e brancas surgiria alguns anos mais tarde .
Situação próxima da referida terá sido vivenciada pelos alunos e docentes das escolas industriais de ensino médio (Decreto de 30.12.1852), cuja rede regional atravessaria um processo de intensificação quando António Augusto Aguiar liderou a pasta das Obras Públicas . Aqui, a opção terá recaído na articulação de um conjunto prático civil (calça comprida/camisa) com um boné de pala e uma bata, conforme usança oficinal nas escolas francesas de artes e ofícios mecânicos. Ao longo da primeira metade do século XX, os alunos da Escola Industrial Brotero, de Coimbra, ficariam conhecidos pelo apodo “lagarto azul”, graças ao fato de ganga ou fato de macaco oficinal que não sendo uma farda acabava por funcionar como tal .
Estabelecimento de ensino médio era também o Instituto Industrial e Comercial de Lisboa, filho do Decreto de 25 de Janeiro de 1894, substituído após 1911 pelos Instituto Superior Técnico e pelo Instituto Superior de Comércio, para o qual não foi definido traje profissional. O mesmo acontecia com o Instituto Comercial do Porto, criado pelo Ministro João Franco em 1891 .
É tardiamente, em 1889, que os alunos do terceiro ano da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, se lançam no uso da capa e batina, traje que possivelmente já seria envergado pelos escolares do Liceu do Porto . A formação da Tuna Académica do Porto, por 1890, com alunos do liceu, da Politécnica e da Médico-Cirúrgica, o nacionalismo fervilhante gerado pelo Ultimatum e requentado pelo 31 de Janeiro de 1891, e o debutar de festividades carnavalescas e de fim de ano (Enterro da Farpa, Festa da Pasta) , terão ajudado a sedimentar a capa e batina na cidade do Porto.
O etnólogo José Leite de Vasconcelos, antigo aluno da Médico-Cirúrgica do Porto, mostrar-se-ia hostil ao uso da capa e batina nas escolas politécnicas portuguesas e liceus . E com Vasconcelos estariam muitos dos liberais de oitocentos que assumiam como traço identitário o fato masculino burguês usado nas cidades ocidentais.
Em Lisboa, o ambiente propiciatório da constituição de tunas académicas e o empenhamento dos estudantes em causas públicas após o Ultimatum terão contribuído para a naturalização da capa e batina entre os liceais e politécnicos.
Seria a Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa a dar o passo em direcção ao grande e ao pequeno uniformes, mas restringindo-os ao corpo docente. O Decreto de 1 de Outubro de 1856 adoptava a título de pequeno uniforme de porte quotidiano uma toga preta talar, de um corpo, em grande parte resultante da fusão da beca judiciária portuguesa com a toga de advogado, lacinho branco, cintura de borlas pendentes, sapatos pretos de fivela e barrete cónico; e um grande uniforme napoleónico, à base de casaca militar azul escura, com bordados a ouro, gravata e colete brancos, calça comprida azul escura avivada a ouro, bicórnio emplumado e espadim .
Não existiam diferenças dignas de nota entre o grande uniforme descrito e o traje dos diplomatas ocidentais , ministros e conselheiros de estado (França, Portugal, Espanha, Itália), Real Academia das Ciências de Lisboa ou o “habit vert” do Institut de France. Um ano decorrido, o Decreto de 15 de Setembro de 1857 estendeu estes dois trajes profissionais à Escola Médico-Cirúrgica do Porto . Na viragem do século, o Decreto de 6 de Fevereiro de 1902 alargou o conjunto talar referenciado à Academia Politécnica do Porto, precisando que as rosetas peitorais da toga fossem nas cores das especialidades científicas ministradas naquele estabelecimento de ensino.
A militarização imagética das academias científicas e dos politécnicos inscrevia-se num conjunto de representações liberais e descristianizadoras, reunindo amplos consensos entre as elites ocidentais que vociferando contra a hegemonia espiritual católica se reviam no perfil heróico e disciplinado do militar fardado.
Vencido o ciclo do abolicionismo, torna-se possível clarificar que os uniformes militares de gala e o cerimonial militar escorado em paradas pedestres, cavalgadas, fanfarras, apresentação de armas, salvas de artilharia, entrega de espadas, cerimonial fúnebre, imposição do bastão de marechal e de insígnias, juramentos de honra, gritos masculinos, grandes uniformes avivados e agaloados, não eram menos simples, menos disciplinadores, menos conservantistas nem menos dispendiosos do que as práticas ostentatórias apontadas às universidades clássicas.
Os intelectuais europeus teriam de aguardar o desenlace da Grande Guerra de 1914-1918, as atrocidades da Segunda Guerra de 1939-1945 e o lançamento de bombas atómicas sobre o Japão para começarem a questionar o prestígio da simbólica castrense. Em Portugal o processo seria mais lento, alimentado pela Guerra Colonial (1961-1974) e pela tardia institucionalização do estatuto do objector de consciência .
No caso de Coimbra, o abolicionismo periodicamente reclamado, não se confinava a mera parusia niilista. Um horizonte imaginário de símbolos alternativos à batina, aos calções, ao colarinho raso e ao cerimonial tradicional piscava o olho à labita burguesa e às fardas militares. Quanto ao destino a conferir à capa, o romantismo estético pululante reservou-lhe lugar especial no imaginário masculino das vivências anónimas e do heroísmo individualizado. A gesta de capa e espada, muito enraizada na centúria de oitocentos, e depois apropriada pelo cinema de aventuras de Hollywood, não concebia um prestidigitador, um Drácula, um Fantasma da Ópera, um Zorro ou um Superman sem capote ou capa esvoaçante . Eça de Queirós, também ele, não concebeu Antero de Quental a discursar revoltas no adro da Sé Nova de Coimbra sem a romântica capa negra a descair pelo ombro .
Em meados do século XIX, os autores de quadras destinadas às danças das fogueiras do São João de Coimbra já se tinham apropriado da capa estudantil, cantando no “Malhão” (=Estalado): A capa do estudante/É um jardim de flores/Toda cheia de remendos/Cada um de seus amores , copla que na década de 1860 passou a ser cantada no novel Fado dos Estudantes Açorianos. Outras coplas, circulantes, foram rapidamente tradicionalizadas:

-A beleza do estudante/É tal, que por ela morro/Gorro e capa, capa e livro/Livro e capa, capa e gorro;
-O seu todo é elegante/Sua voz muito engraçada/Um jovem de capa e gorro/Traz minha alma apaixonada;
-Adeus capas, adeus gorros/Adeus livros, tudo enfim/Adeus ó bela Coimbra/Saudades levo de ti .

Terminados os arraiais dançantes do São João, muitos eram os estudantes foliões que seguiam nas rusgas populares para a Fonte do Castanheiro, local associado ao rejuvenescimento hierogâmico, aos folguedos e a actos sexuais, pelo que a quadra humoristicamente cantava São João perdeu a capa/No caminho do estudo/Juntaram-se as moças todas/Compraram-lhe uma de veludo .
No entardecer da centúria, as vozes do ultra-romantismo e do pessimismo mórbido-decadentista forjaram coplas que fizeram as delícias dos serenateiros estivais:

-Minha capa vos acoite/Que é para vos agasalhar/Se por fora é cor da noite/Por dentro é cor do luar (António Nobre, 1890);
-A minha capa velhinha/Tem a cor da noite escura/Não a quero por mortalha/Quando for prá sepultura (Augusto Hilário, 1895).

Da recta final da Monarquia Constitucional é a Escola Colonial, fundada pelo ministro Moreira Júnior, por Decreto de 18 de Janeiro de 1906, vocacionada para a formação de quadros ultramarinos. De acordo com a tradição napoleónica acreditada entre as elites, e considerando os costumes militares portugueses, um eventual traje a adoptar pela instituição estaria próximo dos uniformes em uso na Marinha. Mas não terá sido este o caminho trilhado por docentes e alunos da sucessivamente chamada Escola Superior Colonial, Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (1961 e ss.), e ISCSP da Universidade Técnica de Lisboa: o Despacho de 6 de Janeiro de 1955 optou pela instauração de um traje docente à base de toga preta, estola e fez .
No âmbito da preparação do professorado do ensino primário, a Carta de Lei de 18 de Março de 1897 determinou a criação de Escolas Normais, segundo o modelo francês, nas capitais de distrito, porém sem consagração de traje docente/discente .
Concluído o périplo pelos estabelecimentos de ensino técnico-profissional fundados em Portugal entre 1836-1910, pode dizer-se que à data da Revolução Republicana de 5 de Outubro de 1910 o traje militar fora oficialmente adoptado nas médico-cirúrgicas e politécnicas de Lisboa e Porto (traje docente de gala), e em versão mais modesta no Real Colégio Militar (traje discente).
Mas não nos deixemos ludibriar perante este aparente fracasso do paradigma napoleónico naturalizado nos países ocidentais não abrangidos na esfera da cultura escolar anglo-saxónica. Relendo com atenção a literatura de época e visualizando as fotografias disponíveis, rapidamente se conclui que na UC, nas Médico-Cirúrgicas e nas Politécnicas de Lisboa e Porto, o traje militar masculino fora reconhecido aos alunos como equiparado a “traje académico” para efeitos de frequência de aulas, exames e cerimónias .
Tamanho triunfo levar-nos-ia a pressupor que em contexto escolar anticlerical e abolicionista de Primeira República, o uniforme militar teria vingado de forma generalizada nas escolas comercias e industriais, liceus e universidades estabelecidas em Lisboa e Porto no ano de 1911. De acordo com o mesmo pressuposto, tudo indiciaria que a participação de Portugal na Primeira Grande Guerra de 1914-1918 precipitaria uma corrida empática ao fardamento de certas instituições e profissões, à semelhança do verificado na Cruz Vermelha, enfermeiras francesas, inglesas ou norte-americanas onde o capote azul escuro avivado a vermelho e o tailleur militar da marinha (dólman/saia) encontraram terreno favorável .
Com efeito, este parecia ser o caminho a trilhar, tendo em conta o primeiro doutoramento honoris causa concedido pela UC a elementos exógenos ao seu claustro doutoral. A 15 de Abril de 1921, a Faculdade de Ciências concedeu a laurea azul celeste e branca (Secção de Matemática), na Sala dos Actos Grandes, aos heróis militares da Grande Guerra Marechal Joseph Jacques Césaire Joffre (França), Generalíssimo Armando Diaz (Itália), e General Smith Dorrien (Inglaterra) . Uma fotografia da colecção do Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa mostra os laureados no escadório da Via Latina, à saída da cerimónia, com a borla e capelo sobre os uniformes militares , situação anómala em termos protocolares que já não se repetirá em 1949 quando o General Francisco Franco receber o doutoramento honoris causa .
Conforme se procurará demonstrar no capítulo seguinte, entre os lentes e estudantes de Coimbra havia uma cultura multissecular enraizada que não permitia criar um nicho favorável à plena substituição dos trajes talares pelas fardas militares.
Contrariando a hipótese pró-farda, os alunos das escolas comerciais e industriais viveriam um século XX com bata funcional e fato de macaco vestidos apenas em contextos oficinais. Nos liceus manteve-se até à década de 1960 a herança masculina da capa e batina herdada da UC.
Seriam ainda os liceus de Lisboa e Porto a inventar espontaneamente entre 1915-1916 o traje feminino, à base de tailleur saia-casaco e capa, o qual só muito tardiamente entrou nas universidades: na do Porto em 1946, pela mão das alunas sócias do Orfeão; na de Coimbra em 1951, devido à acção das sócias do Teatro dos Estudantes, seguindo-se generalização não pacífica decretada pelo Conselho de Veteranos em 1954 .
Após a criação das universidades de Lisboa e Porto, os alunos portuenses ligados à tuna e orfeão adoptaram desde 1911-1912 a capa e batina dos conimbricenses, seguindo-se uma adesão generalizada a partir de 15.03.1916. Em Lisboa, o uso da capa e batina ficaria duradouramente restringido aos liceus e a franjas de alunos da Faculdade de Direito então situada no Campo de Santana. Na vizinha Faculdade de Medicina, o uso de capa e batina seria bem menos expressivo do que o filme A canção de Lisboa (1933) parece deixar antever .
Quanto aos corpos docentes das duas universidades instituídas em 1911 pelo Ministro do Interior António José de Almeida, a herança politécnica que sustentava o grande uniforme napoleónico foi abandonada desde logo. Lisboa e Porto inclinavam-se de forma pouco convicta para a toga preta talar aprovada em 1856 para a Escola Médico-Cirúrgica, solução que se arrastou pelo século XX sem grande consistência gregária ou identitária .
Logo após o 5 de Outubro de 1910, o governo provisório publicou um conjunto de medidas abolicionistas e laicizadoras que visaram os rituais, o cerimonial e os trajes da UC, num ajuste de contas que se foi tornando mais claro à medida que não se aboliu nem afrontou o legado das politécnicas nem das médico-cirúrgicas.
É perante uma UC subjugada e privada da sua identidade simbólica, receosa de exteriorizar os seus trajes, insígnias e cerimonial, que logo em 1911 o ministro da tutela, António José de Almeida, promove eleições reitorais no Porto e em Lisboa (em Coimbra impõe o advogado Manuel de Arriaga) e dá luzimento às cerimónias de abertura solene das aulas em Lisboa e Porto .
A Academia das Ciências de Lisboa, honorificamente presidida pelos chefes de estado, continuou a realizar a sua cerimónia solene anual, sem quaisquer constrangimentos quanto ao uso do grande uniforme napoleónico , espadim e bicórnio designado na gíria por “abatjour”.
A criação da Faculdade de Direito de Lisboa (1913) ditou uma migração maciça de quadros formados na Faculdade de Direito da UC, ali se tendo começado a registar desde 1915 uma afirmação descomplexada do uso do hábito talar e da borla e capelo. Com a publicação do Estatuto Universitário contido no Decreto nº 4:554, de 6 de Julho de 1918, as insígnias doutorais conimbricenses eram apropriadas pelo Ministério da Instrução Pública e declaradas insígnias nacionais. A UP optava pelas insígnias doutorais conimbricenses e na UL o porte passava a ser extensivo às várias faculdades. Porém, a generalização extra-muros das insígnias conimbricenses, começara muitas décadas antes nas escolas jurídicas brasileiras. Em Lisboa e Porto, intenta-se uma aproximação dispersiva ao cerimonial doutoral conimbricense. Ao nível do porte de insígnias em situações festivas e de gala, a década de 1920 registou diversas combinatórias e iconoclastias: borla e capelo com toga herdada das Médico-Cirúrgicas e da Politécnica do Porto; borla e capelo com toga de advogado (Lisboa); borla e capelo com hábito talar idêntico ao de Coimbra ao longo de todo o percurso profissional (Fac. Direito de Lisboa); hábito talar conimbricense em Lisboa e Porto até à ascensão à cátedra, e porte de toga talar pelos professores catedráticos; concessão de honoris causa a candidatos em farda militar; defesa de actos magnos de doutoramento em labita.
No curto prazo, um certo predomínio simbólico da Faculdade de Direito na liderança da equipa reitoral da UL imporia o mimetismo de costumes ancestrais conimbricenses como a dispensa do capelo pelos reitores e vice-reitores. A visão centralizadora e uniformizadora dos fenómenos culturais herdada da Aufklarung legitimaria deste modo as medidas governamentais que em 1918 procederam à nacionalização das insígnias doutorais conimbricenses nas três universidades existentes, e posteriormente da capa e batina dos estudantes a ambos os sexos em 1924 .

Teria o uniforme militar os dias contados em Portugal, no seu confronto com as virtualidades estéticas, afectivas e simbólicas atribuídas aos trajes talares?
Uma primeira retracção se vive no Portugal de Outubro-Dezembro de 1910, no que respeita ao abandono liminar dos uniformes de gala dos vereadores municipais , pares do reino do Parlamento , conselheiros de estado, ministros de estado, governadores civis , secretários dos governadores civis, administradores dos distritos administrativos e seus secretários, bem como magistrados do Tribunal de Contas .
Passados os dias quentes de finais de 1910, o grande uniforme napoleónico sobreviveu apenas no corpo diplomático e na Academia das Ciências de Lisboa, cujos botões e cores foram adaptados à iconografia republicana, e Academia das Ciências de Portugal . Em consequência deste abandono, os detentores de cargos representativos do poder legislativo, executivo e presidencial abandonam qualquer assimilação à imagética militar ou aristocrática, resvalando para um puritanismo geométrico e despojado de ornatos, à base do fato preto. No limite, o poder público passava a vestir de preto, cor predominante no século XIX entre a burguesia liberal e os arautos da moral vitoriana, procurando ventilar uma imagem de seriedade, ordem, labor e empreendedorismo cujo fim seriam o progresso e a felicidade. Verberando os uniformes, os burgueses adoptavam o fato civil escuro como uniforme dos políticos, empresários e administradores. Após a Segunda Guerra Mundial, as escolas de gestão acrescentariam a este figurino o esmero físico dos actores de Hollywood.
Se as desigualdades ficavam aparentemente abolidas no confronto nobreza/burguesia, não deixavam de permanecer muito vincadas na distinção vestimentária entre média e alta burguesia e gentes do povo, que um pouco por todo o Portugal rural continuavam a vestir resíduos de trajes “folclóricos”.
Continuando a tradição artística naturalista de finais de oitocentos, os intelectuais republicanos exaltaram os trajes populares através da pintura de costumes, do azulejo e do bilhete-postal ilustrado, discurso que não era correspondido pelos visados. Em podendo, o camponês e o pescador optavam invariavelmente pelo abandono dos trajes rústicos que consideravam sinónimo de inferioridade e de desconforto .
Alguns regimes ditatoriais europeus acarinhariam ainda o grande uniforme napoleónico, o qual foi consagrado como imagem de marca da Academia Real de Itália, instituída por Mussolini em 1926 , e tardiamente em Portugal pela Academia Portuguesa de História (1945) .
No período de entre guerras, o enquadramento visual das juventudes pelos regimes autoritários seria construído à margem da capa e batina , a partir da mobilização de massa das juventudes políticas. Foram os anos dos acampamentos, paradas citadinas, inaugurações, missas campais e desportos ao ar livre, protagonizados por juventudes politizadas e hierarquizadas, que se davam a ver através da exibição de uniformes masculinos e femininos em tons pretos e castanhos, de desenho funcional pouco conseguido.
Em Inglaterra, o conjunto vestimentário mais próximo do sacralizado pelos ditadores continentais será o “Scout Uniforme”, inspirado em fardamento militar da Guerra Bóer travada na África do Sul. Popularizado pelos pupilos de Robert Baden Powell durante a Grande Guerra, este uniforme apresenta alguns elementos comuns aos primitivos equipamentos futebolísticos, não se inscrevendo na liturgia autoritária de entre guerras.
As escolas portuguesas de vertente técnico-profissional e as politécnicas permaneceram arredadas do uniforme militar, solução que nas décadas de 1930-1940 foi largamente utilizada pelo Estado Novo para definir a imagem sócio-profissional dos oficiais menores e motoristas dos ministérios e secretarias de estado , polícia cívica, bombeiros, enfermeiras, carteiros, hospedeiras de aviação civil, carregadores de bagagens dos caminhos de ferro, cobradores de bilhetes e motoristas da carris e das empresas de autocarros.
Desde a Primeira Guerra Mundial, um pouco por todo o Ocidente e nas possessões coloniais, o uniforme da marinha foi rapidamente apropriado pelas enfermeiras e pelas companhias civis de aviação (traje de hospedeira) . Nos hotéis de referência, a prestação de serviços de qualidade e as estratégias de sedução e fidelização de clientelas passaram pela consagração de uniformes inspirados nas fardas militares, apropriação que já tinha sido testada com sucesso na segunda metade do século XIX pelas companhias detentoras de navios turísticos de luxo.
Portugal e Espanha distanciavam-se definitivamente do imaginário politécnico francês. Para os vários institutos federados na Universidade Técnica de Lisboa desde 1930, o Ministro da Educação Nacional, José Caeiro da Matta (1877-1963), determinou em Portaria nº 11:170, de 17 de Novembro de 1945, o porte da toga preta talar, da gorra renascentista e do epitógio franco-belga. Dez anos mais tarde, o traje talar do ISEU, aprovado por Despacho de 6 de Janeiro de 1955, também fugiu ao grande uniforme militar. Era o triunfo dos académicos togados.

III-património (cont.)
Na passagem da década de 1820 para os anos de 1830 tradicionalizou-se nos corpos de cavalaria europeus um boné circular, munido de pala dianteira rígida e pompom superior central, logo apropriado por oficiais ligados a profissões tributárias da Revolução Industrial em curso. Os estudantes de Coimbra, arregimentados em Corpo de Voluntários Académicos favorável ao partido liberal de D. Pedro IV/D. Maria da Glória (1828-1833), usaram este boné como complemento indispensável do seu uniforme . Uma vez desmobilizados, não o levaram para Coimbra nem se atreveram a tradicionalizá-lo, tendo permanecido fiéis ao gorro ibérico identificativo dos escolares de escassas posses, acessório que nunca chegou a ser mitificado pela cultura estudantil .


Saios de batinas
Quatro variantes usadas no corte do feitio da batina em uso no mundo romano e anglicano, sendo o modelo C mais comum nos seguidores do catolicismo. A batina romana não é a única peça do hábito talar religioso católico, sendo admitidas versões territoriais como a ambrosiana de Milão, a grega e russa. Contrariamente à vox populi, a antiga "batina" dos docentes e estudantes de Coimbra não correspondia a nenhum destes modelos de um corpo.
O facto de a partir da década de 1840 se ter divulgado na gíria académica a expressão "capa e batina" (que vinha substituir a designação "mantéu e loba"), não significa que a generalidade dos estudantes e dos lentes tinha passado a usar batina romana. Na verdade, quem usava batina romana eram os lentes eclesiásticos que leccionavam cadeiras em Teologia e Direito, os alunos da Faculdade de Teologia e o sacristão da Capela da UC. De resto, a batina romana era traje escolar generalizado e obrigatório no vizinho Seminário de Coimbra.
A opção pelo uso da batina romana de um corpo na UC após a Revolução de 1820 não foi em momento algum fruto de imposição do governo central nem da Reitoria. Os alunos organizados em grupos pró-activos é que adoptaram clandestinamente a batina romana, e numa fase posterior a casaca civil preta. Nos sucessivos e infrutíferos editais regulamentadores, a Reitoria fala sempre em "loba e mantéu" ou mais genericamente em "hábito talar". Evidentemente que não poderia falar na batina romana como sinónimo de traje académico, numa universidade onde todos os hábitos religiosos seculares e regulares eram considerados traje académico (ainda hoje o são), atitude que significaria colocar a batina romana em situação de privilégio perante os hábitos monásticos.


Remate de casaca
Nesta gravura francesa de 1834 são propostos cinco remates de costas de casacas civis. Os estudantes de Coimbra desmobilizados da guerra civil e seduzidos pelas luminárias da Revolução Francesa passaram as décadas seguintes a substituir o velho hábito talar histórico por falsas batinas, isto é, vestes que na frente tinham o aspecto de uma batina romana e nas costas imitavam o talhe das casacas civis.
(gravura da Biblioteca de Nova York)


O redingote
Nesta gravura francesa de 1834, o redingote é desenhado como um generoso casacão ou sobretudo, muito cintado (à dandi), com um saio posterior constituído por racha central e dois machos encimados por botões, dois bolsos verticais, carcela peitoral militar de falso assertoado (duas fileiras paralelas de 12 botões que ainda não comportam o efeito "bacalhau"), mangas a estreitar para os punhos com remate de canhão, romeira de ombros (numa transposição do capote ou tabarro) e gola alteada e ampla.
Esta peça de vestuário teve amplo uso em Portugal nos meios urbanos nas décadas de 1830-1840. O feitio das costas está muito próximo da batina romana de um corpo.
(acervo da Biblioteca de Nova York)

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

III- Património...
(cont.)
Na década de 1850, em França, o traje masculino preto, à base de cartola, casaca e calça comprida era usado por filhos-família matriculados em colégios privados de ensino secundário. No distante Japão, o processo de ocidentalização e a influência britânica e prussiana conduziram o estado ao abandono do quimono (“seifuku”) nas escolas e à instauração no ensino secundário, pela década de 1890, de um uniforme militar masculino composto por calça comprida, dólman, boné de pala e capote em azul escuro[1]. O “garukan” manteve-se em uso ao longo do século XX. Em 1920 nasceria numa escola feminina japonesa o “fukuoka”, de inspiração britânica, composto por meias escocesas, saia escocesa plissada e blusa de marujo (“seera fuku”), que rapidamente seria generalizado em todo o país.
REFERÊNCIAS
[1] Mais informação em Michael Mahoney, Design & mystique of the japonese school uniforme, http://pingmag.jpg/2008/03/31/japanese-school-uniforme (8.06.2009).

terça-feira, 25 de agosto de 2009

III - Património...
Académicos de toga e académicos de espada (cont.)
Caminho distinto trilharia a Faculdade de Medicina da Bahia, onde se usou uma toga talar preta de dois corpos, meia romeira de ombros e barrete preto agaloado, traje de inspiração francesa anterior a 1789, também utilizado pelos alunos daquela instituição nos actos de formatura[1]. O mesmo aconteceria na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, instituída em 1832 a partir da Escola Anatómica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro (1808)[2].
Na Inglaterra dos colégios de ensino básico e secundário, onde a batina de lã azul do Christie’s Hospital, remontante a 1552 (Blue Coat Uniform)[3] fizera história e sobrevivia sem beliscadura, afirmava-se, num registo mais laico, o fato de colegial, genericamente conhecido por High School Uniform, à base de pullover, gravata, calção curto de flanela cinza, blazer e boné. Dentre todos, tornou-se conhecido e cobiçado nos anos do Rei Eduardo VII (1901-1910) o Eton Suit[4], assente no conjunto calça cinza listada, jaqueta preta, colete, cartola e gola à século XVII. Usado por alunos do sexo masculino até aos 16 anos, este uniforme abandonou a cartola no final da Segunda Guerra Mundial, cobertura hodiernamente substituída pelo chapéu de palhinha (straw-boater). A antiga jaqueta tem vindo a ser paulatinamente substituída pela labita preta com as típicas abas de grilo.
A um nível de ensino mais elementar, os alunos das “grammar schools” privadas também estão obrigados ao porte regulamentar de uniforme cinzento, composto por boné, gravata, blazer, calções, pullover e sobretudo de chuva. Desde finais do século XIX que o “traditional english schoolboy” se transformou numa referência para os colégios privados à escala mundial. Incontáveis variantes em corte e cor foram instituídos em Inglaterra, Canadá, EUA, Brasil, Portugal Japão ou Coreia[5].
REFERÊNCIAS
[1] A Escola de Cirurgia da Bahia, fundada em 1808 por D. João VI, passou a Faculdade de Medicina em 1832. Numa fotografia de curso de 1939 confirma-se a utilização da toga e do barrete pelos alunos nos actos de formatura. Mais dados e imagens em Margarida Sousa Neves, Lugares de memória da Medicina no Brasil. Faculdade de Medicina da Bahia, http://www.historiaecultura.pro.br/cienciaepreconceito/lugaresdememoria/faculdadedemedicinadabahia.htm (consultado em Março de 2007).
[2] Mais informação no sítio Museu Virtual. Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, http://www.museuvirtual.medicina.ufrj.br/.
[3] Iconografia e textos de apoio disponíveis em “Bluecoat Schools”, http://www.archivist.f2com/ (consultado em 2007). Traje de alunos de nível secundário, já foi alvo de feminilização, sendo dos mais representados em peças escultóricas. A “bluecoat” é um traje de grande interesse para a história dos uniformes escolares e religiosos ocidentais, na medida em que ilustra o que era a batina de um corpo antes da afirmação da batina romana no século XVIII. Tenha-se presente uma veste talar escura (não necessariamente preta), confeccionada em lã, com mangas tubulares simples, colarinho sem golas, saio franzido a partir de um cós recortado pela linha da cintura e ancas, e abotoadura com carcela entre o pescoço e o ventre. Modelo idêntico sobreviveu em Itália, na região de Milão, até finais do século XX, com carcela de 5 botões, designado por batina ambrosiana.
[4] Instituição fundada pelo rei Henrique VI em 1440. O traje tradicional deste colégio era uma batina talar preta, cujo modelo seria bastante próximo da “bluecoat school”.
[5] Dados adicionais na rubrica Uniforme Scolaire, http://fr.wikipedia.org.wiki/Uniforme_scolaire (consultado em Setembro de 2008).

domingo, 23 de agosto de 2009

III - Património...
O hábito talar e as insígnias doutorais de Bernardino Machado
Académicos de toga e académicos de espada

A Revolução Francesa de 1789 e os subsquentes pronunciamentos liberais apontaram como via de consumação do progresso e da ilustração o laicismo e o cientismo, percurso linear inconciliável com costumes, peculiarismos, rituais e trajes profissionais herdados do passado. Excluindo as universidades anglo-saxónicas europeias e ultramarinas, onde os trajes talares profissionais e insígnias mantiveram o prestígio ancestral, as universidades da Europa Continental optaram pelo abolicionismo vestimentário e pela ostracização do legado católico e da estética barroca.
Na Europa Continental, o dissídio que se arrasta desde o espírito das luzes ao “Mai 68” entre académicos de “toga talaris” e académicos de espada parece fazer pender a balança a favor do abolicionismo e do triunfo do grande uniforme militar.
O ecletismo e o revivalismo vividos nos anos subsquentes ao “Mai 68”, vieram permitir reavaliar à distância os discursos em confronto, numa era de pós-abolicionismo e de polimorfismo de trajes talares.

Em meados do século XIX, as vestes talares herdadas do período medieval, ficaram crescentemente confinadas ao mundo britânico, UC e universidades católicas sedeadas na cidade de Roma[1]. Por todo o Ocidente tendiam a desaparecer, sem glória, sem defensores e sem musealização as vestes de dois corpos sobrepostos, apenas sendo possível avistá-las nos mestres de cerimónias das catedrais anglicanas (vergers), no traje de gala da Universidade de Oxford (convocation dress), em certos colégios católicos de diferentes países cujos alunos cursavam em Roma as universidades pontifícias[2], e em magistrados portugueses que perseveraram na manutenção da beca preta talar de idêntica origem[3].
A partir do movimento revolucionário francês de 1848 a França dita a moda Ocidental burguesa. A alta-costura centra-se obsessivamente no universo feminino. A moral dominante vigia persistentemente a indumentária masculina em termos de tecidos, cores, ornatos e figurinos, instaurando a morte da policromia e dos ornatos. O vestuário civil masculino mergulha numa longa glaciação artística, centrada na imposição de tecidos escuros, lisos, à base de chapéu, calça comprida, casaca de abas de grilo, e a partir da década de 1850 no casaco escuro cortado pela púbis (blaser)[4], cujo figurino remete para o puritano gibão seiscentista.
Por bons duzentos anos, tecidos de luxo, bordados e hábitos talares são ostracizados das margens do estilo de vida burguês, entrando em circulação a consagrada piada cujo enunciado propõe que o “verdadeiro” homem usa calças compridas e os menos homens usam “saias” como as mulheres. Trata-se de uma piada burguesa eurocêntrica, eivada de preconceitos puritanos, que pretendendo ferir os clérigos católicos e os universitários togados, ignora que na mesma época a masculinidade se continua a afirmar pelas vestes talares no Império Otomano, nos povos islamizados da África do Norte, na Arábia e Médio Oriente, na Polónia, na China ou no Império Russo. Mas nem só de hábitos talares falamos. Saios masculinos (anáguas) pela linha do joelho demoravam em uso na Escócia, na Grécia e em momentos festivos de Trás-os-Montes e vizinho território leonês. De acordo com as recolhas de campo de José Leite de Vasconcelos, entre 1892-1927 ainda se encontravam nos meios rurais portugueses de mais idade para quem o traje de festa só se poderia usar com plena dignidade quando complementado por calções[5]. Variante do saio de linho era o saio-calção (“manaias”) usado pelos camponeses e pescadores ribeirinhos de Mira até à Murtosa.
Todo este processo de captura, constrangimento e normalização, marcado pelo puritanismo burguês, e pelo triunfo da moda citadina, se traduz num reducionismo empobrecedor das múltiplas linguagens da indumentária masculina. Em lugar de uma moda masculina e feminina, a cultura burguesa impõe uma alta-costura centrada sobre clientelas femininas. Ao interditar a policromia e a ornamentação, a moda burguesa limita-se a gerir um vestuário masculino marcado pelos valores da funcionalidade e do estatuto sócio-profissional.
Quanto a países como a Espanha, a França, a Itália, e no Portugal das escolas politécnicas de Lisboa e Porto, a consagração de modelos próximos dos trajes profissionais judiciários e militares parecia imparável. Concomitantemente, os departamentos da administração central responsáveis pela instrução pública publicavam normativos que apostavam na nacionalização e homogeneização de um mesmo traje e insígnias em todas as universidades públicas. A França e a Espanha terão sido os países da Europa que mais longe foram na consagração e perpetuação da solução centralista e uniformizadora.
Em França, a “toge” talar, confeccionada como veste de corpo único desde o período napoleónico[6], passou a não se distinguir do traje dos magistrados judiciais, conhecendo dificuldades em ombrear com os dias de prestígio vividos pelos grandes uniformes militares em uso nas escolas politécnicas, nas escolas de artes e ofícios[7], no Institut de France, no corpo diplomático e nos dirigentes da administração civil central e regional[8].
Na École Polytechnique de Paris usar-se-ia desde as origens um uniforme militar napoleónico[9] próximo do avistado na Península Ibérica durante as invasões francesas de 1807-1811. Tal traje não era desconhecido dos estudantes de Coimbra, pois fora o uniforme oficial dos membros do Batalhão Académico activo entre 1808-1811[10]. A farda referida abandonou o capote e feminilizou-se em 1974. Nas escolas de artes e ofícios, o uniforme militar próximo de soluções consagradas no Ocidente por carteiros, oficiais de marinha, bombeiros, polícias, guardas prisionais, chefes de cozinha, músicos de bandas filarmónicas amadoras, oficiais de aviação civil, enfermeiras da Primeira e Segunda Guerras Mundiais, chegou ao século XX, com feminilização tardia (1964).
Ao grande favor tributado pelos académicos da Europa Continental aos uniformes militares masculinos, não serão alheios os diversos conflitos que desde as Invasões Napoleónicas da Península Ibérica à conquista da Roma dos Papas pelo exército italiano (20.09.1870) levaram estudantes portugueses, espanhóis, italianos, alemães e belgas a pegar em armas.
Nas universidades alemães, na passagem do século XVIII para o século XIX abandona-se a grande casaca militar e o tricórnio de feltro[11], mas o prestígio e a disciplina do exército prussiano conduzem desde aproximadamente 1815[12] à generalização do boné dos corpos de cavalaria entre os estudantes cultores das canções goliardas (“commercium songs”) e clubes de praticantes de esgrima.
Em Itália, manteve-se a murça de arminhos dos doutores e reitores, mas as togas e barretes adoptados em Bolonha ou Perugia eram agora as mesmas envergadas pelos advogados e juízes (toga e tocco). Em Espanha, o traje dos estudantes foi oficialmente abolido em 1834[13], e a loba e barrete doutoral dos lentes (“bonete de picos”) viram-se substituídos em 1850 pela toga preta dos advogados[14]. Neste país, apenas sobreviveria a murça de ombros, na cor científica da especialidade, numa versão relativamente simplificada, próxima das murças clericais. Em Sevilha, alguns doutores manteriam até finais do século XIX o antigo capelo doutoral de murças sobrepostas, insígnia que não sobreviveria no século XX. O barrete doutoral antigo, de quatro arestas, semelhante ao usado na Coimbra dos séculos XVI e XVII, foi igualmente substituído pelo barrete preto hexagonal dos advogados, sem cristas na copa.
Nos jovens países saídos da primeira vaga descolonizadora, surgiam no decurso do século XIX movimentos de construção identitária revivalista. Nos EUA, universidades e colégios reuniram delegados em 1893, tendo sido criada a “Intercollegiate Commission” com o objectivo de aprovar trajes e barretes adaptados a partir da tradição britânica. Os trabalhos relativos aos padrões, cores e tecidos foram aprovados em reunião de interlocutores no Columbia College, em 1895, com a designação de “Code of Academic Regalia”[15].
Nos EUA, tal como em Inglaterra, Escócia, Canadá, Índia, Austrália e Nova Zelândia as mulheres passaram a usar as togas universitárias sem resistências dos seus pares masculinos, conforme documentam fotografias de formandas inglesas, norte-americanas e australianas vestidas de toga e barrete académico para os anos de 1870 a 1900[16]. Nas escolas técnicas de ensino médio e nas politécnicas de agricultura e mecânica, os alunos norte-americanos seguiram o uniforme militar normalizado em França, servindo de exemplo a farda de cadete reformada em 1897 pelo Virginia Agricultural and Mechanical College and Polytechnic Institut[17].
Após a independência do Brasil, a Lei de 11 de Agosto de 1827 abriu portas à Faculdade de Direito de Olinda e à Faculdade de Direito de São Paulo. O curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Academia de São Paulo começou a funcionar em 1 de Março de 1828, e o de Olinda em 15 de Maio de 1828, com as duas instituições a consagrarem ab initio a borla e capelo conforme a tradição da Faculdade de Leis de Coimbra, solução ulteriormente seguida por outras universidades brasileiras. Quanto ao traje profissional, os docentes universitários brasileiros optaram pela toga judiciária preta.
Em colégios do ensino secundário, como o de D. Pedro II, pela década de 1850 tornou-se obrigatório um pequeno uniforme masculino à base de calça comprida clara, casaco escuro com botões de sugerência militar e boné de pala, cobertura de cabeça sintonizada com as soluções em processo de afirmação nos meios universitários da Suíça, Suécia, Noruega, Áustria, Bélgica e Alemanha e em colégios particulares de ensino secundário um pouco por todo o Ocidente.
REFERÊNCIAS
[1] No século XIX, os doutores pelas universidades católicas romanas já não usavam a antiga loba talar de dois corpos sobrepostos, conhecida em Roma e Bolonha por “loba dos doutores”, mas as vestes talares correspondentes às diversas dignidades seculares e regulares. O chapéu doutoral continuava a ser o barrete quadrangular rematado com cristas, forrado de seda preta, com a borla na cor da especialidade científica. À semelhança de Coimbra e de Salamanca, mantinha-se o anel de ouro com a palavra “Roma” gravada no bezel. Informação adicional em John Abel Nainfa, Costume of prelate of the Catholic Church, Baltimore, John Murphy Company, 1926, p. 241 e ss (1ª edição de 1909).
[2] Chegaram à década de 1960 os seguintes trajes talares de corpos sobrepostos, derivados da antiga “loba dos doutores”, sendo a veste interna designada por sotaina e a externa por soprana: Collegio Capranica, sotaina e soprana pretas; Pontifício Collegio Germânico-Húngaro, sotaina e soprana vermelhas; Pontifício Collegio Grego, sotaina e soprana azuis, faixa vermelha; Venerable English College, sotaina e soprana pretas; Pontifical Scots College, sotaina roxa, soprana preta, faixa vermelha; Pontifical Irish College, sotaina e soprana pretas; Collegio Lombardo, sotaina e soprana pretas, faixa violeta; Collegio Maronita, sotaina e soprana pretas, faixa azul; Pontifício Collegio Polaco, sotaina e soprana pretas, faixa verde; Collegio de São Bonifácio, batina preta avivada a amarelo, soprana preta; Collegio Rutheriano, sotaina e soprana azuis, faixa laranja. Desde 1969 que estes trajes se encontram caídos em desuso. Os alunos do colégio francês foram os primeiros a adoptar traje civil, sendo em geral seguidos pelos seminaristas dos restantes colégios. Nos dias de gala alguns colegiais ainda envergam o traje distintivo, mas a antiga loba de dois corpos foi substituída pela batina romana. Nas faixas ou cinturas, predominam as cores das bandeiras dos países associados ao nome dos colégios.
[3] Sobre a origem, evolução e características deste traje profissional, veja-se AMN, “Trajes Judiciários Portugueses. A Beca”, in Revista do Ministério Público, nº 113, Janeiro/Março 2008, pp. 179-222, de que saiu separata.
[4] Breve sinopse para os casos inglês e francês em James Laver, A roupa e a moda. Uma história concisa, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 153 e ss.
[5] Etnografia Portuguesa, Volume VI, Lisboa, INCM, 1983, p. 499.
[6] Mais desenvolvimentos em Jean Duvallier, “Histoire des costumes universitaires françaises. Séance du 6 décembre 1954”, apud Bulletin de la Société Toulousaine d’Études Classiques, Nº 99, Décembre 1954-Janvier 1955, pp. 1-4 (agradeço ao Doutor João Caramalho Domingues a cedência de uma cópia deste texto).
[7] O “zagalon” ou uniforme “gadzart”, que a partir de 1936 adoptou o figurino de oficial da marinha, consagraria uma versão feminina em 1964. Estão disponíveis imagens de apoio com base em manequins e reconstituições no Museu da École Nationale Pratique d’Ouvriers et de Contremaires de Cluny (fundada em 1891), no sítio http://ahclam.gadz.org/Accueil/Voir; e em http://fr.wikipedia.org/wiki/Gadzarts (consultados em Março de 2007).
[8] Vejam-se alguns dos trajes emblemáticos de dirigentes ligados à administração interna e à diplomacia francesas, apud “Le Chaine & l’Olivier”, http://le-chene-et-le-laurier.blogspot.com/ (acedido em 8.11.2008).
[9] Historial e imagens de apoio no sítio http://www.patrimoine.polytechineque.fr/expositions/grandu2008.htm (consultado em Março de 2007). A versão feminina foi consagrada em 1974.
[10] Gravura a cores em Fernando Barreiros, Notícia histórica do Corpo Militar Académico de Coimbra (1808-1811), Lisboa, Livraria Bertrand & Aillaud, 1918, junto à p. 20.
[11] Para a visualização destes trajes na Universidade de Gottingen em 1773, consulte-se “Studentenverbindungen”, http://commons.wikimedia.org.wiki/Studentenverbindungen?uselang=de (consultado em 8.11.2008).
[12] Diversa iconografia confirmativa no sítio “Benutzer:Rabe!/Bilder”, http://de.wikipedia.org/wiki/Benutzer:Rabe!/Bilder (acedido em 3.12.2008).
[13] O traje talar manter-se-ia nas universidades espanholas apenas para alunos detentores de ordens sacras.
[14] Abolição concretizada pelo governo central de Madrid e declarada extensiva a todas as universidades espanholas, em conformidade com a letra do Real Decreto de 6 de Março de 1850, e 2 de Outubro de 1850, complementada pelo Real Decreto de 22 de Maio de 1859. O abolicionismo decretado em 1850 foi seguido de um conjunto de medidas centralizadoras e uniformizadoras, tornadas extensíveis a todas as universidades, na esteira da gestão napoleónica. As escolas politécnicas de engenharia, na esteira da França, aderiram ao traje militar, situação que se manteve até 1967, ano em que o governo de Franco fez substituir o uniforme dos “corpos de engenheiros” pela toga preta de advogado, barrete de franjas e murça (tom castanho). Cf. Ana Martín Villegas, “El Traje Académico. Ritual e símbolos. Ritual y uso del Traje Académico”, Actas do I Encuentro de Responsables de Protocolo y relaciones internacionales, Universidad de Granada, 6 e 7 de Março de 1996, apud http://www.protocolouniversitario.ua.es/, Asociación para el estúdio y la investigación del Protocolo Universitário (consultado em 9.02.2006); no mesmo sentido, Historia de la indumentaria académica. Medalla. Atributos. Símbolos. Himnos, http://www.ua.es/es/servicios/syf/formacion/cursos_programados/documentacion/protocolo/traje_academico (artigo de 1999, consultado em 9.02.2006). Quanto às cores científicas, foram mantidas as medievais, comuns a Coimbra, mas o azul celeste passou a representar a Filosofia (e humanidades), e o roxo emergiu como símbolo de Farmácia.
[15] Academic Dress, http://en.wikipedia.org/wiki/Academic_Dress, consultado em 2007.
[16] Imagens disponíveis no acervo digital do Museo International del Estudiante (Salamanca), secções de Fotografias e de Grabados, http://www.museodelestudiante.com/.(consultado em 24.10.2008). Relativamente à presença de alunas na University of Glasgow, http://archives.ac.uk/honour/biog.php?bid=2845; http://www.university.gla.ac.uk/women-backgrownd/. Dados adicionais em “Pioneer women group. 1898. University of Sidney. Faculty of Medicine”, http://www.medfac.usyd.edu.au/museum/image.php?FAMMUS=FMMUS88; “Filtered images: vision of pioneering women doctors in thwentieth-century Australia”, http://www.historycooperative.org/journals/hah/8.2/maccarthy.html; “Universty Archives and records center. University of Pennsylvania”, http://www.archives.upenn.edu/history/features/women/chron3.html; doutoramento honoris causa da Condessa de Aberdee em Direito, na Queen’s University, Canadá, Maio de 1898, http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Comtess_of_Aberdeen_in_Queen%27s_U_robes_Topley.jpg.
[17] Instituição remontante a 1872. O sítio Web desta instituição divulga fotografias relativas a alunos e turmas das décadas de 1880-1890: http://spec.lib.vt.edu/archives/125th/students/intro.htm.