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sábado, 19 de novembro de 2011

Alegoria da Instrução, escultura de vulto de Alberto Nunes remetida em 1884 ao Hospício Português de Caridade do Rio de Janeiro. O liberalismo português de oitocentos nunca chegou verdadeiramente a conferir dignidade a um ministério de instrução pública. A rede pública, em processo de crescimento, foi garantida pelo Ministério do Reino (Administração Interna). O investigador António Nóvoa designou o século XIX como "o tempo dos professores", posição de prestígio que viria a perder dignidade com a massificação do ensino.
Fonte: O Occidente n.º 187, de 1.3.1884

Cardeal ladeado por cerimoniário num encontro religioso ocorrido em Chicago na década de 1920. O cerimoniário enverga indumentária talar de dois corpos sobrepostos. O modelo foi de uso universal nas catedrais católicas, incluindo a patriarcal de Lisboa. A meia manga e a sobremanga correspondem ao primitivo feitio da manga da beca judiciária.

Vestes dos mestres de cerimónias das catedrais anglicanas. Embora apresentem variantes, este tipo de vestes mantem-se relativamente estável: veste talar de dois corpos sobrepostos composta por sotaina de carcela assertoada e garnacha munida de mangões de entretalhos (com boina Tudor). Este feitio de manga aparece em esculturas sacras do século XVIII que retratam doutores em Medicina pela Universidade de Salamanca. O modelo de base é o mesmo da toga judiciária portuguesa. Resta concluir que na sua origem estas vestes eram usadas por padres, humanistas, jurisconsultos e lentes de universidades um pouco por toda a Europa (estão sinalizadas em Itália, Espanha, Portugal, Grã-Bretanha).
A incorporação de elementos regionais terá acontecido no século XIX, graças aos nacionalismos campeantes, aos contributos dos alfaiates (tal como os fabricantes de instrumentos de corda, os alfaiates gostavam de meter os seus contributos pessoais nas vestes confeccionadas) e aos caprichos dos clientes.

Retrato do cardeal e príncipe de Trento Giovanni Ludovico Madruzzo (ca. 1560), por Giovanni Battista Moroni. Acervo do Art Institut of Chicago. Não há diferença digna de registo face à beca talar de dois corpos usada desde finais do século XVI pelos juizes letrados portugueses, de que existe legado nos países de língua portuguesa. Vestes idênticas continuam em uso nos mestres de cerimónias das catedrais anglicanas.

Retrato de Gian Frederico Madruzzo, ca. 1560, Giovanni Battista Moroni (NGA, Washington) com um modelo de toga semelhante ao que se veio a tradicionalizar nos meios judiciários e universitários de Espanha.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Retrato do cardeal italiano Cristoforo Madruzzo por Ticiano
Óleo assinado e datado de 1.5.1552, acervo do Museu de Arte de São Paulo.
Veste talar eclesiástica ou veste talar judiciária? Não incorramos no erro grosseiro de introduzir uma distinção que a cultura da época não admitia. Então, mas este tipo de sobreveste (garnacha, é o termo técnico) não é usada ainda hoje em universidades e tribunais da Grã-Bretanha? Sim!
Madruzzo enverga uma sotaina de pano preto, em forma de túnica, com algibeira cosida à cinta, cinto de pano singelo, mangas estreitas e cabeção de orelhinhas (como na batina que os padres portugueses usavam no 1.º terço do século XIX, certo). O barrete de quatro cornos ou quatro cantos é ainda em tecido mole. Por fora da sotaina veste a garnacha com as típicas bandas dobradas na frente, o cabeção a descair pelas costas e meia manga fendida. Não se vê, mas meteria cós e saio franzido entre as omoplatas.

Veteranos da guerra liberal que participaram nas Festas da Liberdade, cidade do Porto, 9.7.1883
A comemoração e rememoração oral/familiar teve particular significado durante o século XIX nos Açores, no Porto e em Coimbra, espaços marcados pela acção do exército liberal e pelo protagonismo conhecido de D. Pedro IV e de figuras gradas do liberalismo. Para os chamados bravos do Mindelo e heróis do cerco do Porto a liberdade em sentido moderno fora conquistada a ferro e fogo. Não por acaso, as cores constitucionais trazidas dos Açores (cuja bandeira original se guarda nos paços do concelho de Angra do Heroísmo) seriam lembradas, num caso por via do culto futebolístico, noutro como bandeira símbolo de autonomia regional.
Fonte: O Occidente n.º 166, de 1.8.1883

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Cerimónia de coroação do Czar Alexandre III em Moscovo, 22 de Maio de 1883
Fonte: O Occidente n.º 163, de 1.7.1883

Cortejo de aparato, baile de gala, excursão e sarau no decurso da visita dos reis de Portugal, D. Luís I e D. Maria Pia, a Madrid.
Fonte: O Occidente n.º 162, de 21.6.1883

Um traje diplomático não europeu: o príncipe Prasdang, embaixador do Reino do Sião
Fonte: O Occidente n.º 160, de 1.6.1883

Cerimonial fúnebre católico: cortejo fúnebre do cardeal patriarca de Lisboa D. Iácio I junto ao Mosteiro de S. Vicente de Fora
Fonte: O Occidente n.º 152, de 11.3.1883

Cerimonial fúnebre católico: o corpo do cardeal patriarca de Lisboa, D. Inácio I, falecido em 23.2.1883, em câmara ardente ladeada por tocheiros e protegida por dossel. Aos pés do féretro o barrete. Encostados às paredes da câmara, os flabelos.
Fonte: O Occidente n.º 152, de 11.3.1883

Jardim Botânico, vista do tanque central e do Aqueduto (1882)

Vista do Jardim Botânico para o Aqueduto de S. Sebastião (1882)

O Jardim Botânico de Coimbra, inícios da década de 1880 ainda com a vegetação em processo de crescimento.
Fonte: O Occidente n.º 141, de 21.11.1882

Cortejo cívico de viaturas alegóricas do Centenário do Marquês de Pombal
Desfile na Rua de Santo António (actual 31 de Janeiro), Porto em 17.5.1882. Inicialmente designados por procissões cívicas, os cortejos evocativos e comemorativos rapidamente se impuseram em Portugal desde 1880 (festejos camonianos), ganhando crescente densidade a propósito das comemorações do dia do trabalhador em 1 de Maio. Não sendo fonte única, este tipo de cortejo acaba por influenciar decisivamente a estrutura das festas de fim de ano escolar promovidas pelos estudantes da Universidade de Coimbra
Fonte: O Occidente n.º 124, de 1.6.1882

O novo arcebispo de Goa, D. António Sebastião Valente com a zimarra romana
Fonte: O Occidente n.º 117, de 21.3.1882

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Tourada de gala em honra dos reis de Espanha que se encontravam em visita oficial a Portugal. Antigo touril de madeira do campo de Santana, Lisboa, 15.1.1882
Fonte: O Occidente n.º 112, de 1.2.1882

Uma cerimónia militar de aparato: parada das tropas na praça D. Pedro, Lisboa, 14.1.1882
Fonte: O Occidente n.º 112, de 1.2.1882

Préstito papal com sedia, pálio de varas, maceiros e porta-flabelos (também existiram na patriarcal de Lisboa) numa cerimónia de canonização de quatro novos santos. Roma, 8.12.1882
Fonte: O Occidente n.º 112, de 1.2.1882

Nas imagens superiores, um intelectual detestado pelos adeptos do liberalismo libertário: o jovem parlamentar e lente de Cânones Basílio Alberto de Sousa Pinto, mais tarde severo magnífico reitor da Universidade de Coimbra que entre finais da década de 1850 e inícios de 1860 procurou impor medidas disciplinares detestadas pelos estudantes. Sofreu um dos maiores vexames da sua vida em 8 de dezembro de 1862 quando se preparava para discursar na sala dos capelos na cerimónia de entrega dos prémios anuais aos alunos distintos de todas as faculdades. Previamente combinados, os estudantes presentes levantaram-se em peso e abandonaram a sala em sinal de protesto. Os relatos são contraditórios. Há quem diga que patearam e gritaram. Há que diga que sairam em silêncio (o que a ser verdade parece digno de telenovela romântica). O que é certo é que o reitor caiu, acto que se repetira no século XX. Apodado de "paxá de Janina" e de "czar de borla e capelo", Basílio anda acusada na lenda oral de ter querido obrigar os estudantes de 1859 a voltar a usar a antiga loba çarrada, inventona de homens como Teófilo Braga que não consta em nenhum dos editais mandados afixar nos locais de estilo pelo mal amado prelado.
Fonte: O Occidente n.º 111, de 21.1.1882

Espectáculo de fogo de artifício no rio Tejo integrado no programa oficial de recepção aos reis de Espanha (13.1.1882)
Fonte: O Occidente n.º 111, de 21.1.1882

Inauguração da Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental no Museu Nacional de Belas Artes em 20.1.1882. Exemplo de um evento cultural a que se procuram associar figuras públicas e dirigentes políticos.
PROGRAMA
1 - recepção e cumprimentos de boas vindas ao rei D. Luís I e do rei D. Fernando
2 - discurso do rei D. Fernando, na qualidade de presidente da Comissão Central Directora
3 - discurso de abertura do rei D. Luís I
4 - declaração oficial de abertura pelo Ministro das Obras Públicas, Comércio e Indústria: "Em nome e por ordem de Sua Majestade El-Rei D. Luís I declaro aberta a exposição"
Fonte: O Occidente n.º 111, de 21.1.1882; notícia do evento no Diário do Governo n.º 10, 6.ª feira, 13.1.1882

Evolução da posição dos ministérios na ordem de precedências

À luz do ordenamento jurídico português, os ministérios e secretarias de estado são pessoas colectivas de direito público. Encarnam o conceito de governo central enquanto órgãos de soberania estruturantes do Poder Executivo constitucionalmente consagrado. O governo é o órgão supremo das estruturas administrativas centrais e desconcentradas.
Na orgânica constitucional, e nos países onde há plena segregação de poderes, os primeiros ministros ocupam em geral o 3.º ou o  4.º lugar na hierarquia de Estado (1.º, rei/presidente; 2.º vice-presidente; 3.º presidente do parlamento; 3.º vice-presidente do parlamento).

De 1580 a 1640
Conselho da Fazenda (=Finanças), 1591

 De 1640 a 1736
1-Secretaria de Estado (1640)
2-Conselho da Guerra (1642-1643)
3-Conselho Ultramarino
De 1736 a 1788
1-Secretaria de Estado dos Negócios Interiores do Reino (28.7.1736)
2-Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra (28.7.1736)
3-Secretaria de Estado da Marinha e dos Domínios Ultramarinos (27.7.1736)

De 1788 a 1820
1-Secretaria de Estado dos Negócios do Reino
2-Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros
3-Secretaria de Estado da Marinha
4-Secretaria de Estado dos Negócios da Fazenda (15.12.1788)

Da Revolução de 1820 à Revolução republicana de 1910
Estrutura confirmada pelo artigo 157.º da Constituição Política da Monarquia Portuguesa de 23 de Setembro de 1822

1 - Secretaria de Estado dos Negócios do Reino (=Administração Interna). Ocupa o 1.º lugar entre os ministérios, sendo considerada sucessora directa da Secretaria de Estado fundada por D. João IV em 1640
2-Secretaria de Estado dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça (23.8.1821)
3-Secretaria de Estado da Fazenda (=Finanças)
4-Secretaria de Estado da Guerra
5-Secretaria de Estado da Marinha e Ultramar
6-Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros (23.9.1822)

Estrutura efectivamente consagrada entre 1833 e 1910 (ao abrigo da Carta Constitucional de 29 de Abril de 1826):

1-Presidencia do Conselho de Ministros
2-Secretaria de Estado dos Negócios do Reino (=Administração Interna). Ocupa o 1.º lugar entre os ministérios, sendo considerada sucessora directa da Secretaria de Estado fundada por D. João IV em 1640
3-Secretaria de Estado dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça (23.8.1821)
4-Secretaria de Estado da Fazenda (=Finanças)
5-Secretaria de Estado da Guerra
6-Secretaria de Estado da Marinha e Ultramar
7-Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros (23.9.1822)
8-Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria (30.8.1852)

Estrutura republicana, estabelecida pelo Decreto de 8 de Outubro de 1910
1-Presidencia do Ministério (artigo 53.º da Constituição da República Portuguesa, de 21.8.1911)
2-Ministério do Interior
3-Ministério da Justiça e dos Cultos
4-Ministério das Finanças
5-Ministério da Guerra
6-Ministério da Marinha e Colónias
7-Ministério dos Negócios Estrangeiros
8-Ministério do Fomento (ex- Obras Públicas, Comércio e Indústria), transformado em Ministério do Comércio (Decreto n.º 3.511, de 5.11.1917)
9-Ministério das Colónias (Decreto de 23.8.1911)
10-Ministério da Instrução Pública (Lei de 7.7.1913)
11-Ministério do Trabalho e Previdência Social (Decreto de 16.3.1916), extinto em 1925
12-Ministério da Agricultura (Decreto n.º 3.902, de 9.3.1918)
13-Ministério de Subsistências e Transportes (Decreto n.º 3.902, de 9.3.1918), ou dos Abastecimentos e Transportes, extinto em 1919 e integrado no Ministério do Comércio, Indústria e Agricultura

Estrutura no final do Estado Novo
Dentro de cada ministério especificam-se órgãos e funções que foram sendo criadas. Numa primeira constatação verifica-se que no após guerra, mais especificamente a partir da década de 1950, o Estado começa a multiplicar as estruturas governativas da administração central e regional. Na década de 1970 vive-se nova explosão de serviços públicos. No protocolo de Estado, os ministros sem pasta e os adjuntos do Primeiro Ministro precediam os ministros, independentemente da data de criação. Os secretários e subsecretários de Estado eram dispostos após todos os ministros, por data de fundação de cada ministério.

1-Presidencia do Conselho de Ministros (n.º 1 do artigo 81.º, e artigo 106.º da Constituição de 11.4.1933)

·         Ministro da Presidência (DL n.º 37.909, de 1.8.1959), extinto em 1961 e substituído por dois Ministros de Estado Adjuntos do Presidente do Conselho (DL n.º 43.748, de 22.6.1961)

·         Ministro da Defesa Nacional (DL n.º 37.909, de 1.8.1959), que passou a ter uma Secretaria de Estado da Aeronáutica (DL n.º 43.748, de 22.6.1961)

·         Secretário de Estado da Informação e Turismo (DL n.º 48.618, de 10.10.1968)

2-Ministério do Interior
3-Ministério da Justiça e dos Cultos, designado Ministério da Justiça (Decreto n.º 22.708, de 20.7.1933)
4-Ministério das Finanças

·         Secretaria de Estado do Tesouro (DL n.º 48.926, de 27.3.1969)
·         Secretaria de Estado do Orçamento (DL n.º 48.926, de 27.3.1969)

5-Ministério do Exército, ex-Ministério da Guerra (DL n.º 37.909, de 1.8.1950)

·         Secretário de Estado do Exército (Dec. n.º 23/70, de 15/1)

6-Ministério da Marinha
7-Ministério dos Negócios Estrangeiros
8-Ministério das Obras Públicas

·         Secretaria de Estado das obras Públicas (DL n.º 283/72, de 11/8)

·         Secretaria de Estado do Urbanismo e Habitação (DL n.º 283/72, de 11/8)
·         Secretário de Estado das Obras Públicas (Dec. n.º 23/70, de 15/1)
9-Ministério do Ultramar, ex-Ministério das Colónias (Decreto-Lei n.º 38.300, de 15.6.1951)

·         Secretaria de Estado da Administração Ultramarina (DL n.º 283/72, de 11/8)

·         Secretaria de Estado do Fomento Ultramarino (DL n.º 283/72, de 11/8)

10-Ministério da Educação Nacional
·         Secretaria de Estado da Instrução e Cultura (DL n.º 283/72, de 11/8)

·         Secretaria de Estado da Juventude e Desportos (DL n.º 283/72, de 11/8)
11-Ministério da Economia (Decreto n.º 30.692, de 27.8.1940)
·         Secretaria de Estado da Agricultura (DL n.º 41.825, de 13.8.1958)

·         Secretaria de Estado do Comércio (DL n.º 41.825, de 18.8.1958)

·         Secretaria de Estado da Indústria (DL n.º 41.825, de 18.8.1958)
12-Ministério das Comunicações (Decreto n.º 36.061, de 27.12.1946)
·         Secretaria de Estado das Comunicações e Transportes (Dec. n.º 23/70, de 15/1)

13-Ministério das Corporações e Previdência Social (Decreto-Lei n.º 37.909, de 1.8.1950)

·         Secretaria de Estado do Trabalho e Previdência (Dec. n.º 23/70, de 15/1)
14-Ministério da Saúde e Assistência (Decreto-Lei n.º 41.825, de 13.8.1958)
·         Secretaria de Estado da Saúde e Assistência (Dec. n.º 23/70, de 15/1)

Disposições sobre as precedências no Estado entre 1974-1976
Lei n.º 3/74, de 14 de Maio: revoga o ordenamento configurado pela Constituição de 1933 em tudo o que contrarie os preceitos democráticos. Vista e aprovada pela Junta de Salvação Nacional em 14 de Maio de 1974. O Presidente da Junta de Salvação Nacional, António de Spínola].
O art. 2.º enumera como órgãos de soberania:

1)      Presidente da República

2)      Assembleia Constituinte
3)      Junta de Salvação Nacional
4)      Conselho de Estado
5)      Governo Provisório
6)      Tribunais
O art. 6.º consagra a fórmula de tomada de posse do PR, que seria conferida pela Junta de Salvação Nacional: “Juro por minha honra, garantir o exercício de todos os direitos e liberdades dos cidadãos, observar e fazer cumprir as leis, promover o bem geral da nação e defender a independência da pátria portuguesa”.
Em termos protocolares, o artigo 7.º dispunha que competia ao PR presidir à Junta de Salvação Nacional, nomear os membros do Governo Provisório, convocar e investir os membros do Conselho de Estado (art. 12.º), convocar e presidir ao Conselho de Ministros quando conveniente, representar o país interna e externamente, exercer a chefia suprema das forças armadas, indultar e comutar penas.
Segundo o art. 14.º, o Governo Provisório era constituído pelos seguintes titulares do Poder Executivo, com a seguinte hierarquia, na qual intercalamos as autoridades referenciadas no art. 20.º (Chefe do Estado Maior) e no art. 23.º (governadores dos territórios ultramarinos):

1-Primeiro Ministro (que preside ao Conselho de Ministros)
[Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas]
2-Ministros sem pasta
3-Ministros
[Governadores Gerais das províncias ultramarinas]
4-Secretários de Estado
[Governadores de províncias ultramarinas]
5-Subsecretários de Estado
O art. 18.º, que trata da “função jurisdicional”, não especifica quem seja o representante máximo do Poder Judicial  nem estabelece critérios de precedências entre os diferentes tipos de tribunais.
O art. 19.º confere alargado destaque às Formas Armadas, definidas como estrutura autónoma face ao Governo Provisório. O seu representante junto dos órgãos de governo seria o Ministro da Defesa Nacional.
O art. 20.º estipulava que o Chefe do Estado Maior das Forças Armadas teria categoria protocolar idêntica à de Primeiro Ministro, devendo figurar nos actos públicos imediatamente a seguir ao Primeiro Ministro. Este posicionamento, reforçado pela posição de prestígio das Forças Armadas no movimento revolucionário de 25 de Abril de 1974, e pelo facto de o presidente provisório da República ser o General António Spínola, não correspondia propriamente à tradição protocolar seguida durante a Primeira República e o Estado Novo. Porém, se recuarmos no tempo, veremos que o título de Condestável do Reino, habitualmente confiado ao irmão do monarca, se posicionava entre os lugares de mais elevada hierarquia e prestígio no cerimonial de Estado.
O art. 23.º dispunha que os governadores gerais e os governadores dos territórios ultramarinos tinham na “hierarquia” do Estado categoria idêntica às atribuídas aos ministros e aos secretários de estado, respectivamente. O reconhecimento do direito à autodeterminação seria reconhecido mais tarde, pela Lei n.º 7/74, de 27 de Julho.

Estrutura em 1976-1978 (Lei orgânica do I Governo Constitucional, Diário da República, n.º 213/76, Série I, 1.º Suplemento, 19.9.1976). Os organismos da administração central e regional do Estado atingem uma situação de obesidade mórbida, marcada por redundância de funções, e muito especialmente pela vontade de promover de forma acelerada o desenvolvimento do país e a integração dos milhares de retornados dos territórios africanos em processo de independência.
A ordenação das precedências em matéria de Poder Executivo é regulada pela lei orgânica de cada novo governo constitucional, com a insólita particularidade de o legislador nunca mais ter respeitado com inteiro rigor o critério histórico da ordenação pela data de criação.
Foi precisamente nas áreas sociais que mais se notaram oscilações na ordenação das precedências. E mesmo no tocante aos ministérios que tradicionalmente asseguram funções de soberania (recordemos em linguagem simples e directa: sem eles o Estado não funciona), nem sempre o legislador tem sido moderado e prudente (falta de conhecimento no tratamento da matéria?).
Por elaborar, ao longo de todo o quarto de século que sublinha o Outono de novecentos, uma lei de cerimonial e precedências, bem ao contrário do Brasil que em 1972 publicou um diploma de referência para a CPLP (Normas do Cerimonial Público e a Ordem Geral da Precedência, Decreto n.º 70.274, de 9.3.1972, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D70274.htm), que por seu turno levou o Estado de S. Paulo a elaborar e publicar regulamento próprio em 1978 (Normas do Cerimonial Público do Estado de São Paulo, Decreto n.º 11.074/78, de 5.1.1978, http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/210601/decreto-11074-78-sao-paulo-sp).
A ausência de regulamentação, para mais em se tratando de um assunto tão delicado, alimentou ao longo da década de 1980 melindres, especialmente no interior do Poder Judicial
Este diploma extingue 4 ministérios, 12 secretarias de estado e 17 subsecretarias de estado.

1 – Primeiro Ministro (Presidente do Conselho de Ministros)

·         Ministro de Estado
·         Ministro sem Pasta

·         Secretário de Estado do PM

·         Subsecretário de Estado Adjunto do PM
·         Secretário de Estado da Comunicação Social
·         Subsecretário de Estado da Comunicação Social

·         Secretário de Estado da Cultura
·         Secretário de Estado da População e Emprego
·         Secretário de Estado do Ambiente
2 –Ministro da Defesa Nacional
3 – Ministro do Plano e Coordenação Económica

·         Secretário de Estado do Planeamento
·         Secretário de Estado da Coordenação Económica
4 – Ministro da Administração Interna
·         Secretário de Estado da Administração Regional e Local

·         Secretário de Estado da Administração Pública

·         Secretário de Estado da Integração Administrativa
 5 – Ministro da Justiça

·         Secretaria de Estado da Justiça

6 – Ministro das Finanças
·         Secretaria do Estado do Orçamento

·         Secretaria de Estado das Finanças

·         Secretaria de Estado do Tesouro

·         Subsecretaria de Estado do Tesouro
7 – Ministro dos Negócios Estrangeiros

·         Secretaria de Estado da Emigração
8 – Ministro da Agricultura e Pescas

·         Secretaria da Estruturação Agrária

·         Secretaria do Fomento Agrário

·         Secretaria do Comércio e Indústrias Agrícolas
·         Secretaria das Pescas
·         Subsecretaria de Estado das Florestas

9 – Ministro da Indústria e Tecnologia
·         Secretaria de Estado da Indústria Ligeira

·         Secretaria de Estado da Indústria Pesada
·         Secretaria de Estado da Energia e Minas
10 – Ministro do Comércio e Turismo
·         Secretaria de Estado do Comércio Interno

·         Secretaria de Estado do Comércio Externo
·         Secretaria de Estado do Turismo
11 – Ministro do Trabalho

·         Secretaria de Estado do Trabalho
·         Subsecretaria de Estado do Trabalho
12 – Ministro da Educação e Investigação Científica

·         Secretaria de Estado da Administração e Equipamento Escolar

·         Secretaria de Estado do Ensino Superior
·         Secretaria de Estado da Investigação Científica
·         Secretaria de Estado da Orientação Pedagógica

·         Secretaria de Estado da Juventude e dos Desportos
13 – Ministro dos Assuntos Sociais
·         Secretaria de Estado da Saúde

·         Secretaria de Estado da Segurança Social

·         Comissão da Condição Feminina (interministerial)
14 – Ministro dos Transportes e Comunicações
·         Secretaria de Estado dos Transportes e Comunicações
·         Secretaria de Estado da Marinha Mercante

15 – Ministro das Obras Públicas
·         Secretaria de Estado das Obras Públicas

·         Secretaria de Estado dos Recursos Hídricos e Saneamento Básico

16 – Ministro da Habitação, Urbanismo e Construção

·         Secretaria de Estado da Habitação e Turismo
·         Secretaria de Estado da Construção Civil

17 – Ministros da República para a Região Autónoma da Madeira e para a Região Autónoma dos Açores.
Citar: AMNunes - «A posição dos ministérios na ordem de predências em Portugal (1640-1976)», http://virtualandmemories.blogspot.com/, postado em 16.11.2011

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Figuração da batina ordinária de um corpo usada pelo clero secular português na década de 1830, segundo caricatura de 1836 (acervo BN)
Ausência de colarinho, mangas encurvadas, relativamente estreitas, a afunilar na direcção dos punhos. Uma variante com grande cabeção cosido sobre o peito e costas, remantando na frente em feito de bico. Exibição de barrete quadrangular convencional de de tricórnio de feltro com borlas pendentes.

Retrato do cardeal patriarca de Lisboa, D. Inácio I, falecido em 23.2.1883. Bem explícitos o ferraiolo, a chamarra italiana avivada e a canoa ainda com as abas reviradas.
Fonte: O Occidente n.º 152, de 11.3.1883

Aspecto da chamada chamarra italiana (samarra, zimarre, simar), uma veste de grande ostentação que se populariza na Roma de meados do século XIX e rapidamente corre mundo. O Papa Pio IX gostava do feito da chamarra e usou frequentemente uma em branco integral.
Como definir esta veste talar que hoje em dia aparece abusivamente referida como "batina" na maior parte dos dicionários e sites? Não é uma sotaina, túnica singela que, como o próprio nome indica, era uma veste interna que se trazia sob a opa, chamarra ou garnacha, conhecendo-se 3 variantes: sotaina çarrada ou de enfiar pela cabeça, podendo ter curta carcela rasgada entre o pescoço e o peito, ou apertar e alargar nas costas com cordões; a sotaina de carcela vertical frontal, vulgarizada nas togas judiciárias/académicas e na batina ordinária; a sotaina de fechamente dianteiro assertoado, como nas batinas anglicanas, gregas, russas, e na antiga veste interna da beca de desembargador. Não tem causa roçagante. A manga é sempre de grande ostentação, com canhão ornado de 5 botões forrados e sobremanha cosida na costura do ombro. Comporta colarinho raso. Incorpora romeira forrada, fendida na frente. Aperta com cinto de seda, tendo sempre as italianas cordões fixados entre a axila e a cintura para sustentar a dita faixa. Da batina ordinária recicla o saio de três machos posteriores. A carcela é habitualmente dupla, com caseado falso e botõezinhos bordados ou forrados.
Éra considerada veste de arruar. O Papa Pio IX autorizou o seu uso nas audiências solenes. O seu uso era proibido nos templos durante o exercício de funções públicas, considerando os mais puristas que nunca se deveria envergar com sobrepeliz, roquete, mantelete ou murça.
O tecido mais comum é a lã preta, forrada e avivada na cor da dignidade (escarlate para cardeais, tom róseo para arcebispos e bispos, etc.). O modelo preto integral leva uma orla no rebordo da cercela, colarinho e punhos. Os pespontos também são na cor da dignidade do portador. A chamarra adoptada pelos papas é no branco integral dos dominicanos, de cetim no verão e em seda no inverno.
Quanto à designação vulgarizada, para mim que ando a partir pedra da pedreira vai para mais de vinte anos, uma chamarra não é uma veste talar de um corpo. Mas pronto, o que está, está...

Feitio dos dois panos traseiros que formam as costas da batina coral identificada na imagem seguinte, com os típicos três machos que conferem à causa um cair deltóide. A extremidade da cauda costumava ser repuxada e presa à cintura com dois botõzinhos bordados (visíveis na imagem ampliada)

A batina coral em seda, integralmente forrada. Aspecto dos canhões, carcela de botões bordados e cauda. As mangas são encurvadas e não tem colarinho algum.
Modelo confeccionado em Itália, com cerca de 1,77m de altura, por volta de 1740. Pertence ao acervo do Metropolitan Museum of Art (http://www.metmuseum.org/Collections/)

Um aspecto da batina talar ordinária
A batina talar romana ordinária é uma veste de corpo único, ao contrário das vestes talares eclesiásticas e judiciárias dos séculos XV e XVI que eram duplas (veste de baixo e sobreveste). O modelo clássico da batina ordinária, em lã preta, tinha as seguintes características:

-corte de base em 5 panos (1 costas, 2 frentes direita e esquerda, 2 mangas);
-duas mangas em forma de tubos que nas batinas dos séculos XVII e XVIII afunilavam entre o cotovelo e o punho, sem sobremanga nem canhão nos punhos, e eram encurvadas;
-colarinho raso, relativamente baixo (1 a 1,5cm de altura) nas batinas de oitocentos e total ausência de colarinho nos modelos confeccionados nos séculos XVII e XVIII;
-fixação do saio posterior pela linha da cintura com três machos, 1 central e 2 lateriais;
-dois bolsos verticais com cerca de 17 a 20 cm de altura metidos nas costuras lateriais, que podiam ter fundilhos ou ser falsos;
-carcela vertical dianteira munida de caseado e botõezinhos forrados a fio bordado ou a tecido (jamais botões de massa);
-bainha pespontada a toda a volta e reforçada com entretela;
-forro interior pleno nas mangas, corpo e saio (nas actuais forram-se mangas e corpo).
Excepções:
-a batina podia ser avivada nas orlas, caseado, botões e pespontos;
-nos modelos portuguses do século XVIII fixados em retratos de clérigos notamos a presença de um canhão que dobra por fora do punho (tal e qual como na camisa de punhos), ainda hoje aplicado em algumas becas de juiz;
-podia levar um bolso sobre o peito esquerdo, escondido por dentro, que servia para guardar o relógio de bolso ou cebola de grilhão;
-em alguns modelos portugueses, em vez de três machos metidos no saio, usava-se 1 macho central e 2 generosas pregas laterais.
Esta batina vestia-se de ordinário com chapéu de feltro dobrado em três (tricórnio), volta branca (colarinho), cabeção de abas, calções, meias altas e sapatos pretos ornados de fivela de latão amarelo ou de prata.
Esta é que era considerada a batina ordinária ou comum de um corpo antes de se ter popularizado a vistosa batina romana, mais conhecida por zimarra (samarra, chamarra, simar, zimarre) que não é chamarra nenhuma mas sim uma batina de ostentação. A chamarra era a sobreveste da loba, havendo quem lhe chamasse opa, o que não está mal visto, pois não tinha mangas ou se as tivesse eram largueironas. O que a batina ordinária não podia ter era cauda, pois tal adereço era reservado à batina coral.
Fonte: Retrato de Monsignor James Andrew Corcoran (1820-1889), http://digitalgallery.nypl.org/

Outra fonte de inspiração para a estátua de Viseu: desenho-retrato do bispo D. António Alves Martins (falecido em 5.2.1882) publicado na revista O Occidente n.º 114, de 21.2.1882.
O chápeu é o capello ou saturno romano de calote semi-esférica e abinha curta que tinha começado a fazer furor em Roma.

Uma das fontes de inspiração da estátua erguida em Viseu ao bispo Alves Martins. Caricatura de Rafaeal Bordalo Pinheiro publicada no Álbum das Glórias (década de 1880)

A blue coat longa ou talar (existe versão curta, tipo casaquinho de 3/4). Pintura a óleo de Georges Hughs, 1833, acervo do Wardrown Park Museum

Frente costas da blue coat

Aquilo que poderá ser um modelo mais recuado da batina de um corpo: a blue coat britânica, que na sua versão comprida remontará ao século XVI. A carcela é caseada apenas até ao baixo ventre; a parte posterior inferior mete cós horizontal e amplo saio pregueado no feito das antigas saias das camponesas.
Fonte: "Blue coat school", quadro de John Kemp, realizado por volta de 1879-1880. Pertence ao acervo do Gloucester Museums Service Art Collection

Um aspecto do hábito curto, hábito privado ou abatina. Retrato de Don Bernardino Lombardi, meados do século XIX. A sobrecasa tem carcela até ao baixo ventre, ao contrário da batina dos conimbricenses cuja carcela é plena. O ferraioleto é integralmente forrado. O chapéu é um tricórnio de feltro.
Fonte: http://www.newliturgicalmovement.org/

Cabeção e plissado do ferraioleto. Neste caso específico, bainha talar. Ao contrário das capas, capotes e mantéus, o ferraioleto não envolve os ombros.

Santo António Maria Claret com batina, balandrau avivado, cruz peitoral e canoa. A canoa era um chapeirão de feltro preto (ou na cor da dignidade) que no caso vertente leva orla em torno da aba e cordão de borlas. A canoa teve enorme voga entre os eclesiásticos seculares e regulares em Itália e muito particularmente nos territórios luso-espanhóis europeus e americanos. Uma alternativa à canoa era o tricórnio de feltro (não confundir com o barrete quadrangular ornado de cristas e pompom). Sensivelmente a partir da década de 1960 começou a entrar em moda na cidade do Roma um novo tipo de chapéu veio suplantar todos os outros (a meu ver bem menos interessante esteticamente), o saturno ou capelo romano.

O bispo Alves Martins na famosa estátua de bronze erguida em Viseu.
Que indumentária enverga o prelado? Alves Martins traja o chamado hábito curto, hábito privado, hábito de abade ou como se diria em Coimbra com a maior das desenvolturas a "abbatina". Em Lisboa, há quem tenha usado a expressão redingote, proposta que teremos de rejeitar de tal modo é incorrecta.
Este traje ordinário foi usado desde ca. 1660 por toda a Europa e territórios ultramarinos. Consta de sapatos de fivela, meias altas pretas ou na cor da dignidade (em seda, obviamente), calções, volta branca inteiriça e cabeção, colete masculino civil, sobrecasasa (inicialmente com carcela fechada e sem colarinho algum) e capa curta que na verdade tem feitio de ferraioleto.
A sobrecasaca era forrada de cetim, preto, ou na cor da dignidade. Podia levar vivos nas bainhas, carcela, colarinho, bocas de mangas e portinholas dos bolsos. A capa tinha cabeção derreado pelas costas (uma pala rectangular), tombando verticalmente numa espécie de belo plissado. Algumas eram forradas de cetim. Trazia-se a escorregar pelas costas, presa com dois fitilhos que apertavam no pescoço.
Na mão, o que parece ser simples bengala, é o bastão ou cana dos prelados, à época usual entre os prelados ibéricos, que a partir de 1850 passou a ser insígnia obrigatória de todos os reitores espanhóis. Uma cana para ser cana deve ter cordão trançado e glandes na cor da dignidade. Consta, no dizer de Ramalho Ortigão, que Alves Martins, não se ensaiava nada em puxar de umas bengaladas nas famosas caminhadas entre o paço de S. Vicente e o parlamento.
São raríssimas as fotografias de eclesiásticos portugueses com o traje de abatina, matriz da capa e batina dos conimbricenses. A pergunta é onde se inspirou o escultor?
Os clérigos ingleses também usaram este mesmo traje, mas com variantes dignas de registo. Por baixo da sobrecasaca uma sotaina preta de fechamento assertoado. Na cabeça, com bastante frequência, uma cartola de presilhas (aba ligada copa por cordões) e as inseparáveis polainas.

Que abafo/agasalho veste o bispo de Viseu D. António Alves Martins neste retrato? Será a capa talar ibérica, popularizada pela Companhia de Jesus desde o século XVI, ainda hoje em uso em Espanha (ali conhecida por mantéu espanhol, designação com a qual não podemos concordar por motivos históricos e técnicos) e entre os lentes da Universidade de Coimbra? Será o ferraiolo? Será o ferraioleto que também usou bastas vezes nas décadas de 1860 a 1880, figurado que está na estátua de bronze erguida em Viseu? Será o viatório, casacão talar de tipo sobretudo trazido de Itália por volta de 1800? Será o capote, abundantemente usado em Itália e na Pensínsula Ibérica por civis e eclesiásticos, com a sua característica romeira lançada em torno dos ombros, a que os italianos chamam tabarro e os espanhóis capa espanhola? Será um gabão (não é que parece mesmo um gabão com mangas tubulares metidas e romeira? Mas se é gabão, onde para o capuz dorsal?).
Eis a minha interpretação: Alves Martins veste um balandrau talar, abafo popular masculino civil e eclesiástico muito difundido em Portugal e Espanha nos séculos XVIII e XIX. Podia ser confeccionado em tecido preto de lã e forrada da mesma cor ou levar vivos nas bainhas (rebordo da romeira, bocas de mangas, bainhas dianteiras e vertical, colarinho). Em Espanha, onde tem variantes no talhe da romeira, ficou profundamente ligado à figura de António Maria Claret. O balandrau parece uma capa e mais parece um gabão. Tem mangas como o gabão clássico e romeira como o capote/tabarro.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

O rei da América, pela Prof. Jacqueline Hermann

Sobre a Autora: Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (1996), Pós-doutorado na Universidad Complutense de Madrid (2005-2006). Professora Associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com pesquisa e orientação em Pós-graduação voltadas para os seguintes temas: sebastianismos luso-brasileiros; cultura política e religiosidades luso-brasileiras, séculos XVI a XIX, messianismos, União Ibérica (1580-1640) e questões de gênero. Pesquisadora 2C do CNPq.

Este artigo veio publicado na revista TOPOI, vol. 8, n.º 15, jul-dez 2007, p. 124-158, disponível em http://www.revistatopoi.org/numeros_anteriores_topoi15/topoi%2015%20-%artigo6.pdf.


Uma palavra de agradecimento à Prof. Jacqueline Hermann por ter anuído ao nosso convite. Já dialogamos sobre a tradição dos Braganças não colocarem a coroa real na cabeça e sobre a coroa que D. João VI mandou fazer no Rio de Janeiro para a cerimónia da aclamação, que não usou, mas ostentou.

O rei da América

Notas sobre a aclamação tardia de D. João VI no Brasil



              Jacqueline Hermann*




“Que monarca Europeo transpoz o Oceano.

E á Quarta Parte nova há dado a gloria

De possuir hum throno?”[1]

             “Conhecemos a largueza do Príncipe na multidam dos espetaculos”[2]




1- As peças do tabuleiro
O primeiro verso acima é parte de um dos vários poemas elaborados para saudar a aclamação de D.João VI na América, e pretendia demonstrar o orgulho que tomou os corações dos súditos do Reino do Brasil por abrigar tão grandioso acontecimento. Publicado em 1817, o poema adiantou-se à concretização do evento propriamente dito, só ocorrido no ano seguinte. Até mesmo o anúncio da data da aclamação foi posterior à entusiasmada comemoração do poeta: o decreto real que fixou a data de tão esperada efeméride foi publicado em 28 de janeiro de 1818, determinando o dia 6 de fevereiro para a celebração do reconhecimento de D.João como  Rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e dos Algarves, d’Aquém e d’Além-Mar em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia.
Embora usasse o título de rei desde a morte da mãe, a rainha D.Maria I, em 20 de março de 1816, D.João esperou quase dois anos para receber o juramento legal, eclesiástico e popular pela sucessão ao trono. Muitas podem ter sido as razões para adiamento tão longo, embora sejam ainda pouco discutidas e analisadas pela historiografia brasileira ou portuguesa. O objetivo deste texto é apresentar algumas possibilidades de análise para a alteração do cerimonial monárquico na América,  procurando estabelecer as relações entre as contingências coloniais e européias e os desdobramentos imprevistos do enraizamento de D.João e seus ministros no Brasil.
Quando chegou ao Brasil, em 1808, D.João era Príncipe Regente, Título que ostentava de fato desde 1792 e de direito desde 1799, em virtude do impedimento de sua mãe por problemas de saúde. Entre 1808 e 1818, o Brasil passara de colônia a Reino Unido de Portugal, elevado em 1815; a guerra que tomou a Europa e causou a vinda da família real para a América havia acabado; em 1816 a rainha morreu e o Príncipe D.João tornou-se D.João VI. Em 1817, sua autoridade real foi desafiada pelos patriotas pernambucanos e por militares liderados por Gomes Freire Andrade em Portugal.
Não é fácil compreender como todos esses acontecimentos, e as pressões que D.João passou a sofrer para que voltasse a Portugal desde 1812, combinaram-se para retardar a cerimônia de aclamação que, conforme o uso antigo, disse o próprio rei no decreto, sempre se realizava em momentos de transferência de poder da monarquia. Tampouco é claro como, e porquê, depois de tanto tempo, D.João decidiu-se por uma festa tão grandiosa e cara para temperamento sempre referido como discreto e introspectivo e para monarquia considerada das mais pobres da Europa.
Os acontecimentos posteriores à derrota de Napoleão pelas tropas dos Estados vitoriosos – Áustria, Prússia, Rússia e Inglaterra – e as negociações postas em curso no Congresso de Viena, alteraram o quadro europeu de forma significativa desde que a família real portuguesa chegara ao Brasil. Na verdade, desde fins de 1814, e antes portanto da definitiva derrota napoleônica em Waterloo, as conversações diplomáticas procuravam reorganizar o cenário geopolítico e estabelecer as sanções a impor à França. Momento de forte reação conservadora e de fortalecimento das monarquias, custaria caro a Portugal a falta de empenho da Inglaterra para recuperar as imensas perdas e despesas lusitanas decorrentes da expansão napoleônica. Neste caso, o afastamento da corte do centro dos acontecimentos foi um ônus, compensado, no curto prazo, pela maior capacidade de manobra de D.João para, do Rio de Janeiro, afirmar a independência e tentar retomar algum poder para a monarquia portuguesa. A elevação do Brasil a Reino Unido de Portugal e Algarves, em 1815, e a decisão pela aclamação com pompa e circunstância, mesmo tardia, parecem indicar o esforço do rei para, ao mesmo tempo, manter-se distante das pressões da política européia e reforçar o poder da monarquia portuguesa na nova conjuntura.
Não há dúvida sobre a desigualdade de condições de Portugal e Espanha frente às demais monarquias da Europa na hora do acerto de contas equacionado no Congresso de Viena[3]. A questão é avaliar os prós e contras resultantes da transferência da corte para o Brasil, e como o que parecia bom para o Brasil – equiparar-se a Portugal como reino e abrigar a cerimônia de aclamação de um rei – funcionou de maneira inversa e negativa para D.João em Portugal. Se por um lado estes dois momentos pareciam expressar a autonomia política portuguesa no cenário europeu, e sobretudo indicar a crescente tensão das relações com a Inglaterra, por outro fragilizaram ainda mais as já desgastadas relações do rei com seus súditos portugueses, a fornecer ingredientes para os inimagináveis desdobramentos do movimento liberal de 1820.
A partir desse cenário, trataremos aqui de avaliar alguns aspectos do cenário político europeu e luso-brasileiro entre os anos de 1815 e 1818, durante o qual D.João e seus ministros-conselheiros foram alterando a base das relações com o Reino Unido, de forma a reafirmar a força da monarquia lusitana e de sua corte. A decisão pela aclamação de D.João na América será analisada a partir desta hipótese, ou seja, procurando entendê-la como resultante de um contexto mais urgente e imprevisto, e não como encadeamento lógico e esperado de um processo que conduziu o Brasil à independência. Embora a aclamação de D.João não seja quase mencionada pela historiografia dedicada ao estudo da ruptura política do Brasil em relação a Portugal[4], o período 1808-1822 é tratado mais a partir da independência do Brasil do que pelas urgências impostas para a difícil gestão política do período que a antecedeu.
Ao indicar “D.João e seus ministros” como agentes do quadro político em análise, pretendo discutir algumas intrepretações do clássico de Oliveira Lima sobre D.João VI no Brasil[5], dentre as quais a que advoga a autonomia do soberano nas decisões políticas tomadas no Brasil, com foco específico na questão da aclamação. A questão a ser levantada refere-se às alterações observadas no decurso da política monárquica portuguesa implementada a partir da América, influenciadas tanto pelas mudanças decorrentes do cenário europeu, como pelos diferentes perfis de seus ministros mais próximos. No caso específico da aclamação, importa uma aproximação com o todo-poderoso ministro Tomás Antônio Vila Nova Portugal, peça política chave do ano que antecedeu a decisão pela aclamação de D.João no Brasil.


2- De colônia a nova sede da monarquia: Brasil Reino Unido
É já muito conhecido o importante papel desempenhado por D.Rodrigo de Sousa  Coutinho no arremate da decisão de transferir a família real portuguesa para o Brasil. Um dos expoentes das Luzes em Portugal, exerceu diversos e importantes cargos políticos na corte portuguesa desde a segunda metade do século XVIII. Foi nomeado representante diplomático junto à corte de Turim em 1778, secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos entre 1796 e 1801; presidente do Real Erário entre 1801 e 1803 e ministro da Guerra e Negócios Estrangeiros na regência de D.João no Brasil, entre 1808 e 1812, ano de sua morte. Mas a trajetória de ascensão do 1º Conde de Linhares não se deu sem percalços, dos quais o mais grave levou a seu afastamento da vida política em 1803 por discordar da aproximação política com os franceses, defendida por Antônio de Araujo Azevedo.  Coutinho apostava na aliança com a Inglaterra, que terminou por prevalecer, enquanto Azevedo integrava a ala francófila, derrotada de primeira hora, mas que voltaria ao proscênio no Brasil depois da morte de D.Rodrigo[6]. Sem opção, Portugal abandonou a política de neutralidade[7] nos conflitos desencadeados pela Revolução Francesa, premido pela escolha entre a adesão à França ou à confirmação da aliança com o Reino Unido.
Ao projeto de transformação do Brasil na sede do Império português, “donde se volte a reconquistar o que se possa ter perdido na Europa”[8], defendido por D.Rodrigo, opunha-se o de Antônio de Araújo Azevedo, futuro Conde da Barca, mais preocupado com a posição de Portugal na Europa do que com os domínios ultramarinos. Embora tenha apoiado a decisão final da transmigração da corte, Azevedo perdeu o ministério dos Negócios Estrangeiros e da Guerra para D.Rodrigo no Rio de Janeiro. Com a morte do Conde de Linhares em 1812, Antônio de Araújo voltou ao ministério, passando a ocupar, a partir de 1814, a pasta da Marinha e Negócios Ultramarinos.
Na Europa o cenário também mudara. A derrota iminente de Napoleão levou a França a assinar o tratado preliminar de Paris, em 30 de maio de 1814. Enquanto isso, agravava-se a tensão entre Portugal e Inglaterra. A monarquia sentiu-se lesada pela representação britânica que fechou um acordo sem consultá-la: a decisão de devolver a Guiana à França, uma conquista efetiva e para a qual Portugal gastara homens e recursos desde 1809, sem qualquer compensação, a manutenção de Olivença, anexada à Espanha em 1801[9], e o estabelecimento de um pacto marítimo entre as potências signatárias do tratado – Prússia, Áustria, Rússia, Inglaterra e França - sem o aval de D.João. Tudo indicava a falta de empenho e interesse do governo inglês em preservar direitos portugueses[10].
Foram muitas as questões envolvidas nos acordos firmados entre maio de 1814 e 9 de junho de 1815, quando a ata final do congresso foi assinada. É riquíssima a documentação diplomática desse período e Oliveira Lima resume os embates que mais importaram a Portugal no capítulo dedicado a Viena no clássico já citado[11], não havendo como nem porque detalhar aqui os meandros ainda passíveis de análise com base nessas fontes. Interessa, sim, ressaltar a importância do ponto de inflexão das relações luso-britânicas, os caminhos que conduziram à reaproximação com a França e seus desdobramentos na política portuguesa engendrada da América.
A volta de Antônio de Araujo Azevedo aos negócios estrangeiros combinou, nessa perspectiva, convicções antigas do novo ministro e a conjuntura política imediata para a retomada das relações franco-portuguesas. Desta aproximação, a expressão mais evidente foi a chegada da chamada Missão Francesa ao Brasil em janeiro de 1816, cujos artistas tiveram participação destacada na elaboração e execução da cerimônia de aclamação[12]. É impossível não mencionar a proximidade da mudança de estatuto jurídico do Brasil com a elevação à categoria de Reino Unido, em dezembro de 1815, e o desembarque dos artistas franceses no mês seguinte, embora a possibilidade de exploração dessa relação fique aqui apenas indicada, a necessitar ainda de maior investigação.
Para o que aqui nos interessa, importa destacar a mudança de postura da corte – em alguns momentos reduzida aos poucos auxiliares de D.João – no Novo Mundo: da chegada cabisbaixa e humilhada à decisão de fazer grandiosa a terra que os abrigara. Passado o perigo napoleônico, a opção de ficar na América e equipará-la em dignidade aos reinos europeus invertia o sentido da relação inicial entre a cabeça da monarquia e seus domínios ultramarinos. Ao invés de voltar em situação desfavorável à Europa, ficar na América e decretá-la o palco de um novo momento da grandeza bragantina.
Os possíveis projetos e significados políticos impressos na decisão da elevação do Brasil a reino devem ser compreendidos na reengenharia das forças monárquicas da Europa, em geral, e do papel que Portugal ainda esperava exercer nessa nova conjuntura, em particular. Equação difícil, é verdade, na medida em que D.João pretendia atuar da América para recuperar poder no Velho Mundo, enquanto na outra beira do Atlântico as decisões de valorizar a monarquia no ultramar podiam soar como mais uma das excentricidades lusitanas, de pouco efeito no xadrez político do continente.
Ignorando as pressões para voltar a Portugal, fosse esta dos portugueses ou dos ingleses, D.João decidiu-se pela mudança de categoria da América no que sobrara do abatido império luso, ao invés de retornar a corte monárquica à sede do antigo reino. Elevar o Brasil a reino confirmava a opção do então Príncipe Regente de ficar no ultramar, e as razões para isso podem ter incluído tanto a relativa tranquilidade que aqui encontrara, livre das pressões políticas imediatas, protegido pelo oceano, como as ambições de seus novos escudeiros francófilos, a estimular uma ação à distância, mas sem abdicar de suas prerrogativas monárquicas. Antônio de Araujo sedimentou bem a ponte entre esses dois interesses, demonstrando mudança expressiva na trajetória pessoal e nas convicções políticas que, antes de 1807, defendia a importância do papel de Portugal na Europa.
Desde 1812, quando as tropas napoleônicas deixaram Portugal, calculava-se a data da volta da corte ao reino, segundo escreveu o ajudante da Biblioteca Real, Luis dos Santos Marrocos em uma das muitas crônicas enviadas ao pai contando o que se passava no Rio de Janeiro[13]. “Tem-se espalhado aqui a notícia de que cedo vamos para Lisboa; mas este cedo não pode ser menos que daqui dois anos...”, disse Marrocos incluindo-se na corte bragantina. “...quem sabe a certeza desse destino, cala-se; S.A.R, mesmo ouve que se quebram as cabeças com os cálculos, que se forma, e deixa-os nos seus desatinos”, completando: “posso assegurar a V.Mcê. que o barão do Rio Seco está edificando um soberbo Palácio no Largo dos Ciganos...; e outras pessoas mais vão criando raízes muito fortes neste país.”[14]
Marrocos indicava o que Pedro Octávio Carneiro da Cunha[15] chamou de “naturalização da Corte”, ou o processo de acomodação e enraizamento de parte do séquito que acompanhara a família real ao Brasil. Antônio de Araujo foi um dos mais “naturalizados”, daqueles que “aproveitara bem o ostracismo”: aqui tornara-se proprietário de estâncias no sul, interessou-se pelos negócios sem abrir mão da vida intelectualizada que cultivara na Europa. Araujo foi um ilustrado ibérico típico, e por isso mesmo não via contradição alguma ou mesmo necessária entre a valorização do conhecimento e a manutenção da ordem monárquica. Primeiro conde da Barca, estudou em Coimbra, foi ministro da corte portuguesa em Haia em 1787 – advogando a favor de acordo com a França, derrotado pelo inimigo D.Rodrigo de Sousa Coutinho -, ministro plenipotenciário junto à República Francesa em 1795, 1797 e 1801, transferido para São Petesburgo, onde permaneceu por três anos. Antes, em 1788, estudara ciência e literatura alemã, e a partir de então se interessou pelos estudos de mineralogia. Quando chegou ao Brasil junto com a corte, em 1808, era Ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, cargo perdido para D.Rodrigo. Manteve-se fora da política até a morte do desafeto, em 1812, quando a derrota dos exércitos napoleônicos e a restauração dos Bourbons tornou possível nova tentativa de reaproximação com a França. Crítico do excessivo poder inglês nos negócios e na política portuguesa, Araujo teve depois de Viena sua posição fortalecida pela débil ação da Inglaterra a favor dos interesses portugueses. A iniciativa de convidar e hospedar uma comitiva de artistas que difundissem os “louváveis ou desejáveis” aspectos da civilização francesa combinava política e interesse científico próprios da época. O conde da Barca chegou a montar em sua casa, com autorização de D.João, um Laboratório Químico-Prático, onde reuniu também vasta e importante biblioteca, integrada ao acervo da Biblioteca Real depois de sua morte.
A adesão do conde da Barca ao projeto de elevação do Brasil a Reino Unido parece ter combinado bem seus interesses pessoais radicados no Brasil a convicções políticas antigas sobre a importância de valorizar a corte e a soberania da monarquia portuguesa. Mas eram muitas as dimensões dessa decisão política. Internamente, a permanência da corte no Rio de Janeiro trouxe encargos para as capitanias, tornadas províncias[16]. As do norte reclamavam da falta de compensações e o tratamento diferenciado que o sul recebia, tendo de dirigir-se ao Rio como se faziam com a antiga metróple. A elevação a Reino Unido “neutralizava” juridicamente essa desigualdade, embora não tenha alterado o quadro de tensões intra-regionais que a corte aprofundou desde sua chegada.
Externamente era tempo de reafirmação monárquica, razão para que tomemos todo o cuidado com os possíveis significados políticos e simbólicos de qualquer ato relacionado ao fortalecimento dos princípios da realeza. Mello Moraes, em sua História do Brasil-reino e do Brasil-império[17], afirma que a idéia da elevação foi do ministro francês Tayllerand, para quem convinha a Portugal e “mesmo à Europa toda” que D.João se mantivesse no Brasil por prazo “tão longo quanto possível for”, de forma a manter “o enlace entre as nossa possessões européias e americanas”. O ministro, ao aconselhar o conde de Palmela,  então representante português em Viena[18], lamentava o apoio francês à “revolução da América inglesa” e a certeza de ver perdidas as colônias espanholas “pelo mau governo atualmente daquela monarquia”, por isso,

“eu consideraria uma fortuna, que se estreitasse por todos os meios possíveis o nexo entre Portugal e o Brasil; devendo este país para lisonjear seus povos, para destruir a idéia de colônia, que tanto lhes desagrada, receber o título de reino, e o vosso soberano ser rei do Reino Unido de Portugal e do Brasil..” [19]


Tayllerand só pensava na preservação da ordem monárquica, embora tenha servido ao Diretório revolucionário e mesmo a Napoleão[20], sem se importar com as consequências do conselho dado a Palmela, fosse para as já tensas relações com a Inglaterra, fosse com os súditos que o rei deixara em Portugal, e para os quais a elevação do Brasil representaria, na verdade, uma degradação imperdoável da antiga sede da monarquia. Para homens como Marrocos, ciosos da hierarquia que se deveria manter entre reino e colônia, o urgente era voltar, mas o que via no Rio de Janeiro não o animava:

“Uns dizem que a 17 de dezembro [de 1814] é que vem a publicar-se nossa retirada, e que esta se verifica para março; outros que para todo o ano futuro; outros finalmente afirmam que ela não se efetua, enquanto for viva S.Magestade, ou enquanto não se preencher o tempo deste último tratado com a Inglaterra. Daqui pode V.Mcê. concluir o quanto ainda estamos às cegas neste ponto; pois vemos continuar grandes obras e grandes despesas; no sítio do Andrahy (21/2 léguas distante desta cidade) se está preparado(sic) um bom palácio, com 50 oficiais, para a senhora princesa D.Carlota ir ali residir, e deixar o sítio de Botafogo. Na Livraria continuam as obras com o mesmo vigor…”



Um ano depois, ainda mais cansado da espera, acreditava que a volta da corte                      

“vem a ser uma questão como a Seita dos Sebastianistas: Dizes que aí está se prepararando o Palácio da Ajuda para a família real, quando para aí for. Também te digo que aqui se está preparando o Palácio de S.Cristóvão, e aumentando-se com mais da metade, para nele vir a assistir no futuro, em tempo de verão, toda a família real.”[21]


Marrocos estava certo. Em dezembro de 1815, em pleno verão portanto, D.João decidiu-se pela elevação do Brasil a reino, o que sacramentava o explícito desejo de ficar. Contou para isso, talvez de forma decisiva àquela altura, a chegada de armada inglesa ao Rio com a missão de transportar os Bragança para Portugal. É o mesmo Marrocos quem conta ao pai, em abril de 1815, a malograda tentativa de Strangford, embaixador inglês em Portugal, e do vice-almirante, Marechal de Campo em Portugal, Beresford, a qual deixou D.João “tão zangado e aborrecido”, pois se quando deixara o reino não via outra alternativa, agora, aprofundar as raízes na América parecia o mais certo a fazer. Não só esta decisão parece confirmar o quanto S.A.R. gostava de sua vida no Brasil, como indica a verdadeira saturação com o nível de ingerência que a Inglaterra pretendia exercer na administração direta de Portugal e do Brasil.
Mais que um ato diplomático, portanto, a elevação do Brasil e Reino Unido de Portugal e Algarves, em 16 de dezembro de 1815, foi um ato político de vários e importantes significados: respondia às pressões internas, sem necessariamente aliviá-las, como 1817 veio a comprovar; afirmava a intenção de D.João retomar as rédeas do governo de seus reinos e diminuir o peso da Inglaterra na administração dos domínios portugueses; reiterava o compromisso com a ordem monárquica em uma América dilacerada por movimentos de independência. E pretendia ressaltar, sobretudo, a grandeza dos Bragança, pois para D.João a supremacia da dinastia emprestava dignidade a seus reinos. Segundo Oliveira Lima, a residência prolongada de D.João no Brasil

“até constituía uma melhor garantia da independência de Portugal do que o apoio interesseiro da Grã-Bretanha, porquanto as colônias espanholas lutando ainda desesperadamente pela emancipação, serviam de excelente penhor de recolhimento da metrópole, a qual bem compreendia que Portugal tentaria engrandecer-se na América do Sul do que perdesse na Península.”[22]


Os desdobramentos internos e externos dessa decisão foram tremendos, mas antes deles muitos festejos ganharam as ruas por ocasião da elevação do Brasil. Com ânimo inverso ao de Marrocos, Luís Gonçalves dos Santos, o padre Perereca, deixou relato entusiasmado da “espontânea iluminação” da noite do dia 17 de dezembro, quando “desde o Amazonas até o Prata se fizeram em todas as cidades, e villas” do Brasil para “agradecer tão singular, e honorífica graça”. Para o padre, depois de abrigar o soberano, o Brasil “pedia e devia ter uma graduação política igual à majestade ao trono, que nele se estabelecera…” e a Carta Real “de um golpe desfez a anomalia política, e irregular sistema do antigo regime colonial”.[23] E ainda sem saber como se referir aos ex-colonos, ou talvez para destacar sua grandeza, o padre exclama “Já os portugueses da América não são inferiores em graduação, e direitos aos portugueses da Europa”, pois apesar de distantes geograficamente, “são contudo um mesmo povo, uma mesma nação identificada, não só pelos indissolúveis laços de sangue, pelo inato valor, lealdade ao soberano, e identidade de religião”, mas a partir de agora pelos “mesmos privilégios, honra e graduação”.
O padre Perereca escreveu suas memórias em 1821, depois portanto, da morte de D. Maria I, ainda rainha em 1815, e da aclamação de D.João em 1818, razão provável do lapso, ao relatar os festejos do Reino Unido, louvando a glória do “Senhor D.João VI! O primeiro no Novo Mundo. Primeiro em o habitar, primeiro em o felicitar, primeiro em o engrandecer; primeiro em fundar uma nova Monarquia, um novo Reino, um novo Império”. Luís Gonçalves expressava seu entusiasmo com um sonho antigo dos portugueses, mas que ele mesmo sabia, em 1821, irrealizável: a fundação de um novo império tendo à frente o soberano português.
Não é possível aqui abrir o parêntese necessário para analisar a longevidade e as transformações que o sonho imperial sofreu ao longo da história portuguesa entre os séculos XV e XIX, mas tampouco é possível deixar de mencioná-lo como estímulo de fundo à decisão da elevação do Brasil a Reino Unido[24]. Para nos concentrarmos apenas entre fins do século XVIII e início do XIX, já foi dito que o projeto de transferência da família real para o Brasil era visto por ilustrados do porte de D.Rodrigo de Sousa Coutinho como a melhor solução para a grandeza do império português, pois àquela altura era com as riquezas da América que Portugal garantia sua presença política e econômica na Europa. A abertura dos portos e as vantagens comerciais e tributárias conquistada pelos ingleses expressam bem o quão valorizada era a imensa colônia portuguesa da América. O próprio D.João teria declarado, quando de sua chegada ao Rio de Janeiro, sua intenção de “fundar um novo império”[25]. Este era projeto português antigo e anterior à chegada dos portugueses à América. A África foi durante bom tempo o alvo do sonho imperial, a essa altura fortemente marcado pela idéia de cruzada. Quanto ao Brasil, há menções de que desde fins do século XVI a América passou a ser cogitada para sediar o novo império, a ser construído sempre no futuro, e neste momento, tal como no XIX, para fugir das dificuldades enfrentadas na Europa. Mas foi na segunda metade do século XVIII, a partir dos ilustrados reformistas, que a idéia ganhou corpo, formulada em 1737 pelo diplomata D.Luís da Cunha. Em suas Instruções inéditas a Marco Antonio de Azevedo Coutinho, então nomeado por D.João V para a Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra[26]. Era clara, a essa altura, a importância do Brasil para o império português, sobretudo depois da descoberta de ouro e diamantes nas Minas. No início do séulo XIX, a situação de Portugal com as tropas francesas à porta, a pressão de D.Rodrigo de Sousa Coutinho e dos ingleses junto a D.João, terminou com concretizar o antigo sonho, que àquela altura mais parecia um pesadelo.
Em A utopia do poderoso império, Maria de Lourdes Vianna Lyra analisa a elevação do Brasil como “decorrência prática do que havia sido concebido em finais do século XVIII, como base do novo império:coexistência de Estados iguais unidos pelos interesses recíprocos e pelos laços de solidariedade”. Para Lyra, a historiografia dedicada à independência deu pouca importância ao papel desempenhado pelo sentido histórico da nova condição política do Brasil, segundo ela, aspecto a ser considerado para discussão do tipo e da composição do novo Estado que se pretendia construir[27]. Minha hipótese aposta menos na continuidade de um projeto imperial pré-concebido, e mais nas urgências do momento e da orientação das novas lideranças políticas ao lado de D.João depois da Restauração na Europa. Os tempos eram nebulosos e o destino incerto. Era necessário garantir o que fosse possível, e dessa perspectiva, elevar o Brasil a Reino parecia ser o caminho mais fácil para adiar a tomada das principais decisões, e talvez mesmo para escolher a menos pior no estreito leque de opções disponível.
A ascensão do conde da Barca, a reaproximação com os franceses e os desentendimentos com os ingleses parecem ter pesado na balança para a permanência da corte na América e para a elevação do Brasil a reino. 1815 terminara com os festejos pela elevação do Brasil, e 1816 começara alvissareiro, com a chegada da Missão Francesa, a indicar novo momento de grandeza para a monarquia lusitana, agora instalada em um de seus reinos, e não apenas refugiada em longínqua colônia americana. Com a vinda dos Bragança e da corte portuguesa para o Brasil, o interesse dos estrangeiros pelos trópicos viu-se aumentado e estimulado, do que dão exemplos os vários relatos de viajantes europeus da época, ainda hoje fontes preciosas sobre o período[28]. A preparação da missão artístitica francesa pode ser vista como uma continuidade desse processo de valorização da América, mas sua dimensão política fica mais evidente ao considerarmos que dois anos antes ela seria praticamente impensável. Com o novo cenário geopolítico, e a ascensão de Araujo, foi implementada a vinda dos artistas franceses, com os quais o conde da Barca pretendia dar impulso à criação de uma academia de ciências, belas-artes e belas-letras no Rio de Janeiro. Pode-se deduzir que as negociações para a chegada da Missão Lebreton iniciaram-se antes mesmo da efetiva transformação da colônia em reino, pois os artistas aqui aportaram em janeiro de 1816.
Às festas e à chegada dos franceses seguiu-se a tristeza pela morte da rainha D.Maria I. Doente e sem qualquer função política desde 1792, a rainha veio com a corte ao Brasil e aqui viveu, segundo o padre Perereca, “sempre com muito alívio, dando regularmente todas as tardes o seu passeio de coche, sendo sempre vista do seu povo”. Mesmo depois do recebimento da extrema-unção, divulgou-se a notícia de que Sua Majestade apenas estava mal no dia anterior ao anúncio de seu passamento, 20 de março. Marrocos comentara com o pai, cerca de um mês antes, o grave estado de saúde da rainha, pior a cada dia, e apesar “da diligência e desvelo dos facultativos com os socorros da medicina”[29]. Dias depois informou sobre a morte de Sua Majestade e descreveu a desolação de D.João, que “perdeu o comer e ainda persiste em contínuo pranto”.
O padre Perereca relata em detalhe a grandiosidade das exéquias de D. Maria, dignas de uma rainha, e comenta brevemente:

Depois de termos chorado, e sufragado a nossa rainha de saudosa memória, cumpria, segundo o antigo uso, e costume da nação portuguesa, que o senhor D.João VI fosse logo aclamado rei do Reino-Unido de Portugal, Brasil e Algarves com toda pompa, e solenidade; mas a piedade de sua Majestade fez deferir esta augusta cerimônia para uma época mais longínqua, não querendo misturar as lágrimas, que ainda vertiam os seus olhos, outras que não fossem exprimidas pela dor, e saudade de sua augusta mãe; portanto determinou o El-Rei Nosso Senhor que depois de passar o luto se faria sua aclamação no dia, que o mesmo real senhor fosse servido designar, e enquanto não chega esse glorioso dia para o Brasil, e especialmente para o Rio de Janeiro, que tanto suspira por ter a honra e glória de presenciar o real ato da aclamação de Sua Majestade Fidelíssima, o primeiro que se vai fazer no Novo Mundo, iremos continuando as nossas memórias…[30]


Para o padre, o adiamento da aclamação ficou a cargo da tristeza e do cuidado para não misturar as lágrimas emocionadas dos dois acontecimentos. Mas se o funeral da rainha seguiu o ritual da realeza, o adiamento da aclamação, inusual em monarquias com sucessão legítima assegurada, como era o caso da portuguesa neste momento, aguarda ainda estudo mais aprofundado. Embora tenha passado a assinar os documentos oficiais como D.João VI imediatamente após a morte da mãe, e não mais como Príncipe Regente, não é fácil compreender as razões da espera de quase dois anos para a cerimônia de aclamação. Rainha morta, rei posto em sua função, mas sem o alevantamento oficial, eis o que passaremos a discutir adiante.

 3- Enquanto a festa não vem...
Tratada como uma questão de pouca importância seja pela historiografia dedicada a D.João, seja pelos estudos sobre a vinda família real para o Brasil, a decisão pelo adiamento da aclamação de D.João implicou a deliberada alteração de um protocolo tão antigo como fundamental para a representação da grandeza da realeza. A expressão “fizeram seu dó, e depois alegrias como é de costume”, usada por cronistas espanhóis e portugueses desde fins da Idade Média, resumia a importância da continuidade ritual que envolvia o funeral de um rei e a aclamação do sucessor. Ao contrário do que disse o padre Perereca para justificar a decisão de D.João para não ser imediatamente reconhecido em ceromônia pública como o novo soberano, a morte de um rei causava um vazio que precisava ser o mais rapidamente preenchido com o louvor daquele que encarnaria a continuidade da dignidade real. Kantorowicz já nos ensinou como os reis tinham dois corpos, um humano, perecível e mortal; outro superior, sobre-humano e continuado pelo exercício terreno e temporário de algo que lhe ultrapassava: a dignidade real. O reconhecimento dessa dignidade dava-se exatamente na solenidade pública a que D.João VI houve por bem adiar.
Se já eram fortes as pressões para a volta da corte a Portugal, maior ainda foi a reação dos súditos europeus contra a possibilidade, remota que fosse, de um rei ser aclamado fora de Lisboa. O ultraje pela elevação do Brasil à dignidade de reino tornara juidicamente possível essa intenção, mas parecia hierárquica e politicamente inaceitável desprezo tão grande às raízes e tradições portuguesas aclamar um rei sem representação dos três estados. Marrocos informava ao pai em maio de 1816, com o costumeiro azedume:

“Dizem-me que a aclamação não se faz ainda, sem chegarem as deputações dos reinos de Portugal e Algarves, em razão de não haver Junta dos Três-Estados: não sei se isso é suprimento de cortes, mas parece-me um passo muito acertado, para não haverem depois questões, por não ser feita a aclamação na sede da monarquia. E por que não se fará lá? Dicant Paduani.”[31]


O fato é que a “corte” vinda com a família real para a América não teve o caráter representativo dos três estados da monarquia em solo português. A corte do Brasil era singular, na especificidade da transmigração, e na singeleza representativa: o príncipe regente, depois rei, dialogava apenas com os ministros mais próximos – em algumas ocasiões o interlocutor foi reduzido a uma única pessoa - , situação que lhe permitiu exercer o poder de forma mais livre e com o ritmo, lento, que lhe parecesse mais adequado.
Não foi possível localizar em nossos arquivos os debates portugueses acerca da resistência portuguesa à aclamação de D.João no Brasil, mas não é difícil supor que esta fosse questão capaz de retardar a solenidade. O adiamento daria tempo a D.João, mas quanto mais se enraizavam no Brasil os interesses do monarca e de seus ministros, como era o caso do conde da Barca, mais difícil decidir sobre matéria certamente importante, tanto para o rei, como para seu ministro e súditos do Brasil e de Portugal.
É possível argumentar que a cerimônia era dispensável, pois D.João já exercia, de fato, o poder desde 1799, quando assumiu oficialmente a regência de Portugal e de seus domínios. No entanto, na liturgia monárquica, o regente só se fazia rei depois da morte do último soberano aclamado, e para isso, era uso antigo, o novo monarca passava por um ritual de juramento e confirmação de seu direito ao exercício do poder. Foram provavelmente a divisão de D.João entre Portugal e Brasil, e sua decisão de aqui ficar, as bases para a anomalia que encarnou: sucessor legítimo, já exercendo o poder de fato, governou quase dois anos sem ser confirmado por consagração eclesiástica ou juramento dos estados.
A solenidade de reconhecimento de um rei tinha a função de confirmar a relação indissolúvel entre a cabeça – o rei - e o corpo do reino, reatualizando o caráter místico e sagrado dessa união. O adiamento dessa celebração parece indicar a frágil coesão desse corpo, dividido em duas partes concorrentes – Portugal e Brasil -, a primeira clamando a volta da corte, a segunda impondo-se como lugar preferido do rei. Por mais informado que estivesse, D.João não parecia acreditar que sua ausência fosse capaz de fazer de Portugal um espaço de questionamento direto de seu poder. O tempo, rapidamente, mostrou o quanto o rei calculou mal os riscos de sua escolha pela América.
O fato é que em 1816 o adiamento podia acalmar os ânimos na outra margem do Atlântico, enquanto aqui D.João punha em curso o que para Oliveira Lima eram planos imperialistas de expansão no sul do Brasil. Seria uma forma de compensar a perda da Guiana, restituída aos franceses pelos acordos de Viena. Na verdade a questão do Prata era bem mais antiga e delicada: ainda durante o tempo de D.Rodrigo de Souza Coutinho, as dificuldades políticas na região envolveram a então princesa Carlota Joaquina. Desde 1809 os projetos de D.Carlota para o Prata opunham-se à dominação portuguesa na região, considerada para a princesa parte inegociável do império espanhol. Mais que um golpe contra D.João, Carlota sentia-se visceralmente compromissada com os interesses de Espanha, como bem demonstrou o trabalho de Francisca Azevedo[32]. Mas em 1816 os tempos eram outros. D.Rodrigo havia morrido; Napoleão fora derrotado; a Inglaterra estava afastada das questões do Prata depois do início das rebeliões independentistas na região; as Províncias Unidas do Sul da Prata declararam a independência. Portugal e Espanha estavam de novo apaziguados pelos casamentos das duas infantas, habilmente conduzidos por D.Carlota, com os dois tios espanhóis: Fernando VII e o infante D.Carlos. D.João se beneficiava com a aparente neutralidade para intervir nas disputas entre Buenos Aires e a Espanha, e pretendia manter a integridade da Banda Oriental do Prata para Portugal. A invasão vitoriosa de Montevidéu em novembro de 1816[33] foi vivamente comemorada, e para voltarmos ao nosso assunto, este poderia ter sido um bom momento para a aclamação do rei. Mas ainda não foi desta vez.
A chegada de 1817 traria dificuldades inimagináveis para D.João. Em março, insubordinados contestaram o poder do monarca e tomaram a cidade de Recife por três meses. A insatisfação com a centralização do poder no Rio, os encargos para a manutenção da corte e a falta de respostas às demandas da capitania precipitaram o movimento. A repressão foi violenta e do Rio de Janeiro foi enviado o magistrado do Desembargo do Paço, Bernardo Teixeira, para julgar os envolvidos. Não há porque aprofundarmos aqui qualquer discussão sobre esse complexo episódio, para alguns insurreição, para outros revolução pernambucana. O fato é que D.João VI enfrentava, como rei presente, um questionamento direto de sua autoridade monárquica, e para Oliveira Lima esta pode ter sido uma das causas de mais um adiamento da aclamação. Impossível não perguntar por que não se deu exatamente o contrário: por que nesse momento de explícita contestação não aproveitou o rei para reiterar seu poder e confirmá-lo publicamente.
Houve um Plano das ordens que seriam executadas no dia do cerimonial de aclamação de d. João[34], elaborado pela Mordomia-Mor da Casa Real, arquivado sem data no Arquivo Nacional, prevendo o dia 6 de janeiro e não de fevereiro para a festa. Pode-se conjecturar ter sido preparado para o ano de 1817, data possível para a cerimônia, a cumprir-se o nojo de um ano, jamais observado por outro monarca português. Caso fosse possível confirmar essa data, ainda assim o adiamento não teria acontecido pelos acontecimentos pernambucanos, só iniciados em março deste ano. É o padre Perereca quem estabelece uma relação direta entre o episódio pernambucano e o adiamento da aclamação, segundo ele preprado para o dia 7 de abril de 1817, sem que saibamos como o padre chegou a essa data. Construíu-se, assim, a relação direta entre a “revolução” e a efeméride adiada, ainda carente de evidência documental plausível.
Mas não bastassem as contestações internas, mal Recife foi recuperado, em maio começaram as prisões para deter a conspiração militar liderada por Gomes Freire de Andrada em Portugal. A insatisfação com o comando das tropas pelo marechal Beresford, considerado “um ridículo aventureiro” pelos militares portugueses cansados da dominação inglesa e abandonados pelo rei, com soldos por receber e viúvas na penúria, enquanto o inglês vivia no luxo, combinaram-se para fazer eclodir a conspiração. Tal como no caso de Pernambuco, a insubordinação encabeçada por Gomes Freire de Andrada requer análise aprofundada e são muitas as dimensões políticas e evidentemente militares do episódio. A questão militar na Europa no contexto das guerras napoleônicas e em Portugal era problema grave e enraizado. Em Pernambuco tampouco foi fácil arregimentar homens para as tropas monárquicas, a demonstrar entrave crônico à consolidação da aliança entre súditos e monarca também na América. A insubordinação de homens armados para servir à monarquia – no caso português comandada militarmente por um inglês - explicitava o grau de insatisfação e de distanciamento entre a cabeça real e o corpo do reino.
Em julho os dois movimentos estavam controlados, embora não totalmente reprimidos, o que não impediu que se celebrasse efusivamente, quatro meses depois, a chegada da princesa D.Carolina Josefa Leopoldina, arquiduquesa de Áustria, para casar-se com o herdeiro D.Pedro. A cidade iluminou-se, tapetes cobriram as ruas, as janelas dos conventos se enfeitaram, um “magnífico arco romano”, arquitetado por Grand-Jean de Montigny, que chegara no ano anterior com a missão francesa, adornou a rua Direita. O povo foi para as ruas, representantes estrangeiros participaram dos dias de festa que se seguiram ao casamento de D.Pedro e D.Leopoldina, em novembro de 1817. Se foi  possível tão grandiosa festa, conforme a descrição do padre Perereca, o que ainda continuava a justificar o adiamento da aclamação?
O ano trouxe ainda outro dissabor para D.João: em 21 de junho morreu o conde da Barca, D.Antônio de Araujo e Azevedo, então Ministro e Secretário dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, a ser substituído pelo conde de Palmela, representante português na Inglaterra e na França. A vontade do rei não foi, entretanto, satisfeita, pois Palmela retardou ao máximo sua vinda para o Brasil e na prática, o lugar passou a ser exercido por Tomás Antônio Vila Nova Portugal, desembargador do Paço. Talvez a ascensão não programada deste último ministro de D.João no Brasil explique a opção pelas grandes festas de casamento de D.Pedro e, no ano seguinte, a esperada aclamação do rei. Os detalhes, a grandiosidade, a participação dos artistas franceses na arquitetura e decoração destas celebrações parecem trazer a marca do novo ministro, pouco conhecido, mas para quem convergiu um poder extraordinário nos últimos anos da corte portuguesa na América.
Findara o turbulento ano de 1817. O ano seguinte começava com a edição do decreto real marcando, finalmente, a data da aclamação pública de D.João VI como rei dos Reinos do Brasil, Portugal e dos Algarves, d’Aquém e d’Além-Mar em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia etc.. Os preparativos devem ter ocupado meses de trabalho de um verdadeiro exército de artistas, artífices e profissionais mecânicos para que, da América, o monarca reluzisse sua magnificência e demonstrasse o poder de sua monarquia ao mundo.

3- Enfim, a aclamação
É possível estabelecer uma relação entre a grandiosidade das festas de casamento de D.Pedro e sobretudo da aclamação de D.João VI, separadas por poucos meses, e o poder exercido pelo novo ministro do rei, Tomás Antônio Vila Nova Portugal. Coincidência não parece explicação razoável para o caso, pois o valor dado às representações públicas do poder da monarquia na América reuniu dinastias importantes do cenário de Restauração da Europa. As filhas de D.João VI e D.Carlota casaram-se, em 1816, com os tios Bourbons de Espanha, um deles o próprio rei; em 1817 D.Pedro desposou D.Leopoldina de Áustria, remontando o xadrez dos matrimônios intra-dinásticos que procuravam consolidar alianças e compromissos mútuos. Era tempo, portanto, de confiança nas instituições da realeza, ou de necessidade de confirmá-las face às rebeliões do primeiro semestre de 1817.
A ascensão imprevista de Tomás Antônio Vila Nova Portugal não fez dele um ministro menor. Ao contrário, desde meados de 1817 passou a intermediar as relações entre os governadores e o monarca, do que dá exemplo a farta correspondência a ele enviada pelo militar convocado em Portugal para apaziguar Pernambuco, Luiz do Rego Barreto, desde julho de 1817[35]. Personagem pouco conhecido, Tomás Antônio Vila Nova Portugal foi um conservador empedernido: doutor em Leis pela Universidade de Coimbra, desembargador da Relação do Porto em 1800, desembargador da Casa de Suplicação no ano seguinte, chegou ao desembargo do Paço em 1807, vindo a exercer a mesma função no Rio de Janeiro. Desde 1817 passou a concentrar as pastas do Reino, da Fazenda, dos Negócios Estrangeiros, da Guerra e por fim a da Marinha, chegando assim a acumular todos os ministérios da corte do Rio entre 1818 e 1821. Absolutista convicto, orientou a repressão à insurreição pernambucana através da ação do conde dos Arcos, então governador da Bahia, local de envio dos prisioneiros; perseguiu todas as sociedades secretas, sobretudo a maçonaria, arquitetou o alvará de 1818 que proibiu qualquer associação ou reunião de pessoas sem autorização real, e opôs-se a toda e qualquer inovação liberal que diminuísse o poder do monarca[36].
Com este perfil, não é difícil entender o valor dado pelo ministro às solenidades de representação do poder da monarquia portuguesa na América. Culto e versado em assuntos de jurisprudência e economia, parece ter sido tão discreto como o rei e pouco afeito à ostentação pessoal, mas não parece haver dúvida de que esteve por trás da grandiosa festa de aclamação real de 1818, tão suntuosa quanto inexplicável e talvez inútil diante do cenário melancólico da monarquia bragantina àquela altura, tida como das mais pobres de toda a Europa.
Oliveira Lima, em capítulo dedicado às solenidades da corte, zomba das festas anteriores à chegada da arquiduquesa Leopoldina ao Rio de Janeiro. Para o autor, só “aos poucos foi a corte emigrada refazendo seu ambiente de etiquetas”[37], razão para o desprezo com que relata, por exemplo, o enlace da infanta Maria Tereza com D.Pedro Carlos de Bourbon, infante de Espanha, em 1810. Seguindo a descrição de Luccock, ressalta o mau gosto do cenário armado e sobre a encenação do drama Triunfo da América conclui que “deviam produzir uma sensação mista de quadrilha de circo e marcha nupcial alemã”. E arremata, impiedoso: “O cúmulo do burlesco atingiram, porém, as festas, comemorativas ainda da boda, celebradas meses depois, e que decerto procriaram o carnaval fluminense”. Referia-se especificamente o autor ao carro alegórico dos mercadores, no qual “figurava um monte coroado pela estátua da América de arco, aljava, cocar e saiote de plumas, cercada de índios, quadrúpedes e pássaros assomando dentre as ervas e flores, donde também brotavam esguichos que agüavam a praça”.
Já no casamento de D.Pedro o cenário, literalmente, havia mudado. Aliás, antes disso, quando da elevação do Brasil a reino, os índios “eram parte obrigada da festa e ainda seriam parte essencial do simbolismo nacional”, mas nos festejos, dessa vez, “vira-se o país depor o cocar e o saiote de penas e assumir a coroa e manto com que brindara o príncipe regente” [38]. Mas nenhuma comemoração igualou-se em deslumbramento às festas decorrentes da aclamação de D.João VI em 6 de fevereiro de 1818. Apoiada nos artistas franceses, a decoração foi depurada de vestígios nativos e pôde resplandecer a grandeza da ocasião. Finalmente, o rei receberia publicamente a confirmação no trono que já ocupava e o juramento dos súditos. Pode-se dizer, em sentido figurado, estar o rei até aquele momento sem a coroação de sua dignidade real.
Sentido figurado porque nem D.João nem os reis portugueses que o antecederam foram coroados. Em outro trabalho analisei algumas das interpretações para a não inclusão dos ritos de unção e coroação dos reis de Portugal na cerimônia de aclamação. Interessava-me, à época, a relação estabelecida entre coroação e sagração pelos historiadores lusitanos dedicados ao tema. Sucintamente, cabe dizer que a coroa teve, nas cerimônias de alevantamento dos reis portugueses, e não de coroação, caráter importantíssimo, mas simbólico, participando do ritual, mas não adornando a cabeça do soberano. Segundo José Mattoso, coroa tornou-se ainda sinônimo de “reino” ou “casa”, e o atributo régio por excelência passou a ser o cetro, principal insígnia real das cerimônias de aclamação[39].
Assim se mantinham ainda as representações quando da aclamação de D.João VI no Brasil, o que não quer dizer que o ritual tenha se mantido sem alterações ao longo do tempo. A presença de artistas franceses e a reprodução de aspectos presentes na auto-coroação de Napoleão, em 1804, bem demonstra o quanto de contingente podem ser as encenações da tradição. Em lugar inimaginável para seus antecessores, é verdade, a solenidade procurou manter o rígido protocolo da celebração, a espelhar as hierarquias sociais vigentes e reiterar a importância da repetição ritual para a confirmação e exaltação da magnitude da realeza. O Plano das ordens que seriam executadas no dia do cerimonial de aclamação de d. João já referido, detalha cada passo da cerimônia e as minuciosas descrições disponíveis não deixam dúvida sobre o quão importante era a ocasião, a realçar, por outro lado, o vazio deixado pelo quase esquecimento de sua realização.
A data foi especialmente negociada com o papado: o dia das Chagas de Cristo – quando dor e morte podem ser sinais de redenção -;  imagens representando a “América largando o cocar, e em ação de pôr a Coroa Real na cabeça”, passiva, leal e obediente demonstrava a domesticação do exotismo à monarquia portuguesa; a África oferecia suas riquezas para a grandeza do Reino Unido. A segurança de que nenhum equívoco nativo macularia a imagem da festa foi garantida pela incorporação do arquiteto Grandjean de Montigny, do pintor Jean-Baptiste Debret e do escultor Auguste-Marie Taunay na equipe de preparação da cenografia da festa.
São duas as principais narrativas da cerimônia de aclamação: a do padre Perereca em suas memórias encomiásticas, e já aqui muito citadas, publicadas em 1825 em Portugal, e a editada no ano mesmo de 1818, pelo intendente de polícia do Rio de Janeiro na época, Bernardo Avellino Ferreira e Souza[40]. Ambos enfatizam o riqueza e o esplendor dos festejos que, minuciosamente preparados, deveriam representar a grandeza do poder do primeiro rei aclamado na América, evento extraordinário para europeus e americanos.
O Paço transformou-se em uma praça imperial, na qual Montigny ergueu um templo de Minerva, que além da estátua da deusa abrigava outra de D.João VI, e um arco do triunfo foi desenhado por Debret e projetado por Taunay. Cada lado do arco continha colunas da ordem coríntia com estátuas de Minerva e Ceres, representando a sabedoria e a prudência do rei, além da fartura da terra. No arco estava encenado, à direita, o desembarque do rei, amparado pela América e recebendo as chaves da cidade. À esquerda o soberano recebia as homenagens das Artes e Comércio, em reconhecimento pelos favorecimentos de D.João, intitulado Libertador do Comércio, no friso que encimava as armas do Reino Unido no centro do arco, gravado com J.VI. No meio da praça, um obelisco de mais de cem palmos de altura e “à imitação das agulhetas do Egito” que  “fingia ser de granito”.
A cerimônia iniciou-se no Paço com a decida do rei para a varanda do palácio especialmente desenhada por Debret para a ocasião. A sacada real ocupava toda frente do palácio e acabava no átrio da Capela Real, onde o rei, tendo diante de si o infante D.Miguel e o Príncipe Pedro, acompanhado ainda dos grandes do reino, bispos e oficiais, todos com suas insígnias, ministros e o secretário de Estado do Reino. Após a chegada de D.João na varanda – vestido do manto real de veludo vermelho, bordado em ouro, e trazendo à cabeça um chapéu com plumas brancas - tocaram os menestréis as charamelas, trombetas e os tambores, recebendo vivas e aplausos do povo que assistia da rua. O rei dirigiu-se à cadeira real, onde recebeu na mão direita o cetro de ouro em uma rica salva dourada das mãos do visconde de Rio Seco, dando início à etapa mais importante: o juramento.
Este obedeceu a rigoroso ritual, no qual o secretário de Estado, Tomás Antônio Vila Nova Portugal autorizou a entrada do desembargador do Paço, que anunciou: Ouvi, ouvi, ouvi, estai atentos. Depois de recitar uma “bela oração” e se retirar, teve lugar a parte religiosa da solenidade, quando o bispo capelão-mor recebeu dos mestres de cerimônias da Real Capela o missal aberto, e sobre ele o crucifixo de prata, os dois depositados sobre mesa próxima ao rei. Para fazer o juramento, o rei se ajoelhou em uma almofada, mudou o cetro para a mão esquerda, e pôs a mão direita sobre a cruz e o missal, e conforme as palavras lidas pelo secretário de Estado, jurou diante do bispo capelão-mor. De volta ao trono real, D.João VI assistiu ao juramento do Príncipe D.Pedro, que em seguida beijou a mão do rei, o mesmo fazendo o infante D.Miguel. Encerrada esta etapa, a bandeira real foi desenrolada pelo alferes-mor, e o rei de armas convidou os grandes, títulos e nobreza a prestar o juramento, assim como os títulos eclesiásticos e seculares, ministros de tribunais, fidalgos e demais nobres. Depois de aceito pelo rei o juramento dos vassalos, o alferes-mor bradou: Real, Real, Real, pelo Muito Alto, e Muito Poderoso Senhor Rei D.João VI Nossso Senhor, repetido por todos ao mesmo tempo em que soavam os instrumentos.
A festa se espalhou pelas ruas e teve no Campo de Santana outro pólo importante. Um palacete de madeira foi erguido para abrigar sua Magestade e a família real e transformou-se no centro do segundo dia dos festejos, reservado às manifestações populares. Os soldados dos batalhões fizeram evoluções, seguidos dos dançarinos do Real Teatro, além de corrida de touros. No dia 8 a real família e o soberano voltaram ao palacete, de onde assistiram uma queima de fogos, cujo ponto culminante foi a expressão Viva ElRei iluminada no céu, quando D.João recebeu para a cerimônia do beija-mão.
Para além do templo, arcos, palacetes e fogos, a iluminação foi um capítulo à parte. No Campo de Santana, Oliveira Lima cita 102 pirâmides luminosas, com brilho e gosto suficientes para “fazer pensar nas Tulherias e nos Campos Elíseos quando iluminados”. Houve verdadeira disputa entre corporações, repartições e particulares na elaboração das iluminações, e uma só casa teria se enfeitado com 6 mil lampiões!
A exuberância da festa procurou estar à altura da bondade do rei, que concedeu o perdão para vários dos acusados nas insurreições de Pernambuco em 1817, mas não para seus líderes, assim como o privilégio da aposentadora para aqueles que tivessem servido na Câmara e demais cargos. Concedeu ainda o tratamento de Senhoria à Câmara do Rio de Janeiro, “que além de ser a Capital do Reino Unido do Brazil, teve a honra de assistir á Minha Gloriosa Coroação…”.
Não pode passar sem comentário a expressão coroação usada por D.João para se referir à sua aclamação, pois em todo o ritual não só a coroa não aparece, como D.João se apresenta de chapéu para a cerimônia e saúda o povo com ele. Como já se disse, ao nomear a solenidade de investimento do título de rei de coroação, confundiram-se os historiadores e cronistas, pois mesmo em relatos minuciosos como o do padre Perereca, no qual cita apenas o cetro e o missal, podemos encontrar expressões como a de que D.João “cingiu a coroa”, embora em suas memórias o coroamento do rei não seja mencionado uma só vez. É o próprio Perereca quem narra a caminhada de El-Rei da varanda para a Real Capela, acompanhado a cada passo de aplausos, “os quais Sua Majestade benignamente recebia com afabilidade, o riso, a alegria no seu real semblante, tirando o chapéu nos diferentes arcos por onde ia passando…”. Quando se apresentou ao povo, tirou “com ternura, e majestade o seu chapeu por três vezes, outras tantas saudou o seu povo, inclinando um tanto a sua real cabeça.”[41]
Debret, que produziu quadros da aclamação, em nenhum momento representa D.João de coroa, pois 

“o soberano só usou o uniforme de gala no dia de sua aclamação, ainda assim sem a coroa em virtude do costume estabelecido desde a morte de D.Sebastião na África em 1580. D.Sebastião, dizem, foi levado ao céu de coroa à cabeça e deve trazê-la novamente a Lisboa. Por isso foi colocada ao lado de D.João VI, sobre o trono…”[42].


Não, nem mesmo D.Sebastião foi coroado – além de ter desaparecido em 1578  e não 1580. No entanto, a ausência da coroação propriamente dita não diminuía ou eliminava o caráter sagrado da monarquia e de seus representantes. Como disse o historiador José Mattoso no texto já mencionado, nada impedia que o rei se referisse a seu poder sobre a coroa real, embora não a usasse propriamente, como aconteceu com D.João VI. Mas isso parecia a essa altura apenas um detalhe: mesmo sem coroa, a América tinha agora seu rei.

4- De volta ao Atlântico
Primeiro soberano aclamado na América, o rei considerado retraído e pouco atento às urgências de seu tempo, custou, de fato, a ser entronizado oficialmente, situação inusitada para monarca legítimo e com sucessão assegurada. Por outro lado, quando o fez, não economizou na ritualização, que por até oito meses seguintes replicou em diversos lugares do Brasil. Os organizadores da confirmação real com toda pompa e circunstância possíveis não descuidaram da carga simbólica de cada passo.
Para sustentar as despesas dos festejos envolveram-se todos os que entendiam a importância de D.João VI para a consolidação dos interesses americanos. A Junta de Comércio foi responsável pela construção do arco do triunfo, enquanto o Senado da Câmara financiou o templo e parte da elite providenciou a iluminação, além do empenho pessoal de vários particulares para a grandeza da festa.
A Gazeta do Rio de Janeiro, primeiro jornal do Brasil, criado em 1808, dedicou edição extraordinária ao “glorioso acto da Aclamação do Senhor Dom JOÃO SEXTO, Nosso Augusto Soberano, e Modelo dos Monarcas do Universo” e descreveu com minúcia a solenidade[43]. Marrocos, com o costumeiro mal humor agravado pelos achaques do trópico, enviou para o pai, em 24 de fevereiro de 1818, uns exemplares da gazeta, advertindo

“que nellas há muita falta de exacção, e muita mentira, que não posso desculpar; pois narrando com enthusiasmo cousas não existentes, ou dando valor a ninherias, cahe no absurdo, ou talvez no dasaforo, de não publicar factos e circusntancias ainda mais essenciaes daquelle Acto.[44]


Esperando, como os sebastianistas, a volta do rei a Lisboa – e desejando incluir-se na comitiva de regresso -, Marrocos demonstrava o desgosto com o rumo dos acontecimentos. Homem próximo ao Ministro Tomás Antônio Vila Nova, nem assim entusiasmou-se pela cerimônia: “Sentirei muito de não estar presente a este Acto, inda não visto, mas além de me faltar para isso huma decente commodidade, he provavel que me ache em Casa”, modo de fugir da efervescência das ruas e das “fadigas a que já se deo princípio”.
Diferentemente de D.João, Marrocos custara a se adaptar ao trópico. Descreveu longamente as febres que o alquebravam por dias, às vezes semanas, e politicamente manteve-se fiel aos princípios da hierarquia que subordinavam o Brasil a Portugal. Acompanhava, à distância, o que se passava do outro lado do Atlântico, onde a insistência para a volta do rei não cessava e as idéias de separação de Portugal e Brasil começavam a despontar. Mais que nunca o sentimento de abandono era imenso, a alimentar a mágoa de que a antiga metrópole torna-se colônia do Brasil. Segundo Oliveira Lima houve destacamento militar importante durante os festejos do Rio “com receio de alguma manifestação de descontentamento da parte do elemento português pelo fato de ter lugar a aclamação do Brasil”[45].
No mesmo ano da aclamação, uma carta anônima queixava-se da inversão da relação colonial, “quanto ao comércio, aos ofícios, às fábricas, artes e agricultura” e reivindicava que aos portugueses fosse dado o mesmo tratamento conferido aos do Brasil:

“…e não somos nós por ventura, vassalos de V.M. para sermos tratados da mesma maneira  que são hoje os brasileiros? Que tão felizes se achão e nós em tanta desgraça? Há muito bem pode V.M. socorrer-nos, quando não, será por tempos, V.M. Rei de um Povo mendigo e desgraçado.”[46]


Oliveira Lima analisa as opiniões divergentes dos dois mais importantes conselheiros de D.João VI, o conde de Palmela e o ministro Vila Nova, nesses tempos de incerteza. O primeiro sonhando com o modelo de uma monarquia à inglesa, insistindo, por isso, na volta do rei à sede da antiga corte. Vila Nova defendia o oposto: D.João deveria ficar no Brasil, pois “uma vez desunido, o reino americano não mais tornaria a ligar[-se] ao europeu”.[47] Continuava o ministro a acreditar que o rei podia, da América, mostrar ao mundo a força do absolutismo e da grandeza monárquica. As odes elaboradas nesses tempos, muitas delas antes mesmo da aclamação como a já citada no abertura deste rexto, pareciam surdas aos sinais que vinham do Atlântico, e proclamavam, melancolicamente:

“Se vistes algum dia o que hoje Vêdes,

                                   Vós Estrangeiros, confessai sinceros
                                               Qual Soberano, qual ditoso Povo

                                   Comparais com Estes?

                                   Torna-se a noite em dia; he a cidade

                                   Hum luminoso clarão de immensas luzes

                                   Troão nos ares fogos crepitantes,

                                   Tudo prazer respira.[48]


Depois de tanto escolher o momento mais adequado, depois de subverter a tradição e tornar-se rei sem cerimônia pública de aclamação, D.João VI pôde aproveitar por muito pouco tempo a grandeza do poder que finalmente afirmara solenemente. Voltou a Portugal tão pressionado como chegara ao Brasil, premido pelos acontecimentos que teimavam em exigir-lhe sempre mais rapidez do que parecia capaz de acompanhar. Entronizado na América, voltaria a Portugal para jurar, contrafeito, uma Constituição. Mais uma vez chegava atrasado ao melhor da festa. 



Fontes e bibliografia consultadas

Fontes

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MARROCOS. Luís Joquim dos Santos.Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro,  1934, volume LVI.
Plano das ordens que seriam executadas no dia do cerimonial de aclamação de d. João. Apresenta a descrição de cada momento da aclamação, incluindo desde os atos que seriam praticados por d. João até a posição que cada membro da celebração ocuparia e a função que viria desempenhar. Conjunto documental: Papéis relativos à aclamação, sagração e coroação de dona Maria I, dom João VI, dom Pedro I e dom Pedro II. Arquivo Nacional, Fundo Casa Real e Imperial. Mordomia-mor, códice 569
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 Bibliografia
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ANOTAÇÕES


[1]              * Professora do Departamento de História da UFRJ. Esta pesquisa tem o apoio do CNPq. Sou imensamente grata a Francisca Nogueira de Azevedo, Ronaldo Vainfas e Monica Grin pelas observações feitas à primeira versão deste texto.
                        [1] Joaquim José Pedro Lopes. Acclamação de Sua Magestade Fidelissimao Senhor D.João VI. Rei do reino unido de Portugal, Brasil e Algarves. Rio de Janeiro, Na Impressão Regia, Anno 1817.
[2]              Panegírico a D.João III, João de Barros.
[3]              Os dois Estados Ibéricos há muito haviam perdido a supremacia do início da época moderna, tornando-se  verdadeiros satélites de Inglaterra e França. Desde fins do século XVIII, os desdobramentos da Revolução Francesa tornaram as alianças luso-britânicas e hispano-francesas pólos importantes do então frágil equilíbrio europeu. A opção portuguesa de deixar a Europa pela América impediu a humilhação sofrida com a prisão dos reis espanhóis, decorrente da invasão napoleônica. Os resultados posteriores foram igualmente imprevisíveis, deixando Portugal sem rei e ainda mais suscetível ao domínio político inglês, enquanto os Bourbons voltaram ao poder na Espanha, mas perderam boa parte de seus domínios coloniais americanos.
[4]              É vasta e riquíssima a historiografia que analisa a independência no Brasil, a exemplo dos trabalhos de Carlos Guilherme Mota (org.). 1822. Dimensões. São Paulo, Perspectiva, 1986; Emília Viotti da Costa “Introdução ao estudo da emancipação política do Brasil” in Carlos Gulherme Mota. Brasil em perspectiva. São Paulo, Difel, 1986; Fernando Antônio Novais e Carlos Guilerme Mota. A independência política do Brasil. São Paulo, Hucitec, 1996; Iara Lis Carvalho de Souza. Pátria Coroada. O Brasil como corpo político autônomo, 1780-1831. São Paulo, Unesp, 1999; Lucia Maria Bastos Pereira das Neves. Conrcundas e constitucionais. A cultura política da insdependência (1820-1822). Rio de Janeiro, Revan/Faperj, 2003; István Jancsó e João Paulo G.Pimenta. “Peças de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira) In C.G.Mota (org.). A viagem incompleta. A experiência brasileira (1500-2000). Formação: histórias. 2ª.ed. São Paulo, 2000.
[5]              Oliveira Lima. D.João VI no Brasil. 3ªedição. Rio de Janeiro. Topbooks, 1996. A primeira edição é de 1908.
[6]              Sobre o cenário português nos anos que antecedram a vinda dos Bragança para o Brasil ver Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves. As representações napoleônicas em Portugal: imaginário e política (c.1808-1810). Rio de Janeiro. Tese apresentada para concurso de Professor Titular no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ, 2002. Sobre o conde da Barca, ver L.B.P.N. Antônio Araujo de Azevedo. Ronaldo Vainfas (dir.). Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889). Rio de Janeiro, Objetiva, 2002, p.50-1.
[7]              F. A. Novais. “Política de neutralidade”. In Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). 2ª edição. São Paulo: Hucitec, 1981, pp. 17-56.
[8]              Apud L.M.B.P.N. As representações napoleônicas em Portugal: imaginário e política (c.1808-1810), p.55.
[9]              A disputa por Olivença era antiga. Localizada na fronteira entre os dois países ibéricos, situa-se no Alto Alentejo, na margem esquerda do Rio Guadiana, vizinha de Elvas e distante 24 kms. ao sul de Badajoz. Área litigiosa desde o século XIII, teve a ponte que a ligava aos dois lados da fronteira destruída durante a guerra de Sucessão espanhola, em 1709. A declaração de guerra entre os dois países em 1801 levou à ocupação espanhola de Olivença, confirmada pelo Tratado de Badajoz, neste mesmo ano. Apesar do reconhecimento, em Viena, do direito português ao território de Olivença, ele manteve-se integrado ao Estado espanhol depois da restauração bourbônica.
[10]             Para uma análise da questão da conquista da Guiana Francesa pelos portugueses ver Arthur Cezar Ferreira Reis. A ocupação de Caiena. Sergio Buarque de Holanda (dir.). HGCB. Brasil monárquico. Tomo II. Volume 1. O processo de emancipação. 9ª edição. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2001 e Oliveira Lima. A discussão da Guiana. D.João VI no Brasil, pp.357-369. O avanço sobre o espaço francês na América teve a finalidade, bem sucedida, de retaliar a invasão napoleônica na península.
[11]             Ver cap.XII: No Congresso de Viena, op.cit., pp. 301-334.
[12]             Para uma discussão sobre a vinda dos artistas franceses para o Brasil ver Lilia Moritz Scharcz. O sol do Brasil. Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de D.João. São Paulo, Companhia das Letras, 2008. 
[13]             Luís Joaquim dos Santos Marrocos veio acompanhando a segunda remessa de livros da Real Biblioteca da Ajuda, em março de 1811, e aportou no Rio de Janeiro em junho deste ano. A primeira leva veio com a família real em 1808 e em 1810 cerca de 50 mil itens integraram a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, criada por decreto de 27 de junho de 1810. As cartas que Marrocos enviou regularmente ao pai, Francisco José, são fontes preciosas sobre a vida na corte e da cidade do Rio de Janeiro. Sua forma de confundir-se com a própria família real expressa bem o forte sentimento monárquico que o ligava aos destinos de Portugal. Elas estão em Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro,  1934, volume LVI. Para sua atuação na Biblioteca Real ver Lilia Moritz Schwartz, Paulo Cesar de Azevedo e Angela Marques da Costa. A longa viagem da Biblioteca dos Reis. Do terremoto de Lisboa à Independência do Brasil. 1ª reimpressão. São Paulo, Companhia das Letras, 2002.
[14]             Apud. Oliveira Lima. Op.cit., p. 349.
[15]             Pedro Octávio Carneiro da Cunha. A fundação de um império liberal. Sergio Buarque de Holanda (dir.). HGCB. Brasil monárquico. Tomo II. Volume 1. O processo de emancipação. 9ª edição. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2001, p.147
[16]             O ilustrado e conselheiro de D.João VI, Silvestre Pinheiro Ferreira, informava a Portugal que nada mudara na prática administrativa: “É verdade que nada mais se fez do que esta simples declaração [elevação a Reino Unido]; e em vez de se regular a pública administração do Brasil nesta conformidade tudo continuou como dantes, e as províncias continuaram a ser governadas pelo arbítrio de governadores tão arbitrários e absolutos como dantes”. Cf. Estado Político do Brasil. Informações às Cortes Portuguesas por Silvestre Pinheiro Ferreira. Apud Maria de Lourdes Viana Lyra. A utopia do poderoso império. Rio de Janeiro, Sette Letras, 1994, p.163.
[17]             Cf.Alexandre José de Mello Morais. Historia do Brasil-Reino e Brasil-Imperio. Rio de Janeiro : Typ. de Pinheiro e C., 1871. vol.1.
[18]             Pedro de  Holstein foi feito conde de Palmela em 1812, em retribuição a sua exitosa atuação em Cádis, onde participou da guerra peninsular. Neste mesmo ano foi para Londres, em substituição a Domingos Antônio de Souza Coutinho, conde de Funchal e irmão de D.Rodrigo. Depois da derrota de Napoelão foi nomeado representante plenipotenciário de Portugal no Congresso de Viena.
[19]             Apud Oliveira Lima, p.335.
[20]            Charles-Maurice de Tayllerand prestou serviços políticos a governos de diferentes orientações políticas: começou com Luís XVI, passou pelo Diretório, o Consulado e o Império de Napoleão Bonaparte, até voltar-se contra o imperador e atuar na restauração dos Bourbons ao trono francês. Teve papel destacado na arquitetura política definida em Viena, reequilibrando o poder francês na geopolítica européia e atenuando a gravidade das punições das guerras napoleônicas.
[21]             As duas citações estão em Oliveira Lima, idem, p. 351-2.
[22]             Oliveira Lima. Op. cit., p.579-80.
[23]             Luís Gonçalves dos Santos (Padre Perereca). Memórias para servir á História do Reino do Brasil. Belo Horizonte/Itatiaia, Sâo Paulo/Editora da Universidade de São Paulo, 1982.  Tomo II, p.28-9. Estas memórias foram escritas no Rio de Janeiro e publicadas em 1825 pela Impressão Régia de Lisboa.
[24]             Impossível citar aqui a vastíssima produção sobre os projetos de fundação e refundação de um império português na África, no Oriente, na América, pois as formas e sentidos desse projeto alteraram-se e adaptaram-se às diferentes conjunturas históricas entre os séculos XV e XIX. Para citar um exemplo, o mais importante deles, lembro os escritos de Antônio Vieira, que como ninguém fundiu os projetos quinhentistas e barrocos na clássica Carta ao Bispo do Japão, André Fernandes, de 29 de abril de 1659, intitulada Esperança de Portugal, Quinto Império do Mundo. Esta carta embasou o processo inquisitorial sofrido por Vieira e a partir dela o jesuíta escreveu sua História do futuro, provavelmente concluída em 1667, mas só publicada em 1718. A esta seguiu-se a incompleta Clavis prophetarum, apoteose da trilogia messiânica e milenarista iniciada com o escrito de 1659. O Quinto Império seguir-se-ia ao Romano, seria dirigido por D.João IV ressuscitado e sob sua liderança haveria a conversão de todos os judeus, gentios e hereges ao cristianismo.
[25]             Oliveira Lima. Op.cit., p. 56.
[26]             Segundo estas mesmas Instruções, o avô de D.Luís da Cunha, então governador de Lisboa, D.Pedro da Cunha, teria aconselhado D.Antônio, Prior do Crato, em 1580, a se fixar na América, para daqui obter a adesão de outras potências na luta que travava contra Felipe II para fazer-se rei de Portugal e impedir a submissão de Portugal à Espanha. Ver a respeito Joaquim Veíssimo Serrão. O reinado de D.Antônio, Prior do Crato. Coimbra, 1956, pp.124-5. O autor voltou a discutir essa questão em “A realeza de D.Antônio, Prior do Crato. Novos dados de um problema histórico” in O tempo dos Filipes em Portugal e no Brasil (1580-1668). Lisboa, Edições Colibri, 1994, pp.269-283. É pouco provável, à luz do que era a América portuguesa em 1580, que D.Antônio tivesse pensado em estabelecer nela seu reinado, questão que a meu ver precisa de análise mais detida.
[27]             Maria de Lourdes Viana Lyra. Op.cit.,  p.159. 
[28]             Para uma visão de conjunto ver Carlos Oberacker. Viajantes, naturalistas e artistas estrangeiros. Sergio Buarque de Holanda (dir.). História Geral da Civilização Brasileira. Brasil monárquico. Tomo II. Volume 1. O processo de emancipação. 9ª edição. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2001.
[29]             Marrocos, 23 de fevereiro de 1816.
[30]             Luis Gonçalves dos Santos. Op.cit., p.66-7.
[31]             Apud Oliveira Lima.Op. cit.; p.583. A carta de Marrocos ao pai é de 28 de maio de 1816.
[32]             Francisca L. Nogueira de Azevedo. Carlota Joaquina na corte do Brasil. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2003, especialmente o capítulo IV.
[33]             Cf. J.A. Soares de Souza. O Brasil e o Prata até 1828. História Geral da Civilização Brasileira. Brasil monárquico. Tomo II. Volume 1. O processo de emancipação. 9ª edição. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2001.
[34]             Plano das ordens que seriam executadas no dia do cerimonial de aclamação de d. João. Apresenta a descrição de cada momento da aclamação, incluindo desde os atos que seriam praticados por d. João até a posição que cada membro da celebração ocuparia e a função que viria desempenhar. Conjunto documental: Papéis relativos à aclamação, sagração e coroação de dona Maria I, dom João VI, dom Pedro I e dom Pedro II. Arquivo Nacional, Fundo Casa Real e Imperial. Mordomia-mor, códice 569.


[35]             Estas cartas foram organizadas e publicadas por Evaldo Cabral de Melo e estão publicadas na Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco, vol. LII, 1979, pp. 81-215.
[36]             Cf. Lucia Bastos Pereira das Neves. Tomás Antônio Vila Nova Portugal. Dicionário do Brasil Imperial, p.700-1.
[37]             Oliveira Lima. Op.cit., p. 605.
[38]             Idem, ibdem, p.606-8.
[39]             Para uma análise do debate historiográfico português sobre a questão, ver Jacqueline Hermann. No reino do Desejado. A construção do sebastianismo em Portugal, séculos XVI-XVII. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, especialmente capítulo 3. Os principais textos sobre a questão da sagração dos reis portugueses são de Antônio Brásio. O problema da sagração dos monarcas portugueses. Anais da Academia Portuguesa de História, volume 12, 2ª série. Lisboa, 1962, e Paulo Merêa. Sobre a aclamação dos nossos reis. Revista Portuguesa de História. Tomo X. Separata. Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1962. O texto de José Mattoso citado é A coroação dos primeiros reis de Portugal. Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto (orgs.). A memória da nação. Lisboa, Sá da Costa, 1991. 
[40]             Luís Gonçalves dos Santos. Op.cit., pp. 151-179, e Bernardo Avellino Ferreira e Souza. Relação dos festejos, que á feliz acclamação do muito alto, muito poderoso, e fidelissimo Senhor D. João VI. Rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves Na noite de indelevel, e faustissimo dia 6 de fevereiro, e nas duas subsequentes, com tanta cordialidade, como respeito votarão os Habitantes do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Na Typographia Real, 1818.
[41]             Luis Gonçalves dos Santos. Op. cit., p. 162-3.
[42]             Cf.Jean-Baptiste Debret. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo, Martins Fontes, 1975. Angela Miranda Cardoso refere-se à tradição dessa interpretação inaugurada por Debret e continuada por John Armitage, Pedro Calmon, Octavio Tarquino e Lilia Schwartz, tendo esta última corrigido-a em trabalho posterior. A fantasia dessa versão, foi, provavelmente, adensando-se com o tempo, e segundo uma de suas versões, a coroa ter-se-ia perdido simbolicamnete no Norte da África “esperando-se messianicamente pelo retorno do jovem monarca para que, novamente se a pudesse voltar a envergar.” Cf. Do sentido do estudo das cerimônias de entronização brasileiras. István Jancsó (org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo, Hucite; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003, p.569.
[43]             Gazeta do Rio de Janeiro, 10 de fevereiro de 1818.
[44]             Marrocos, carta de 24 de fevereiro de 1818.
[45]             Oliveira Lima, p. 609.
[46]             “Carta de hum fiel vassalo a El-Rei D.João VI relatando o estado do reino de Portugal sob o governo regencial e pedindo a volta de S.M.” apud Iara Lis Carvalho de Souza. Patria Coroada. O Brasil como corpo político autônomo 1780-1831. Sã Paulo, Unesp, 1999, p.58
[47]             Idem, p.649-50.
[48]             Ode anônima, apud Luiz Gonçalves dos Santos. Op.cit., p.181.