Virtual Memories

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

A capa tudo tapa

Encontrei recentemente um link com informação destinada ao público brasileiro sobre o hábito talar feminino das docentes da UC, ESTUDAR EM COIMBRA,


A informação prestada ao longo do filme não contém propriamente erros. Mais chocante e preocupante são a exorbitância dos preços indicados e  as patologias visíveis na morfologia de vestes pret a porter.
Volto a fazer um exercício comparativo entre o hábito talar/versão feminina e outras vestes talares corporativas de valia patrimonial e estética não inferiores ao modelo conimbricense. De acordo com a locutora do filme, um hábito feminino completo (peças principais e acessórios) varia entre 235 e 250 euros, podendo ser alugado nas lojas do pronto a vestir por 100 euros, os nos SASUC por 20 euros a diária. 
Uma mirada aos catálogos de várias lojas do pronto a vestir permite-nos concluir que uma toga professoral da UL pode atingir 305 euros, uma beca de juiz 390, uma toga de advogado oscila entre 175 e 195 euros, uma toga de professor da UNL atinge 265 euros e uma toga da ex-UTL 220 euros. Uma capa e batina completa para estudante do sexo masculino ronda os 135 euros e o tailleur/capa feminino pode variar entre 89 e 93 euros.
No caso do hábito talar feminino mencionado no vídeo, os preços de venda praticados são um abuso. Estamos a falar de um pequeno hábito, ou hábito menor, de fabrico industrial, e não de um traje manufacturado nem confecionado com tecidos de luxo como sejam a seda que era o pano próprio dos candidatos a ou dos detentores do grau de doutor. A inclusão dos acessórios no preço final constitui um ludibrio. Não há qualquer obrigação de comprar sapatos, meias e camisa no momento da aquisição do conjunto principal, podendo usar-se outros que se tenham em casa. Aliás, o acessório que se deveria comprar (melhor dizendo, que deveria ser oferecido pelas casas de uniformes, à semelhança do que oferecem aos clientes as casas de referência francesas, belgas e italianas) são as luvas de cerimónia. 
Os chamados abusivamente "sapatos académicos" são uma invenção da indústria de vestuário que surgiu nas casas do pronto a vestir de Lisboa na década de 1980 e se generalizou ao resto do país. Este tipo de sapatos não são mais do que uma cópia/replicação do modelo de sapato italiano das agentes policiais, também se podendo observar nos uniformes femininos da marinha. No meu tempo de estudante, os alunos e as alunas andavam com os sapatos pretos que tinham, de qualquer modelo, sendo inadmissíveis sapatos à policial. Não precisarei de perder tempo a explicar aos conhecedores das tradições académicas de Coimbra o motivo segundo o qual em circunstância alguma um estudante se aventuraria a usar sapatos de policial. A admitir-se algum sapato conforme com os rigores da etiqueta, esse sapato só poderá ser o sapato de pele preta ornado com fivela de prata. Tudo o resto é inventona e banha da cobra de vendedores apostados em produzir desconhecimento que procuram credibilizar as suas mercadorias baratas através da imitação de peças dos uniformes militares.
Como se tudo isto já não fosse pouco, a análise da morfologia das peças nucleares da veste aponta para uma avaliação não superior a sofrível. Mercadorias baratas que já não comportam a densidade própria do hábito talar quando era um bem cultural. Colarinhos mal confecionados, bainhas demasido curtas nas capas e na batinas, carcela desconforme, botões vulgares de massa, desencontro entre a ergonomia e os corpos, capas com pontas dianteiras embicadas. Quanto ao conjunto saia/abatina, ficam as minhas dúvidas e com elas arrisco ser chamado de conservador. Este tipo de traje é usado na atualidade por figuras do clero feminino sueco, pese embora sem capa, e não evoluiu para uma desfiguração à base de mini-saia/casaquinha de três quartos. Recuso-me a chamar hábito talar a um uniforme de mini saia e casaquinha. Retomando velhas e pertinentes críticas de Ramalho Ortigão, estaremos em presença do hábito talar ou o que se vende hoje em dia nas lojas do pronto a vestir não é senão uma libré de funcionária de hotel/uniforme de aeromoça? Lembram-se daquelas fardas desenhadas para as companhias de aviação civil entre 1965-1975, formato saca de batatas, curtinhas e encolhidinhas? Fica a dúvida, e a dúvida é pertinente quando se pretende vender gato por lebre e apresentar como vestes de cerimónia simulações de trajes ordinários. E o mesmo vale para a variante masculina. Como é sabido, muitos destes uniformes sem valor patrimonial intrínseco são erotizados pela indústria da cultura e é essa dimensão erótica que prevalece na sua (não) leitura visual. Já alguém ouviu falar de uma coisa simples e eficaz chamada controlo de qualidade? Não compete estatutariamente à instituição detentora a regulamentação da veste e a produção de desenhos/modelos que sirvam de referencial? Procedamos à avaliação de alguns parâmetros ligados ao processo de confeção e venda deste traje, tendo em conta dados disponíveis na internet, numa escala de Muito Insuficiente (MI), Suficiente (S), Bom (B) a Muito Bom (MB): rigor da informação prestada ao cliente (MI); diversificação do produto e oferta de acessórios (MI); rigor e fiabilidade etno-histórica do modelo confecionado (MI); promoção de pesquisa/investigação associada ao processo de confecção e venda [compromisso ético-social-cultural] (MI); promoção das artes manufatureiras e criação de emprego sustentado (MI); adequação preço/qualidade (MI); harmonia entre ergonomia e corpo do portador (MI).


Gravura francesa do chamado hábito talar de abatina/hábito curto/hábito privado/hábito doméstico/ hábito de abate/clerical frock coat/hábito de sotanelle (abatina ou meia sotaina)

Conjunto masculino de seda preta constituído por sobrecasaca/abatina, meio mantéu e chapéu tricórnio, segundo Nicolas Bonnart (1637-1717), "Recueil des modes de la cour de France-abbé de qualité en sotanelle", Paris, ca. 1678-1693; acessórios constituídos por sapatos pretos de tacão, meias altas de seda, calções pretos, véstia comprida (colete), plastron à francesa e peruca. Como se pode constatar, a forma clássica de aferir a altura da bainha da abatina não é o uso da fita do alfaiate mas sim a linha do joelho. Este traje quando passou a ser usado na UC substituiu o meio mantéu (ferraioletto), que é próprio dos oficiais (funcionários) pela capa talar.

 Representação do traje de abatina com a carcela desabotoada para permitir visualizar os calções e a camisa. Neste caso, o portador não veste véstia (colete). Gravura francesa de J. Dieu de St. Jean, 1683, acervo do Victoria and Albert Museum/Outro exemplar na coleção da BNF.

 O que são na realidade sapatos de cerimónia, próprios para uso com vestes talares de gala em contextos cerimoniais: sapatos pretos de pele, ornados com fivela (sendo esta passível de ornamentação em vários estilos). O que a etiqueta conimbricense e o hábito talar não admitem é a bárbara ficção da indústria do vestuário chamada "sapato académico".

 Um par original, manufaturado, finais do século XVIII