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sábado, 6 de setembro de 2014

Como se pormenorizou, uma variante das figurações sacras do Ecce Homo é o busto-relicário. Mais fácil de transportar, podia ser apropriada por manifestações de culto público nos templos, integrada em oratórios de habitações particulares ou embarcações ou transportadas por viajantes em caixas portáteis. A base servia de guarda-relíquias, observáveis através de um pequeno vidro colocado na parte da frente.
Esta modalidade de arte sacra foi produzida em diversos países da Europa católica desde a primeira metade do século XVI. Algumas terão sido lançadas ao mar nos anos de afirmação da reforma e dos conflitos de negação da autoridade romana. Daí as sucessivas notícias relatadas por devotos açorianos e brasileiros sobre achamentos de imagens sacras à beira mar, fechadas em caixões/arcas, que ao serem encontradas manifestavam sinais quanto ao local de construção dos espaços devocionais.
Esta imagem-relicário, existente na Capilla Real de Granada, Espanha, é atribuída ao imaginário Bernardo de Mora (1614-1684). Exibe uma dramaticidade contida e uma anatomia influenciada pelo modus faciendi renascentista, sem sinais óbvios de poder temporal.

Ecce Homo, imagem de vulto do Bom Jesus Milagroso entalhada em madeira estofada e policromada, que se venera no santuário do mesmo nome sito na paróquia de São Mateus, ilha do Pico, Açores. Trabalho tardo-barroco, possivelmente da década de 1850, executado no Brasil a pedido de um emigrante açoriano devoto do Bom Jesus de Iguape e ofertada à referida paróquia por 1860. A imagem comunga dos mesmos atributos de realeza, imponência e majestade sinalizados nas imagens existentes em São Paulo, Iguape, Tremembé e Pirapora. A hagiografia deste Bom Jesus coincide no essencial com os relatos orais de Iguape. Tal como as brasileiras, possui enxoval expressivo, tesouro e hino próprio. As festividades anuais realizam-se a 6 de agosto, com peregrinações, novenário, missa solene e procissão, concorridas por milhares de devotos. O culto está espalhado pelos Açores e comunidades de emigrantes radicadas nos USA e Canadá. À semelhança de outros Ecce Homo, esta imagem costuma exibir nas procissões cabelos ofertados por jovens do sexo feminino.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Ecce Homo da catedral de San Antolín, Palencia, Espanha, imagem de vulto em madeira policromada de grandes dimensões, atribuída ao imaginário Diego de Siloé (século XVI).
Fonte: catedral de Palencia, http://viajarcastillayleon.es/catedral-de-palencia.html

Ecce Homo, Bom Jesus de Tremembé, fotografia da parte superior da imagem de vulto que mede 1,96m de altura
Infelizmente não consegui obter nenhuma boa fotografia de corpo inteiro desta imagem que começou a ser cultuada em 1663 e parece ser a mais imponente de que há notícia nos países latinos.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Ecce Homo, imagem original do Bom Jesus de Iguape
Imagem de vulto, madeira entalhada e policromada, com cerca de 1,90m de altura. Trata-se de uma imagem anormalmente alta quando comparada com a estatura média dos portugueses e luso-brasileiros dos séculos XVI-XVII (1,60m a 1,65m). Rosto barbado, apresenta traços comuns com o Bom Jesus do Colégio da Companhia de Jesus/São Paulo e com o Santo Cristo dos Milagres (ilha de São Miguel, Açores). São sinais de degradação o baraço dos sentenciados à pena capital e a cana verde. São símbolos do poder temporal dos césares romanos a coroa (resplendor) e a capa de passamanaria. O relato popular oral brasileiro regista o achamento da imagem à beira-mar em 1647 e anota as peripécias do seu transporte e construção de um espaço apropriado ao culto. Admite-se que pudesse ser uma imagem inicialmente integrada no oratório de uma embarcação portuguesa. Se bem li, na atualidade a imagem encontra-se fechada numa vitrina, garantindo as procissões anuais uma réplica. Desta imagem original de Iguape se tirou cópia do imponente Bom Jesus cultuado na ilha do Pico, Açores, que por seu turno inspirou inúmeras imagens entronizadas em tempos açorianos e nas comunidades radicadas nos USA.

Ecce Homo, imagem do Bom Jesus do Colégio/Missão da Companhia de Jesus, São Paulo, Brasil, século XVI, atualmente exposta num altar lateral da igreja de Nossa Senhora da Boa Morte (cidade de São Paulo). As semelhanças com a imagem de Iguape são mais do que óbvias, especialmente no tratamento do rosto, na rigidez corporal e na desproporção das mãos.
Fonte: Rogério da Luz, «Crónicas Macaenses», http://cronicasmacenses.com.category/brasil

Ecce Homo de vulto, painel central do tríptico assinado por Maerten van Heemskerck, ca. 1544-1560, acervo do Museu Marodowe (Varsóvia)

Busto-retrato do Ecce Homo atribuído ao pintor do renascimento italiano Andréa  Mantegna, óleo, ca. 1500, acervo do Museu Italiano, Veneza
A devoção do Ecce Homo generalizou-se na Europa cristã no século XV, tendo alimentado uma vasta produção de obras de arte sacra (pintura, escultura). Cristo é representado em meio busto ou em vulto inteiro, sentado ou erecto, desnudo, após a flagelação, no momento em que na condição de sentenciado à pena capital sobre escárnio público.
Nas representações pictóricas e escultóricas apresenta apenas roupa interior (saio, bragas) e, como atributos da sua condição de condenado os punhos sobrepostos e amarrados com um baraço (corda) que enrola ao pescoço e uma cana. O corpo apresenta ferimentos abertos, sangue e escoriações. O rosto barbado exibe sinais de sofrimento. Os sinais de aflição costumam ser misturados com símbolos infamantes que imitam o poder temporal dos césares romanos: a coroa de espinhos (coroa imperial), a cana (bastão ou vara de mando) e o manto purpurado.
No período barroco as imagens sacras foram adaptadas ao novo gosto da Igreja Católica. Os escultores trabalharam as imagens de modo a transformar o tradicional Cristo condenado num majestoso imperador. As imagens de maior culto enriquecem os enxovais, distinguindo os adereços de exposição na capela dos adereços processionais. O cerimonial católico de saída das imagens dos templos e de realização das procissões segue de perto o cerimonial monárquico do período absolutista, adoptado pela igreja católica tridentina.
Em Portugal metropolitano e ultramarino, a devoção do Ecce Homo parece ter raízes em Itália, tendo conhecido importante divulgação no século XVI. Algumas das mais antigas imagens sacras referenciadas foram trazidas de Itália por devotos. É o caso do Ecce Homo da coleção do humanista Damião de Goes, preservada na igreja de São Pedro de Alenquer. É também o caso do Santo Cristo venerado na cidade de Ponta Delgada, Açores (igreja do convento da Esperança). Existe ainda uma terceira imagem, não se sabe se levada de Portugal para o Brasil, se esculpida no Brasil, o Bom Jesus exposto à veneração na missão da Companhia de Jesus em São Paulo, hoje em dia integrada na igreja de Nossa Senhora da Boa Morte (São Paulo).
As três imagens em questão parecem constituir o momento mais recuado de inspiração de três modalidades de representação artística e de consequentes práticas devocionais:
1-o Ecce Homo de vulto inteiro, sentado numa pedra, conhecido pelas designações de Bom Jesus da Pedra, Bom Jesus da Cana, Bom Jesus da Cana Verde, Bom Jesus da Pedra Fria. Como se disse, uma das mais antigas representações lusófonas desta tipologia é o Ecce Homo da coleção de Damião de Goes, uma imagem de madeira estofada e policromada, de tonalidade baça, sem os atributos do poder temporal. Uma dais mais notáveis representações deste tipo de Ecce Homo, de gosto e aparato barrocos, encontra-se em Vila Franca do Campo, ilha de São Miguel, Açores.
2-O Ecce Homo de meio busto, podendo ter cumprido eventual função inicial de busto-relicário,  configurado pelo Santo Cristo, cuja imagem pode apresentar cabelo entalhado ou cabeleira postiça. A imagem mais conhecida pela devoção e riqueza do enxoval é a do Santo Cristo dos Milagres existente na cidade de Ponta Delgada, Açores.
3-Ecce Homo de vulto inteiro, em madeira policromada, representando Cristo com cabeleira postiça, coroa de espinhos, baraço e atributos do poder imperial romano. As imagens de maior fama que se conhecem foram preservadas no Brasil. A mais antiga deverá ser a do Bom Jesus do colégio de jesuítas de São Paulo, hoje na igreja da Boa Morte (São Paulo). A popularização do culto no Brasil parece estar ligada à ação dos jesuítas. Duas das mais antigas imagens ainda hoje veneradas estão ligadas a milagres e relatos de achamentos prodigiosos: coloco em primeiro lugar a imagem do Bom Jesus de Iguape, cujo culto debuta por volta de 1647, ligada a um relato de achamento no mar, mas cujo talhe anatómico e rosto confirmam que o seu autor anónimo conhecia a imagem venerada pelos jesuítas do colégio de São Paulo. Esta imagem foi replicada no século XIX (década de 1860) por encomenda de um emigrante açoriano, tendo sido ofertada à paróquia de São Mateus da ilha do Pico, Açores. Deu origem uma das maiores festas católicas açorianas e a história da origem desta imagem nos relatos populares orais é mutatis mutandis a mesma que se conta em Iguape. Coloco em segundo lugar a imagem do Bom Jesus de Tremembé, culto divulgado por volta de 1663. E coloco em terceiro lugar a imagem do Bom Jesus de Pirapora, de 1725, reveladora da transição para o barroco.
Em Portugal existem ainda outras imagens do Ecce Homo associadas a expressivas manifestações de devoção: crucificados de corpo inteiro e Cristo amarrado a uma coluna.

domingo, 31 de agosto de 2014

Assentamento da lápide com o epitáfio do humanista português Damião de Goes (1502-1574) escrito em latim pelo próprio em 1560. Afixação parietal, igreja de São Pedro, traslado em 1941 [Alenquer/Portugal]:
«Ao maior e óptimo Deus. Damião de Goes, cavaleiro lusitano fui em tempos; corri toda a Europa em negócios públicos; sofri vários trabalhos de Marte; as musas, os príncipes e os varões doutos amaram-me com razão; descanso neste túmulo em Alenquer, aonde nasci, até que aquele dia acorde estas cinzas»