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terça-feira, 3 de maio de 2011

O "bacalhau"

Em Coimbra, "bacalhau" teve pelo menos dois significados conhecidos, sendo que nenhum deles era petisco. Um deles era o antigo violão de fabrico oficinal local com cordas de aço. O outro era o gravatão de duas línguas que foi usado desde finais do século XVII como adereço oficial do traje de gala dos oficiais da Universidade de Coimbra, oficiais de justiça e vereadores municipais. Claro que, da mesma forma que havia estudantes que iam ao Seminário de Coimbra tomar de empréstimo a volta branca para os actos, também havia vereadores que pediam aos fidalgos da Beira o bacalhau para usança nas grandes solenidades mondeguinas.



Fotografia de um sócio da Tuna Compostelana, datada de 1955

Mantém-se o traje de fantasia inventado no século XIX, de figurino distinto do traje à século de ouro que veio a ser popularizado por via da Tuna de Salamanca. Bem visíveis o colarinho de canudos e o lacito de ombros

domingo, 1 de maio de 2011

Laço, laçarote, lazo, lacito de tuno



Católico em dia de comunhão solene, 1895, com laçarote



Laçarote de tuno académico

A moda do laçarote de seda na cor institucional de uma universidade, faculdade, instituto ou liceu configura, em certa medida, a retoma do costume nobiliárquico do porte de laços, fitas e bandas que os nobres e militares usavam nas cerimónias de corte desde o século XVII. Bandas, faixas, rosetas e topes de seda foram consagradas como símbolos republicanos pela Revolução Francesa, ainda hoje estando em uso por presidentes de república, presidentes de municípios e representantes locais de governos centrais em Itália, França e países da América Latina.

Paralelamente à tradição nobiliárquica e republicana, a Igreja Católica também tinha consagrado o porte de laçarotes de seda com pontas bordadas e franjadas nas cerimónias de primeira comunhão e de comunhão solene. Noutro registo, e valendo como insígnias, podemos citar a Semente e a Nabiça, pequenos laçarotes de algodão na cor do respectivo curso que os alunos da Universidade do Porto usam desde os anos da Primeira Guerra Mundial.

No que respeita à Península Ibérica, o laçarote de seda terá começado a ser usado pelos membros da tuna da Universidad de Valencia, instituição onde está garantidamente documentado desde o ano de 1878. A moda do laçarote tuno rapidamente alastrou às formações estudantinas e tunantes da Peninínsula Ibérica. Na década de 1880 foi adoptada em Coimbra pelas estudantinas espontâneas que antecederam a TAUC. Diversas fotografias da Estudantina/TAUC documentam o porte do laçarote, havendo notícia de um exemplar meio desfeito no acervo desta vetusta agremiação. Na década de 1890 assistiu-se em Portugal a um fenómeno impressionante de formação de tunas nos liceus distritais e nos institutos politécnicos de Lisboa e do Porto. Coube aos órgãos de direcção destas tunas a democratização do porte do laçarote de ombros, que no caso dos liceus era em seda verde esmeralda. Tenho ideia de ter visto uma actuação da Tuna do Liceu de Évora num espectáculo realizado em Coimbra no final da década de 1980 tendo os membros daquela formação comparecido em palco com laçarotes verdes.



Italian schoolboy, pintura de Vicenzo de Paoli, 1945



Alunos da Chelmmsford Charity school, com farda masculina de inspiração militar vitoriana e mestre-escola com cartola alta. Documento de 1862

Schoolboy com camiseiro de cotim azul e boné de pala, pintura de Van Gogh, 1888

Entre a segunda metade do século XIX e o primeiro quartel do século XX o camiseiro de ganga azul ou bibe de trabalho foi a peça de indumentária mais utilizada nas escolas de agricultura, nas casas de correcção instaladas em quintas agrícolas e nas instituições de menores onde funcionavam oficinas de calçado, alfaiataria e carpintaria.



Schoolboy com ardósia, carderno e brinquedo artesanal



Schoolboy com ardósia, pintura de Albert Samuel Anker (1831-1910)




The poor schoolboy, pintura de Antonio Mancini (1852-1930)

Écolier, schoolboy, Augusto Renoir, 1879
Na segunda metade do século XIX a maior parte dos colégios, internatos e reformatórios consagra nos regulamentos internos uniformes de inspiração militar. No caso vertente, trata-se de um uniforme masculino preto (calções, casaquinho, boina, sapatos e meias altas) típico da época vitoriana, muito próximo do chamado fato burguês de primeira comunhão.

Os conceitos de instrução implicavam, à luz da época, concomitante crença na regeneração moral, o que requeria um sólido programa de normalização dos instruendos. O domínio do corpo e dos impulsos biológicos requeria a integral cobertura do corpo com vestes limpas, geometricamente costuradas e impecavelmente conservadas. Era obrigatório cobrir a cabeça e os pés e trazer no bolso um lenço de assoar. Todos estes preceitos eram reforçados em aulas de moral e pela leitura dos famosos manuais de civilidade e boas maneiras que entroncavam no De Civilitate Morum Puerilium de Erasmo de Roterdão, publicado em Paris em 1537 [Cf. Erasmo de Roterdam - De la urbanidade en las maneras de los niños. 2.ª edición. Madrid: Centro de Investigación y Documentación Educativa CIDE, 2006. Disponível em http://www.elseminario.com.ar/comprimidos/erasmo_Urbanidad_maneras_ninos.pdf].
Mais desenvolvimentos sobre esta temática:

ALBUQUERQUE, Leila Marrach Basto de - As invenções do corpo. Modernidade e contramodernidade. In: Motriz, Volume 7, n.º 1, Jan-Jun 2001, pp. 33-39. Universidade Estadual Paulista. Disponível em http://www.rec.unesp.ler/efisica/motriz/07n1/Albuquerque,pdf;
CUNHA, Maria Teresa Santos - Tenha modos. Manuais de civilidade e etiqueta na Escola Normal (anos 1920-1960). Disponível em http://www.faced.ufu.br/coluhe06/anais/arquivos/29MariaTeresaSantosCunha.pdf;
FERREIRA, António Gomes - Educação e regras de convivência e de bom comportamento nos séculos XVIII e XIX. In: História da Educação, n.º 29, Volume 13, Set/Dez 2009, pp. 9-27. Universidade de Coimbra. Disponível em http://www.fae.ufpel.edu.br/asphe/revista/rhe29.pdf;
GRANDMONTAGE, Alfredo Goñi; ARNÁIZ, José Luís de Miguel - Sociabilidad y buenos modales. In: Revista Electrónica Interuniversitaria de Formación del Profesorado, 1 (0), 1997. Disponível em http://www.uva.es/aufop/publica/actas/viiiep08goni.pdf;
Les Règles de la bienséance et de la civilité chrétienne à l'usage des écoles chrétiennes. Paris, 1703. Disponível em http://www.delasalle.qc.ca/documents/107/Regles_de_la_bienseance.pdf;
MATOS, Olgária Chain Féres - Cultura capitalista e humanismo. Educação, antipolis e incivilidade. In: Intermeio. São Paulo: Campo Grande, Volume 14, n.º 28, Jul/Dez 2008, pp. 13-40. Disponível em http://www.intermeio.ufm.br/revistas/28/InterMeio_v14_n28%20Olgaria.pdf;
OJEDA, Pedro Miranda - Los manuales de buenas costumbres. Los principios de la urbanidad en la Ciudade de Mérida durante el siglo XIX. Universidade Autónoma de Yucatán. In: TAKWÁ/Num.11-12/Primavera-Outoño 2007, pp. 131-155. Disponível em http://148.202.18.157/sitios/publicacionesite/pperio/takwa/Takwa112/pedro_miranda.pdf;
PILLA, Maria Cecília Barreto Amorim - A arte de receber. Distinção e poder à boa mesa (1900-1970). Curitiba: Universidade Federal do Paraná/Departamento de História, 2004 (tese de doutoramento). Disponível em http://www.poshistoria.ufpr.br/documentos/2004/Mariaceciliabamorimpilla.pdf;
PINTASSILGO, Joaquim - Educação liberal e conformação social. Dos catecismos constitucionais aos manuais de civilidade. Universidade de Lisboa. Disponível em http://cie.fc.ul.pt/membrosCIE/jpintassilgo/Educacao%20Liberal.pdf.
SANTOS, Maria José Moutinho - Os serões das senhoras. Um suplemento de moda, bordados e saberes domésticos. 1905-1908. Porto: Universidade do Porto, 2009. Disponível em http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/5787.pdf;
SENA, Fabiana - A conversação como modo de distinção no Império. Tesouro de meninos e Código de Bom Tom nas escolas brasileiras. In: Revista Histedbr on-line. Campinas, n.º 37, pp. 253-265. Universidade Federal de Paraíba. Disponível em http://www.histedbr.fae.unicamp.br/revista/edicoes/37/art17_37.pdf.



Retrato de Antero de Quental (1842-1891), estudante da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, com a capa e batina reformada (ca. 1864).

Fonte:http://realfamiliaportuguesa.blogspot.com/, postagem de 20.4.2011