Virtual Memories

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Passeio pela representação dos saberes


Anthropologia
Saber afirmado desde o século XIX, muito centrado na chamada antropologia física, na craniometria e na paleontologia, conheceu crescente prestígio até à Segunda Guerra Mundial, tendo então sido obrigado a uma profunda revisão do seu método e teoria por força da suspeita ligação aos regimes autoritários, ao racismo e ao colonialismo.
Viria a congregar diversas especializações, como a etnologia, a etnografia e a etnomusicologia. Lino alude precisamente ao estudo do homem e das chamadas sociedades "primitivas" ou "arcaicas". Na Faculdade de Letras da UL a etnografia das comunidades tradicionais portuguesas conquistara enorme visibilidade graças aos estudos de José Leite de Vasconcelos. A própria Faculdade, pelo menos nos anos iniciais (1911 e ss.), ficara responsável pela gestão do Museu de Etnologia, o que por si só demonstra a largueza de horizontes do criador dos planos de estudos das universidades fundadas ou reformadas na República (Ângelo da Fonseca).
***
Concluída a visita, fica a dúvida sobre os motivos da ausência de saberes como a Medicina, a Farmácia, a Matemática, o Direito, as várias Literaturas e a História. Terão sido relegadas para os edifícios construídos no campus?


A Biologia
A Biologia é uma discplina que se afirma na transição do século XVIII para o século XIX, tendo começado por integrar os planos de estudos das faculdades de filosofia natural que antecederam as faculdades de ciências. No caso vertente, Lino acentua o estudo dos comportamentos e anatomia animal. A deusa patrona deste ramo do saber é obviamente Diana com o seu inseparável cão de fila.


A Philosophia
Proposta de representação alegórica da Filosofia, disciplina que nos curricula medevais integrava o Trivium através da Dialética e da Retória.
Nesta opção, Lino opta pela figuração de estrelas, solução que se afasta dos elementos clássicos conhecidos para a Idade Média e Renascimento.

Renovabis faciem Terrae
Painel central do tríptico assente no muro fundeiro. Visão cristã, conforme as representações usuais nos templos e catecismos da época. Lino alude à ressurreição de Cristo, realçando a antinomia entre a Vida e Morte, mensagem superiormente reforçada pelo Sol e pela Lua.


Sociologia
A Sociologia é um saber relativamente recente, instituído como corpus autónomo no século XIX. As figurações da Sociologia não são propriamente abundantes e os atributos não estão consensualmente assimilados nos meios universitários. De acordo com a figuração proposta, a Sociologia ocupa-se do estudo do poder (edifício público e/ou governamental), do funcionamento das empresas e do trabalho assalariado (roda dentada) e do poder associado aos órgãos de soberania (Executivo, Legislativo, Judicial) de matriz cristã.

Physica e Chemica
Lino começa pela Grécia clássica, convocando a Terra, a Água, o Ar e o Fogo. Passa depois para a revolução científica dos séculos XVIII-XIX-XX, com alusões ao átomo e electricidade.
O que se representam neste painel são as ciências em sentido estrito.


A Geographia
Existem alegorias representativas de partes da Terra, como sejam a Europa, a Asia, a África, o Atlas, desde o Império Romano. A Geografia como figura feminina é mais tardia, datável do Renascimento. No caso de Portugal, o peso dos Descobrimentos na cultura universitária tem associado o Globo terrestre à ideia de Geografia, o que não é assim tão original quanto possa parecer, uma vez que no Império Romano já ocorriam atlantes ou atlas com o globo do mundo às costas.
Ausente a memória descritiva, fica um pouco difícil perceber com que linhas se coseu António Lino. Arriscamos dizer que são visíveis o Globo terrestre, o Quadrante, a Bussola, o Mapa-mundi, uma alusão aos Descobrimentos (descobridor e caravela) e figuras menos inteligíveis. Uma delas parece aludir à epopeia de Noé.
A Geographia é uma disciplina emancipada da cartografia e da "geografia física" tout court na passagem do século XIX para o século XX. Quanto ao seu enquadramento, alguma hesitação se notou entre faculdades de ciências e faculdades de letras.


Astronomia
O conjunto de mosaicos que seguidamente se documenta é de autoria do artista António Lino Ferreira Pedras (1961). Estão dispostos em torno das paredes do vestíbulo principal do palácio reitoral da UL, conferindo-lhe elevado grau de solenização e contribiundo para a consolidação da teoria do templo do saber ou casa onde mora Minerva.
Confundida com a astrologia e a magia, a Astronomia é um saber com representação alegórica e atributos desde a Grécia Clássica, onde por vezes aparece confundida com Urania. No desenho curricular das universidades medievais, a Astronomia integrava o Quadrivium. Na passagem da Época Moderna para a Época Contemporânea, e ilustrando o triunfo do método cartesiano e da revolução científica, a Astromia foi deslocada do plano de estudos de Artes Liberais para as Faculdades de Ciências emergentes. No caso vertente, António Lino empresta à lição atributos alheios, colhidos na Geometria e na Arquitectura (compasso), em Cronos (clepsidra), e na reverie dos descobrimentos portugueses (astrolábio). Em todo o caso, o céu estrelado está lá, atravessado pela balestilha, como que a lembrar o céu pintado em naves de igrejas de antanho (Lino tinha estudado em Itália e conhecia bem os frescos e mosaicos das igrejas) e o famoso "el cielo" da Universidade de Salamanca (belíssima cúpula celeste onde não faltam as figuras do zodíaco).
A memória descritiva, se localizada, poderá fazer luz sobre quem sejam os figurantes.

domingo, 1 de agosto de 2010


Grande vitral de António Lino da Conceição (1961)
O emblema aqui figurado não corresponde ao desenho de Raul Lino (1914). Parece tratar-se de uma variante, criada depois de 1940, que era usada na Reitoria. O barco bastante esguio, é delimitado por apertadas Colunas de Hércules e encimado por estrelas que representam as escolas existentes à época. A medalha dos professores catedráticos aproxima-se deste modelo.


Portadas de acesso à Aula Magna
Ao centro, destacada figuração do selo, listel, lema e motivos heraldísticos. O selo institucional da UL foi alvo de um pouco conhecido estudo de Maria João Bonina Grilo, apresentado em Março de 1990 às jornadas de história do 7.º Centenário da Universidade de Coimbra, com o título «A emblemática da Universidade de Lisboa». Foi o referido estudo publicado nas actas Universidade(s). História. Memória. Perspectivas. Volume 3. Coimbra: Comissão Organizadora do Congresso História da Universidade, 1991, pp. 383-397, com 12 imagens de apoio. Há um ensaio de discussão nesse artigo sobre a concessão dos graus secundum autoridade régia e autoridade papal, que configura a parte menos conseguida do trabalho, por fenecerem à autora dados mais substanciais.
O selo circular com a caravela municipal de Lisboa, a legenda «Universitas Olisiponensis» e o lema «Ad lucem» foi criado em 1914 pelo arquitecto Raul Lino. De acordo com a autora, a proposta de Raul Lino talvez não tenha passado de um esboço que acabou por ser institucionalizado. Em todo o caso, a apropriação da heráldica municipal não é caso raro na época. Diremos que foi uma das práticas mais seguidas pelos clubes de futebol que corriam em direcção à sociedade de massas dos anos do após Guerra.
Um dos temas ladeantes é o selo do Rei D. Dinis, aprovado no programa decorativo num momento escaldante da crispação entre membros do corpo docente da UL e da UC a respeito de saber-se se a instituição plantada em Coimbra no ano de 1537 teria continuado o Studium Generale de 1290. Coimbra disse que sim sem hesitações. Marcello Caetano e seus apoiantes fixaram então a narrativa mítica que haveria se prevalecer, anulando a contingência fáctica decorrente da pouca distância que decorria de 1911 e associando o nome da instituição a uma vetusta data da meia idade.
A crispação de 1960 era não apenas um azeda troca de palavras entre intelectuais truculentos. Em nosso entender ela significava essencialmente duas coisas que foram pensadas mas não ditas em voz alta:
1) uma atitude de revolta de Macello Caetano e dos seus próximos perante a forma como o Estado Novo vinha, desde a Segunda Guerra Mundial, conferindo destaque internacional à UC através da sua inclusão em visitas de estado e promoção de doutoramentos honoris causa (conhecidos por "doutoramentos políticos" em Coimbra). O acto discriminatório era praticado e assumido pelo governo de Salazar e não pela UC, lesando os interesses corporativos da UL, mas também os da UP e os da UTL, há que dizê-lo. Todavia, se não quisermos ser demasiado injustos no reconhecer daquilo que a UC tinha proporcionado de graça às outras instituições de ensino superior, lembre-se que entre 1910-1926 a UL e a UP passsaram a usar a borla e capelo, as cores institucionais das faculdades, formas de tratamento, a capa e batina e simbologia estudantil. Sendo um homem do regime, não obstante as suas peculiaridades, Caetano aproveitou o seu reitorado para assumir um projecto de afirmação da identidade corporativa da UL, com um traje, o hino académico internacional e realização de determinadas cerimónias. Como homem do regime que era e antigo dirigente da Mocidade Portuguesa, Caetano conhecia muito bem a função dos símbolos e sabia até que níveis poderia ir a linguagem inculcadora das narrativas míticas. Essa luta implicou a definição de um inimigo externo, táctica muito usada no campo militar e futebolístico, que funcionou como instrumento de reforço do orgulho corporativo e do sentimento de pertença. O saber e a linguagem dos juristas e dos historiadores serviu para interferir na realidade factual contemporânea e criar um trans-acontecimento revindicativo de direitos e de status (Edmund Leach, 1954);
2) outra linha de força da acção marcellista passou pela negação da génese republicana, acto que implicou uma espécie de parricídio, quiçá amnésia, sobre os grandes princípios da igualdade, laicidade e progresso, olvidando assim um século XIX marcado pelo saber dos médicos (Médico-Cirúrgica) e engenheiros (Politécnica) de cunho positivista, cartesiano, anti-monárquico e anti-católico. Haverá algo de mais ideologizado do que isto, quer dizer, do que colocar a própria universidade a exorcismar os valores que o Estado Novo também tinha declarado oficialmente diabolizados?


Fresco parietal, salão nobre


Fresco parietal, salão nobre do palácio reitoral
Acto providencialista da criação da humanidade (UL)