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sábado, 27 de março de 2010

Vida em Oxford, III


Acto de matriculação, Sheldonian, Outubro de 2003
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Grupo em dia de matrícula

Os estudantes em dia de matrícula


Desfile de matriculandos a caminho do Sheldonian, Outubro de 1957

Cerimónia de matrícula, 1842
A cerimónia de matrícula era um acto universitário de pequena solenidade, comum à maior parte das antigas universidades ocidentais.
Por força do processo de laicização do ensino superior e dos sucessivos movimentos abolicionistas, a cerimónia da matrícula desapareceu sem deixar rasto das universidades francesas, italianas e espanholas. Em Coimbra sobreviveria até 1910, muito desgastada e contestada. À semelhança de Oxford, Cambridge e Durham, os alunos deveriam comparecer ao acto em hábito talar. No caso de Coimbra, e nos anos do fim, proferia-se o juramento de respeito à Universidade e à religião católica perante o secretário-geral. Face à perda de importância, é difícil não reconhecer alguma razoabilidade nos protestos do tempo.
Nas décadas de 1980-1990, a matrícula era um ritual administrativo e burocrático de humilhação e sofrimento debaixo dos inclementes calores de Outubro. Nos anos da massificação do ensino superior, a documentação a apresentar era integralmente em suporte papel, apenas se podia comprar na Sociedade Filantrópico-Académica ou na Procuradoria Universitária e só se podia entregar nos guichés da Secretaria-Geral. A compra dos impressos e estampilhas fiscais e a sua entrega implicavam longas horas de paciência na Filantrópica e na Secretaria-Geral. Havia o boletim de matrícula, o requerimento, o boletim estatístico, as estampilhas, com infindáveis campos para preencher manualmente e perguntas pouco inteligíveis. Quem fosse bolseiro ou pretendesse candidatar-se a bolsa de estudos, era sujeito a um autêntico calvário burocrático: boletim de candidatura, declaração do presidente da junta de freguesia, declaração de despesas farmacêuticas, declarações de peritos médicos em caso de doenças familiares inabilitantes, entre outros. Defendendo a inclusão, os processos dos bolseiros funcionavam como instrumentos de exclusão. Mesmo que o estudante continuasse a ser bolseiro nos quatro ou cinco anos seguintes, todos os anos tinha de entregar nos Serviços Sociais os mesmos documentos que já preenchera no ano anterior. Apenas mudava a data. Os serviços funcionavam, mas os conceitos de eficiência, qualidade, satisfação do cidadão e interoperabilidade de bases de dados estavam para chegar.
A matriculation oxoniana é realizada anualmente em Outubro, no teatro Sheldonian, com os alunos dos vários colégios presentes, o reitor (vice-chancellor), os bedeis, os directores dos colégios e outros funcionários.
Esta cerimónia ainda ocorre na Univ. de Cambridge, na Univ. de Bristol, na Univ. de Durham, nalguns colégios e universidades dos EUA. Na Univ. de Copenhaga a matrícula é antecedida de cortejo público com os alunos, reitor e deões das faculdades. Há confirmação das inscrições, discurso reitoral e saída do cortejo. Na Univ. de Praga, membro do Coimbra Group, substiste a matriculação na aula magna, com discurso reitoral, leitura dos direitos estatutários dos estudantes e toque na maça da respectiva faculdade (exibidas pelos directores). No Canadá, a matriculação tem lugar na University of King's College, sendo bem vincadas as semelhanças com o rito oxoniano.
Em Oxford, a cerimónia inicia-se com um desfile dos estudantes na via pública. Em hábito, estes dirigem-se para o teatro Sheldonian. Tem vindo a perder-se, mas até 1960, a matrícula estava associada à realização de um acto de examinação dos candidatos (responsions), baseado em questões simples formuladas em latim sobre temas latinos, gregos, teológicos ou matemáticos. Esta examinação era conhecida na gíria académica por "little go".
Sentados os novos alunos, entrava o reitor com loba vestida e antecedido pelos bedeis com as maças levantadas. A entrada do reitor e dos oficiais maiores poderia ser acompanhada pelo órgão de tubos que se encontra na testeira do teatro. Segundo o costume dos "statuta antiqua", o director do colégio dirigia-se ao reitor, desbarretava-se e fazia-lhe uma reverência, após o que lhe apresentava o novo aluno. Este cortejava o reitor, inscrevia-se no livro de registos de matrícula e pagava a propina. O reitor entregava ao aluno uma cópia do livro dos estatutos, dizendo:
«Scito te (ou scitot vos) in matriculam universitatis hodie relatum (ou relatos) esse, et ad observandum omnia satuta hoc libro comprehensa, quantum ad te (ou ad vos) spectent, teneri».
Finda a cerimónia, os colégios costumavam distribuir vinhos finos e organizavam banquetes de gala.

Vida em Oxford, II


Doutor em Música, gravura de 1813


Doutor em Theologia em hábito de festa, gravura de 1813

Doutor em sagrada escritura ou Teologia, 1790

Bacharel em Artes Liberais, enverga toga talar e capelo guarnecido de pele de coelho. Amarra o rabo de cavalo da peruca com laçarote preto de veludo, regra de etiqueta secundada pelos estudantes de Coimbra.
Não deixa de ser curioso confirmar as liberalidades da moda académica masculina de setecentos (cabeleiras, luvas, bengalas, meias de seda bordadas, cabeleiras empoadas, pó de talco e carmim no rosto, sinaizinhos faciais de veludo, regalos de peles), numa conjuntura de proliferação de manuais estudantis portugueses de orientação regulamentadora e proibicionista.
Gravura de ca. 1770


Galeria dos hábitos em uso na Univ. de Oxford, segundo gravura do «Oxonia Illustrata», 1705
A gravura representa um préstito com os bedéis na vanguarda.


Garnacha de festa e barrete Tudor de doutor em Medicina (?) ou Direito Civil (?), 1674
A garnacha distingue-se da chamarra pelo facto de comportar bandas dianteiras ou estolas e cabeção médio ou longo descaído sobre os ombros. Exemplificando com peças de indumentária portuguesas, podemos dizer que a sobreveste dos juizes era uma garnacha e que a antiga sobreveste da Univ. de Coimbra era uma chamarra.


Doutor em Theologia e respectivo criado, 1674


Doutor em Sacra Theologia acompanhado pelo seu criado, 1674
Merece destaque o abafo do criado, que é um mantéu ou ferraiolo com bandas e cabeção.


Figuração de um dos hábitos talares de festa usado por membros do corpo docente detentores do grau de doutor no ano de 1674. A borla que encima o barrete mantém aspecto próximo do pompom (do qual deriva). As mangas, de boca de sino, são anormalmente largas, muito pregueadas nas costuras de ombros, conforme o costume francês. A veste interna é a chamada casaca persa que se tinha começado a popularizar nas cortes de Versalhes e de Londres pela década de 1860.
(colecção de gravuras do Centre for Oxforshire Studies)

Graduando com hábito talar de corpos duplos, em seda preta, finais do século XIX. A veste interna tem fechamento de trespasse.
(foto do Museo Internacional del Estudiante)

Hábitos de gala de Oxford, Cambridge e Edinburgh, gravura de 1902

Vida em Oxford, I


Sub fusc ou undergraduate, versão oxiniana masculina
Toga simples, correspondente ao pequeno uniforme dos países de tradição uniformológica napoleónica. De bainha alta, usa-se entre a matrícula e o último exame e também para pedir o grau ao vice-chancellor no Sheldonian, posto o que se vai de imediato vestir a toga de gala e respectivo capelo.
Aparentado corte simples, o sub fusc ostenta costas pregueadas, mangas tubulares de entretalho renascença, discreto ornato de ombros, bandas dobradas na dianteira e cabeção descaído pelos ombros. É envergado sobre fato masculino preto (sapato oxford, calças compridas, casaco preto curto, camisa branca e pappilon branco).
Esta veste parece derivar da toga talar que usavam no século XVII os commoners e os servitors. De assinalar também as parecenças com a toga dos colégios de Aberdeen (dress of bajans), que consta do estudo assinalado por Mawdsley.
Como se pode ver, Oxford consagrou hábito de grande gala e hábito de porte ordinário ou pequeno uniforme, tal como aconteceu em Coimbra desde a década de 1860. O mérito das soluções é bem distinto nas duas universidades. Em Oxford, o hábito comum integrou desde cedo as alunas e no essencial respeita a tradição universitária multissecular. A veste usada, mesmo na sua versão mais singela, é uma toga, radicada na troncatura das togas e opas. Não posso deixar de vislumbrar aqui familiaridade com as antigas opas de algumas irmandades e confrarias.
O hábito de grande gala é, como veio a acontecer nas profissões judiciárias, unissexo. Em Coimbra, o hábito de grande gala cairia no esquecimento (sendo de esperar que fosse redescoberto e revitalizado na sequência do processo de Bolonha). Nesta instituição, sendo o hábito talar existente unissexo para os docentes, o mesmo já não acontece quanto ao corpo discente. Os alunos envergam capa com casaca burguesa e as alunas vestem um tailleur, solução que contradita o próprio regulamento estatutário e os normativos praxísticos pois o fato é traje das funcionárias e não das alunas.
Um pormenor curioso: enquanto que os estudantes de Coimbra usam generalizadamente desde 1911 a gravata preta (em situações de gala o papillon preto, em imitação do smoking), em Oxford mantém-se o papillon branco. Pergunta: quem anda mais próximo das disposições protocolares, Coimbra ou Oxford? Oxford, evidentemente, basta lembrar que as regras de uso da casaca eram (são) muito severas, admitindo tão só o lacinho branco.
Se houvesse algum prémio de boas soluções a atribuir, não hesitaria em votar a favor de Oxford.


Sub fusc ou undergraduate, versão feminina do traje académico dos estudantes de Oxford que se usa entre o acto de matrícula e os actos de examinação que antecedem a formatura. As alunas costumam vestir saia e calçado pretos, blusa branca, laçarote preto e uma toga de bainha curta. A cobertura de cabeça mais consagrada é um barrete de tecido preto mole, de quatro cantos, sem borla. Nos anos mais recentes, as alunas começaram a usar o barrete preto masculino de estrutura rígida, conhecido por mortar board. A toga feminina é relativamente mais simples do que a masculina, uma vez que a esta comporta bandas peitorais, mangas tubulares fendidas, cabeção e pregueado dorsal.


Annie Rogers (1856-1937), fotografia tirada no dia da formatura, com toga talar de cerimónia, capelo e o barrete feminino de quatro cantos


Três alunas com o barrete feminino e a undergraduate ou toga simples, 1938
Na actualidade esta toga é vestida com indumentária civil preta, blusa branca e laçarote preto


Uma formanda com o barrete feminino

O vice-chancellor de Oxford, Rev. Thomas Fowler, com loba talar preta e barrete. Caricatura da Vanity Fair de 2.11.1899

quinta-feira, 25 de março de 2010


Um caso de sobrevivência: convocation dress ou convocation habit, isto é, a loba dos doutores que seria alvo de virulentas campanhas na Coimbra da primeira metade do século XIX.
Era chamada "loba" porque se confeccionava com cerca de 11 metros de pano, o bastante para fazer a veste interna, dita sotaina, e a sobreveste, dita chamarra. Nesta variante oxfordiana a manga é tubular, fendida para a saída dos braços, comportando um ornato de ombros. A chamarra é aberta na frente, com um pregueado cosido a um cós aplicado na zona das omoplatas. Na Coimbra do século XVIII havia quem chamasse "abatina" a esta veste, por conta das grandes abas dianteiras da chamarra, designação errada, pois a "abatina" era uma veste talar de um só corpo que veio a derivar na moderna batina do clero romano. O termo "loba" é curioso e significa, por semelhança das lobas que comiam muitos cordeiros, que os alfaiates consumiam muita vara de pano nas duas vestiduras. A versão conimbricense era inteiramente preta, ou castanha escura, apresentando a veste interna mangas de boca de sino à francesa e mangas afuniladas nos punhos, com uma carcela que ia do punho ao cotovelo. A loba de manga afunilada foi a derradeira a ser confeccionada nas alfaiatarias de Coimbra, aí pela década de 1850, e já só para membros do corpo docente.


Cortejo público em dia de formatura e concessão de graus, 1.06.1922


O chancellor Lord Cruzon, com o respectivo pajem, seguido de membros do claustro docente no cortejo de formatura de 1.06.1919. Ao contrário de Coimbra que nesta conjuntura de fim da Grande Guerra vivia os traumas do abolicionismo, Oxford mantinha as gowns, os sapatos de fivela de prata e até a ancestral loba de dois corpos talares sobrepostos (convocation habit) como se pode ver no lente que desfila logo a seguir ao pajem.


Cortejo académico em 1.01.1907, vendo-se os bedeis, logo seguidos do chancellor, pajem e membros do corpo docente

Anel masculino em ouro


Anel feminino em prata

Pine


Porta-chaves com barrete académico

Colar de prata


Joalheria comemorativa produzida sob os auspícios da marca Universidade de Oxford
Pulseira de prata com o selo gravado em medalhinha circular. Nas universidades britânicas, a reprodução de selos e de símbolos heráldicos em prata, ouro, autocolantes, emblemas, pines, anéis e botões de punho obedece a normas aprovadas institucionalmente. Significa isto que numa universidade histórica britânica seria impossível (porquanto considerado bárbaro) vermos turmas de estudantes a inventar símbolos kitschs como acontece em estabelecimentos de ensino superior portugueses onde os processos de criação de distintivos não obedecem a quaisquer normas heráldicas, aproximando-se bastante da prática seguida em cursos militares ou paramilitares.