Virtual Memories

sábado, 17 de março de 2012

Traje de passeio dos Inglesinhos em 1907
Instantâneos captados por Benoliel na procissão do Corpo de Deus de junho de 1907, que contava obrigatoriamente com a casa real e com a vereação municipal de Lisboa. Os Inglesinhos estão agrupados no adro da sé. Vestem, por cima da batina romana uma peça de indumentária de bainha ligeiramente mais curta, sem mangas, aberta na frente, que conforme os contextos culturais teve variantes (sem mangas, com mangões, com meias mangas, costas lisas, cós franzido no meio das omoplatas, com colarinho, sem colarinho, com forro de cetim e sem forro). Os vocábulos mais comuns são beca, toga, chamarra, samarra, soprana, chimera. Em todo o caso, não tem os elementos constitutivos da garnacha que são por excelência as duas bandas verticais dianteiras, o cabeção farto e o grande saio traseiro.
Fonte: Ilustração Portuguesa n.º 68, de 10.6.1907

Inglesinhos (1): seminaristas no jardim, década de 1960 (?), inícios dos anos 1970 (?)
Nesta imagem é mais visível a chamarra sobre a batina.
O Colégio dos Inglesinhos encerrou portas no segundo semestre de 1973.
O enxoval dos estudantes era composto por dois trajes:

1 - traje ordinário doméstico, que constava de batina vulgar preta, cabeção, volta branca e barrete quadrangular;
2 - traje de passeio, que constava da mesma batina romana ordinária, barrete quadrangular, chamarra sem mangas e beca vermelha.
Os padres superiores, nas saídas, agasalhavam-se com capa talar preta.
Até prova em contrário, o Colégio dos Inglesinhos terá sido a última escola a funcionar em Portugal cujos estudantes usaram a beca.

Fonte: A history of the Pontifical English College of Sts. Peter and Paul - Lisbon, http://brockworth.eu/EnglishCollegeLisbon.aspx [2011].

Inglesinhos (2): um seminarista do Colégio dos Inglesinhos, Lisboa, década de 1960 (?)
O ornato de ombros é uma beca de pano vermelho, com as pontas caídas pelas costas. Quanto à veste, ao primeiro olhar parece tratar-se de simples batina talar romana.
Dois reparos: 1) a fotografia é pouco nítida; 2) avista-se no rebordo inferior do colarinho da batina um cordão. Não parece ser cordão de capa, dado que o fotografado não traja capa. Em fotografias bem mais antigas, vemos este mesmo cordão a apertar a abertura dianteira da chamarra. Portanto, a chamarra não se consegue ver com nitidez mas deve lá estar...

Cultura académica: retrato de José Joaquín de Léon y Herrera (1712-1786), aluno, lente e reitor do Colégio Mayor de Nuestra Señora del Rosario. O retratado foi ainda cónego magistral da catedral de Santa Fé.
Representado de pé, com luvas brancas e cabeça coberta por solideo. Traja loba talar de dois corpos, sendo bem pronunciada a cava para a saída dos braços (a sobreveste não tinha carcela, vestindo-se e despindo-se pelo rasgo da cabeça/pescoço, daí o nome de "loba çarrada", distinto da variante "loba aberta"). As mangas da sotaina são estreitas e rematam com punhos ornamentados. Não se consegue perceber com inteireza se estes punhos são bordados no canhão ou se são encaixes de renda como acontece nas bocamangas das batinas dos bispos e togas judiciárias espanholas. Volta branca subida. Beca branca, com o símbolo do colégio lançada em V sobre os ombros,  com pontas a cair até meio da perna. Na mesa próxima, barrete doutoral armado em estrutura cartonada forrada de tecido negro, com os convencionais 4 picos ou cornos, sem cristas. No centro da copa foi afixada farta borla de franjados de seda lisa, em azul e branco (Filosofia e Teologia). Fixa a laurea uma pega central alta e bolbosa, ornada de passamanaria, que parece ser dourada como era usança no barrete doutoral da Universidad de Zaragoza.
Os colégios espanhóis eram seminários católicos, cujo distintivo comum era a beca. Na língua castelhana, beca significava uma faixa de pano ou estola longa que se assentava em V sobre o peito e ombros, lançadas as longas pontas pelas costas. Na atualidade a beca é usada pelos membros das tunas académicas (desde a década de 1950, com pontas curtas). Em certas universidades foi adotada como insígnia dos licenciados e mestres, solução que contraria a legislação espanhola que regulamenta o assunto (traje: toga preta espanhola+muceta+barrete sextavado com borla pequena ou pompom). Consta que foi a Complutense a lançar mão da beca quando organizou a cerimónia de formatura da infanta D. Cristina. Beca significa ainda bolsa de estudo. Em português, beca é tradicionalmente a veste profissional dos juizes, cujo sinónimo era garnarcha. Houve seminários católicos estabelecidos em Portugal onde a beca vermelha foi usada sobre a batina romana. Foi o caso do Seminário de Viseu. Em Lisboa, no Colégio dos Inglesinhos, os seminaristas usaram dois tipos de ornatos de ombros em tecido vermelho: a beca de pontas, idêntica à espanhola e à beca de alguns colégios da Universidade de Coimbra extintos em 1834-1836; o epitógio, com roseta e duas pontas caídas, à francesa, que se fixava no ombro esquerdo sobre a chamarra (os inglesinhos usaram pelo menos até 1907 sobre a batina ordinária uma chamarra aberta na frente, sem mangas, semelhante à veste clássica dos estudantes de Coimbra), distintivo que em Lisboa e no Porto era imitado por advogados. Uma caprichada toga de advogado, em bom estilo de confecção portuense, metia pano de seda, jogo de rosetas peitorais, canhões de cetim presos com alamares e epitógio "comme les inglesinhos".
Fonte: aula magna do colégio, http://urartegrupo1.wordpress.com/

Cultura académica: retrato de Juan de Mosquera y Sotello (1638-?), estudante, lente e reitor do Colégio Mayor de Nuestra Señora del Rosario. Lecionou filosofia e teologia. Exerceu o reitorado por duas vezes, de 1666 a 1667 e de 1673 a 1676.
Figurado de pé, com a cabeça descoberta e mãos descalçadas. Veste loba talar escura de dois corpos, sendo a sobreveste cerrada. Visíveis a volta branca e a beca branca com o símbolo do colégio. Livro na mão esquerda. Sobre pilha de livros, o barrete doutoral de quatro picos, com as borlas azuis e brancas de Filosofia e Teologia, sendo a copa do barrete encimada por florão central.
A tradição ibérica do barrete doutoral com florão ou pega apenas se mantém na Universidade de Coimbra e no barrete processional de Santa Teresa de Ávila (Alba de Tormes). Usou-se até à década de 1890 nas universidades de Sevilha e Zaragoza, até ser absorvido pelo modelo geral octavado que fora consagrado pelo governo de Espanha em 1850. As raízes deste ornato ainda não estão convenientemente esclarecidas. Pelo que conheço através da análise iconográfica comparada, a explicação mais consistente aponta para uma possível origem oriental: coberturas de cabeça dos altos dignitários da China, Tibete, Coreia, Ceilão. Na Europa, o que temos de mais próximo no plano estético e simbólico são os capacetes militares com os seus penachos de aparato e as borlas dos chapéus eclesiásticos.
Fonte: retrato existente na aula magna do colégio, http://urartegrupo1.wordpress.com/

sexta-feira, 16 de março de 2012

Estudiantes [tunos] de Salamanca, pintura a óleo de John Bagnold Burgess (1829-1897), década de 1880

"The favourite priest" (1880), óleo de Jonh Bagnold Burgess (1829-1897)
Quadro naturalista, documenta costumes populares espanhóis e dois padres em hábito romano preto. Este é composto por batina talar ordinária e mantéu espanhol de colarinho raso. Nos acessórios, guarda-chuva, sapatos pretos de fivela, volta branca e o já então quase abandonado chapéu de raia ou canoa, um abeiro de feltro que se usou em Itália, Espanha, Portugal, França e na América Latina. Nalguns chapeús as abas reviravam-se até à base da copa, noutros eram lançadas por cima da copa. Entre finais do século XVIII e o 1.º quartel do século XIX alguns bispos portugueses e espanhóis usaram o mesmo tipo de chapéu em verde forte.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Abertura solene da Universidade de Lisboa (1915)

Cerimónia de abertura da Universidade de Lisboa no ano letivo de 1915-1916 na biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa. Na mesa da presidência reconhem-se o Presidente da República Bernardino Machado, o presidente do Conselho de Ministros, o ministro da Instrução Pública Henrique Lopes de Mendonça e o reitor. Alguns professores com toga e grande colar de fita de seda. Em obediência ao estatuto universitário de 1911 a cerimónia comportou leitura do relatório de atividades do ano anterior e lição inaugural, a que a reitoria acrescentou a distribuição de prémios a alunos distintos.
Ao tempo a ULisboa não dispunha de salão nobre apropriado. Como a Faculdade de Letras continuava a funcionar no edifício da Academia das Ciências - onde tinha funcionado o Curso Superior de Letras -, a ULisboa aproveitou nos anos iniciais a biblioteca da Academia. Algumas mudanças entre o antes e o após 1910: a disposição do paraninfo e do auditória é alterada; o baldaquino real é substituído por uma mesa de honra. Quanto aos principais momentos estruturantes da cerimónia, o programa segue a tradição de cariz laico e militar praticada nas academias de belas letras e nas escolas militares. Excluindo a parada exterior, o programa é mutatis mutandis o mesmo praticado na Escola de Guerra.
Quanto à data de realização da cerimónia, o estatuto não indicava dia fixo. Cada uma das três universidades reconhecidas pelo regime republicano escolhia o dia mais conveniente de outubro. No caso de Coimbra,  a abertura só seria retomada com regularidade em 1918. Estamos assim muito longe dos tradicionais dias de abertura dos cursos que na Europa oscilavam entre o 18, dia de S. Lucas, e 1, dia de S. Remígio.
Fonte: Ilustração Portuguesa n.º 505, de 25.10.1915

Fotografia de inícios do século XX, posterior a 1910: novato sobre mocho de quatro pernas improvisa discurso rocambolesco ante os "doutores" no pátio das Escolas, Universidade de Coimbra. O orador tem os dois braços levantados em pose de grande tribuno. Os estudantes de Direito conheciam e citavam frequentemente as obras da especialidade de Cícero. Deste autor corriam de boca em boca aforismos latinos que serviam de mote aos discursos dos novatos.

domingo, 11 de março de 2012

Protocolo académico: novos caminhos, novos paradigmas em afirmação

Dottorati 1: fala do reitor voltado para a plateia

Dottorati 2

Dottorati (3) Festa de entrega dos diplomas aos novos doutores na Università Ca' Foscari, Veneza, em 23.6.2010
De acordo com a informação disponível, o evento teve lugar no teatro Stabile, com o seguinte programa:

-intervenção do reitor
-alocução de um orador aos diretores das escolas
-entrega dos diplomas
-alocução do porta-voz dos novos doutorados
-"lectio magistralis" por um orador externo, membro do Fundo Monetário Internacional

Como descodificar esta iniciativa da Università Ca' Foscari?
1  - O esforço de voltar a conferir visibilidade pública e mediática aos principais momentos do calendário universitário, projetos de investigação em curso e oferta de diplomados disponíveis para entrar no mercado de trabalho corresponde a uma tendência à escala internacional. Não se pode ler como sendo italiana, portuguesa ou francesa. Toca inclusé as universidades dos antigos países de leste. As universidades britânicas e norte-americanas nunca aboliram verdadeiramente as cerimónias académicas. Quem as aboliu foram as universidades da Europa continental, cujas equipas reitorais procuram desesperadamente garantir a sobrevivência com recurso às ferramentas de gestão
estratégica.
O desafio é hercúleo: como garantir a sobrevivência económica e justificar a afetação de verbas públicas ou a captação de patrocínios? Como justificar inércias do corpo docente de certas escolas, pautadas por produção científico-académica insignificante ou residual? Como justificar o boicote de alguns docentes, orientadores e tutores a certos temas queridos da comunidade e de grupos cívicos, presunçosamente vistos como "não temas" e "não cursos"? Como e quando prestar contas ao Estado e aos cidadãos pelo que se fez e não fez? Como diferenciar os produtos gerados pela instituição e qualificar a oferta numa lógica de notoriedade e excelência?
2 - Quem vem de uma formação mais clássica sente alguma dificuldade em considerar este tipo de eventos na categoria de cerimónias. Com efeito, não estão presentes em densidade e qualidade os ingredientes específicos de uma cerimónia solene;
3 - No presente, os modelos de organização de eventos mais em voga são os que constam da agenda mediática, particularmente da agenda televisiva: Óscars, Grammy, bota de ouro, bola de ouro, soluções compósitas como a gala dos globos de ouro, entrega da camisola amarela ao ciclista vencedor da volta, festival europeu da canção, entrega do troféu à equipa vencedora do campeonato de futebol, comícios partidários;
4 - Se analisarmos com detalhe as fotografias, confirmamos a presença de grande parte dos ingredientes importados dos shows televisivos:
  • um ou mais apresentadores que se movimentam em palco;
  • ambiente informal/descontraído;
  • convivência entre elementos da tradição mais formal e novos signos ou atitudes que oscilam entre o registo informal e o banal;
  • diversos registos de indumentária em sala: togas académicas, indumentária civil informal (elevada percentagem de universidades antigas e modernas estão a adotar a toga e o barrete norte-americanos, situação que as fotografias não confirmam);
  • lançamento de papelinhos multicolores como nos shows televisivos, nas finais dos concursos de miss beleza e nos troféus de futebol;
  • recurso a oradores externos que pela sua pujança mediática ou posição de liderança em grandes empórios conferem mais visibilidade à instituição e criam nos novos graduados a crença de que podem ser recrutados (solução diferente é a adoptada nas universidades da idade clássica do republicanismo e nas aberturas dos tribunais superiores da Austrália e Canada, pois o que aqui se pretendia e pretende era a descorporativização ou abertura à comunidade);
  • apresentação dos diplomas/graduados como uma mercadoria segundo as convencionais regras da oferta/procura;
  • exibição de eventuais produtos-simulacro cujo impacto é do tipo tvshow: entrega de "diplomas" cujo protocolo não foi validado, que serão apenas usados nas fotografias e filmagens, à semelhança dos cheques gigantes exibidos em concursos televisivos.
Em síntese: expressiva amostra de estabelecimentos de ensino superior emite sinais neo-cerimonializantes. O espírito neo é marcado por revivalismos e posturas sincréticas que abarcam formatos que vão do show televisivo ao cinematográfico e desportivo, passando pelos contributos do marketing e do merchandising. Em França, o relatório Lévy/Jouyet (L'Économie de l'immateriel: 2006) defendeu abertamente uma abordagem comercial dos diversos patrimónios, situação que suscitou protestos mas que faz sentido nalguns setores públicos e privados. Não estão as universidades clássicas carregadas de "património morto" que não rentabilizam nem acessibilizam aos cidadãos?
Como reagir perante estes novos enunciados? Com abertura e sentido crítico. No passado, os modelos dominantes eram as monarquias, a Igreja Católica, os exércitos. No presente, faz sentido que os paradigmas mais mediáticos exerçam influência sobre as instituições académicas.
Fonte: http://www.unive.it/nqcontent.cfm?a_id=76765