Virtual Memories

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Alunos fardados e bem calçados (1916-1917)

QE 1: «Defende a tua Pátria», Alfredo Morais, 1917
Aluno com traje vitoriano avulta sobre as trincheiras e recolhe o estandarte numa atitude de adesão à participação de Portugal na Grande Guerra.

QE 2: »Saúda a bandeira», A. Quaresma, 1917
Desfile dos membros do Corpo Expedicionário Português a caminho do cais de embarque. Respeitosos, os alunos fardados descobrem-se e saúdam a bandeira nacional.

QE 3: «Ajuda os mais fracos», H. Gonçalves, 1917
Sala de aula funcional, com materiais didáticos (mapa de Portugal, quadro anatómico) e carteira arte nova em ferro fundido e tampo ergonómico de madeira (em 1982 ainda vi destas carteiras no meu liceu). Professora ensina e orienta alunas. Cenário urbano idílico, aponta para o modelo de escola que o regime republicano gostaria de ver generalizada. Na verdade, nos bairros operários e nos meios campesinos havia trabalho infantil antes e depois das horas de aulas, a pasta era de pano vulgar ou de madeira, os pés andavam descalços e a roupa era humilde e remendada.

QE 4: «Ama os teus semelhantes», Alberto Souza, 1917
Edifício escolar de aldeia. Aluno fardado e calçado recolhe e entrega donativos a mendigo. Quadro naif, sinaliza motivos rurais, exemplificando a filantropia republicana como o terceiro pilar da democracia (Fraternidade).

QE 5: «A união faz a força», Rocha Vieira, 1917
Um aluno fardado de soldadinho é resgatado pelos seus colegas. Embora se aviste na colina brumosa um moinho, a indumentária escolar é urbana, comprada nos grandes armazéns do pronto-a-vestir de Lisboa e do Porto e copiada dos catálogos de modas produzidos em França e Inglaterra.

QE 6: «Antes coragem que força», de Stuart de Carvalhais, 1917
Em vez de se sentir intimidado pelo animal (mais parece dócil cachorrinho, em nada se parecendo com os terríficos Cerbero e Spike da nossa infância), o aluno é incentivado a dominar a situação através da astúcia e do autocontrolo.

QE 7: «Quem semeia colhe», de H. Collomb, 1916-1917
Aluno de escola rural fardado com uniforme caqui, pasta de couro e chapéu. Trabalho figurativo verista ingénuo. Da mesma forma que o agricultou semeia para colher os bons frutos na estação seguinte, a criança é sugestionada a investir na sua formação para garantir melhor futuro profissional e participar civicamente na construção do seu país.

QE 8: «Devagar que tenho pressa», de F. Guedes, 1917
Cena moralizadora alusiva à escola do ensino primário na 1.ª República. Trabalho figurativo de descodificação imediata, preenche o cenário com um edifício escolar funcional e figura cinco estudantes no momento da saída da escola. Todos alunos do sexo masculino, todos calçados, todos fardados de marujinho e com veste vitoriana burguesa (calção, meias altas, casaco/jaqueta e boina). Muito presentes os valores político-sociais da ordem, asseio, disciplina, respeito pelos mais velhos e sentido de cumprimento dos deveres individuais. No que respeita aos princípios de civilidade e boas maneiras, a escola pública portuguesa dos anos da 1.ª República reproduzia os mesmos ideais campeantes nos regimes republicanos ocidentais: combate ao analfabetismo, laicidade do ensino público, devoção patriótica, culto dos valores militares viris. Embora as escolas públicas portuguesas não estivessem obrigadas por lei a exigir aos seus alunos um uniforme corporativo, nas escolas rurais combatia-se o pé descalço, a roupa rota e a pele encardida, enquanto que nas escolas mais urbanas estavam generalizadas as vestimentas de inspiração militar.
Fonte: seleção sobre uma série de 12 cartazes ilustrados, produzidos entre 1916-1917, no contexto da participação de Portugal na Grande Guerra, e distribuídos pelas salas de aula das escolas de ensino primário. Coleção de Jorge Silva, on line no sítio Almanach Silva, postagens de 5.1.2013

«Coimbra», postal ilustrado com assinatura de Elisa Bermudez Felismino, circulado em 1942
Representação imaginária sobre o estudante da Universidade de Coimbra e as suas relações amorosas com raparigas do povo. A tricana é apresentada em pose sensual, facilmente associável à imagem da meretriz. O Estado Novo não gostou. Este tipo de boneco estava muito vulgarizado no teatro de revista, em espetáculos do Moulin Rouge e da Broadway. A Warner Brothers nos cartoons exibidos neste período vendia produtos convergentes à base de bonecos bamboleantes, fêmeas sedutoras e irresistíveis e machos que ficam de olhos em bico e davam uivos.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Postal ilustrado intitulado «Coimbra», com assinatura da artista Elisa Bermudez Felismino, circulado em Portugal no ano de 1942.
Representação kitsh e imaginada do estudante da Universidade de Coimbra como boémio e sedutor de criadas de servir. O cenário não contém elementos topográficos conimbricenses explícitos. Vislumbra-se ao fundo uma espécie de bosque, numa possível alusão à mata do Choupal. A tentativa de associar o estudante às raparigas da cidade de Coimbra, as tricanas, era explorada pelos editores de bilhetes postais ilustrados desde os inícios do século XX (ca. 1903). Fora de Portugal, e tomando por referência outros meios académicos, também eram produzidos postais ilustrados de estudantes flanqueados por figuras femininas sensuais (Espanha, Alemanha, Áustria, Suiça). Os elementos "etnográficos"apresentados para compor o figurino são em geral anacrónicos e inventados: a guitarra não corresponde ao modelo usado em Coimbra; a figura feminina apresenta um vestido garrido que não era usado com o xaile, o vicente e o lenço; a forma de caminhar da figura feminina propõe uma sensualidade artificial, ligada ao universo dos casinos, teatros de revista e escola de teatro do Conservatório Nacional (para as atrizes formadas no Conservatório Nacional, todas as camponesas portuguesas deitavam as mãos na cintura, à minhota!).
As elites estudantis conimbricenses, e muito particularmente os estudantes desalinhados do regime salazarista, detestavam estas imagens kitshíssimas e odiavam ser associados a clichés de masculinidade vulgar. Cortejar camponesas vestidas como bailarinas de balet era um dos ingredientes da política do espírito do Estado Novo. Namorar criadas de servir era um dos elementos do imaginário lisboeta associado às perceções construídas em torno dos magalas, fuzileiros, casas de prostituição e cultura de bairro.Para que o par estudante/tricana funcionasse, era necessário fingir o impossível, ou seja, fazer de conta que a capa e batina era um traje popular. Sem este golpe de imaginação, o mapa etnográfico de Portugal perderia um par mítico. O SNI de António Ferro não apreciou esta série de postais sobre costumes populares portugueses. Elisa Felismino incutira aos seus manequins demasiada sensualidade. A revista Panorama n.º 10, de agosto de 1942, censurou os postais e apresentou-os como exemplo de mau gosto a corrigir. Mas o mito, esse estava enraizado e voltaria a ser repetido em overdose por Armando Miranda em 1947 no filme «Capas Negras».
Fonte: Jorge Silva, «O mau gosto de Elisa», in Almanach Silva, edição de 20.4.2012, http://almanachsilva.wordpress.com/page/5/,

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Uma tese sobre uniformes escolares (2006)

«Criança calçada, criança sadia! Sobre os uniformes escolares no período de expansão da escola pública paulista (1950-1970)», é o título da dissertação apresentada por Katiene Nogueira DA SILVA à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo em 2006 para obteção do grau de mestre: http://www.teses.usp.br/disponiveis/48/48134/tde-29062007-152705/pt-br.php
O trabalho explora palavras-chave como cultura escolar, expansão do ensino, história da educação e do vestuário e uniformes escolares.
Conquanto considerado um tema marginal pelas elites universitárias lusófonas, o pioneirismo na abordagem da temática coube de pleno direito à socióloga da Universidade de São Paulo, Gilda de Melo e Sousa (1919-2005) que em 1952 defendeu a sua tese de doutoramento sobre «O espírito das roupas, a moda no século XIX», nem Foucault era ainda pergaminhado.
Da Silva procura, em primeiro lugar, descortinar como é que a política oficial que comina o uso obrigatório de uniformes nas escolas de ensino primário e médio brasileiras foi estruturada no Estado de São Paulo entre as décadas de 1950-1970. A investigadora socorre-se de relatos de imprensa escrita (artigos, publicidade). Tenta sondar as perceções dos alunos com base num jornal escolar e as regulamentações publicadas em manuais pedagógicos. Percorre a legislação escolar, sem perder de vista que a pesquisa enfoca uma época de forte expansão da oferta pública de ensino. Relativamente a fontes informativas associadas ao discurso produzido e inculcado pelas elites, Da Silva privilegia a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, a Revista de Educação e a Revista do Professor. Com base nos artigos mapeados, elabora uma grelha uniformizada que permite comparar campos como Educação sanitária, higiene e eugenia, Assistência social, Vestuário como símbolo de distinção social e projeção da personalidade, Disciplina, ordem e asseio e Comemorações cívicas, entre outros.
A autora deste trabalho caracteriza eficazmente a transição do paradigma educativo liberal monárquico para os regimes republicanos, passando pela ditadura de entre guerras. Identifica corretamente os manuais educativos e pedagógicos como prescritivos ou normativos que visavam construir uma imagem oficial do professor e do aluno. Os valores normalizadores e uniformizadores associados à linguagem do vestuário corporativo inscrevem-se profundamente no imaginário normalista, isto é, das escolas normais, que no mesmo período em Portugal tinham passado a designar-se escolas de magistério primário. Os manuais de metodologia e ensino integravam nas suas páginas recomendações oficiais e orientações retiradas dos manuais de civilidade e boas maneiras. Estas prescrições incidiam sobre o uniforme (cor, forma, tecidos, regras de uso) mas também sobre o autocontrolo do corpo e a proibição de quaisquer sinais externos que pudessem exprimir luxo, vaidade, transgressão (penteados, jóias, adornos). Na medida em que se pretendiam afirmar como instrumentos sociais e éticos de controlo, invadindo o território da vida privada e impondo uma imagem normalizada do professor e do estudante, os manuais referidos acabavam por transmitir o mesmo tipo de valores que veremos ser consagrados em Portugal nos códigos de praxe académica (códigos do trote) nas décadas de 1980-1990.
Os uniformes escolares brasileiros refletem com maior ou menor grau de atualização as tendências políticas e da moda. As indústrias do vestuário, através da publicidade e de campanhas de sensibilização, desempenharam um papel fulcral na construção da imagem mediática do estudante uniformizado. O próprio título da tese é retirado de uma campanha de publicidade realizada em 1958 pela empresa São Paulo Alpergatas SA.
Na transição da década de 1950 para os sixties acentuam-se as metamorfoses, com os uniformes a refletir as novas posturas juvenis e uma mensagem modernizadora associada a um design mais funcional, desportivo e confortável. Dado incontornável, os uniformes escolares dos níveis primário e médio continuam a apresentar um design de gosto muito discutível, com o seu ar low cost, por vezes kitsh: confeção pronto-a-vestir pouco aprimorada, tecidos pouco maleáveis e rapidamente desgastáveis. Outro aspeto fundamental dos uniformes escolares comum a todos os países onde foram adotados traduz-se numa rígida segregação de sexos. Embora possa haver peças comuns, o calção/calça é considerado obrigatório para alunos e a saia para as alunas. Isto só não acontece no pré-escolar (jardim de infância, creche), cujos meninas e meninas podem usar até aos cinco anos uma bata ou bibe unissexo. A "regra" escolar da diferenciação do vestuário por sexos emergiu na era do liberalismo clássico e continua a ser considerada obrigatória mesmo após o triunfo do discurso feminista, da generalização do vestuário unissexo e da consagração de peças comuns a ambos os sexos nas forças armadas e nas forças policiais dos países ocidentais. O seu paradigma inspirador é militar e burguês-liberal e não exatamente universitário, religioso, popular ou judiciário, campos culturais onde a indumentária unissexo era/foi entendida com outra flexibilidade.
Situação idêntica à analisada por Da Silva ocorre em Portugal na maioria das universidades e institutos politécnicos, instituições onde comissões de alunos ad hoc criaram inúmeros trajes corporativos na década de 1990. Estes trajes estão regulamentados em manuais de conduta, designados por códigos de praxe (códigos ou regulamentos dos trotes académicos). Em quase 90% das situações analisadas ocorre um rígido dimorfismo de género consubstanciado em modelo masculino e modelo feminino diferenciados e os contextos de uso regulamentados impõem severas restrições em matérias do foro privado, como penteados, adornos e roupas interiores. O que é curioso nestes regulamentos fortemente neoconservadores é que foram aprovados por comissões/grupos de alunos sem qualquer participação dos órgãos de governo dos respetivos estabelecimentos de ensino.
Perante o que fica dito a propósito do caso português, seria importante perceber onde é que os autores dos regulamentos referidos foram colher informação para sustentar as prescrições consagradas. Não há uma resposta única. Mas podemos considerar:
1) a formação familiar e pessoal dos autores desses textos;
2) a falta de sensibilidade/formação das estilistas contratadas, que desconheciam a história das vestes académicas ocidentais e estavam bastante influenciadas pelos códigos específicos das "fardas" dimórficas dos hipermercados, empresas de segurança privada, hotéis, restaurantes e empresas de aviação civil (daí que, descontando elementos etnográficos e vitorianos, alguns dos trajos consagrados estejam muito próximos de soluções highschool uniform e das fardas produzidas para o mercado empresarial-comercial e não já da imagem militar da idade clássica);
3) a influência que os agentes colheram na leitura de algumas tradições da Universidade de Coimbra, nomeadamente na transposição de artigos de um documento ideologicamente muito datado, o "Código da Praxe de 1957";
4) princípios e perceções transmitidas por professoras do ensino primário formadas antes da Revolução de 25 de abril de 1974.
Voltando à cultura escolar brasileira, Da Silva destaca na legislação escolar um importante momento de viragem no protagonismo definitório dos modelos. A partir do Decreto n.º 39.334, de 10.11.1961, os uniformes escolares deixam de ser regulamentados pelo estado, competindo aos órgãos de direção de cada estabelecimento escolar decidir os modelos e as regras de uso. Mas esta mudança parece-nos ser meramente formal, não se traduzindo em qualquer alteração de vulto a nível do pronto-a-vestir, do low cost, da segregação sexual e do desencontro entre anatomia corporal e ergonomia dos modelos escolhidos.
Em países como o Brasil, a Argentina ou o Japão, o uniforme escolar é considerado um instrumento de afirmação das políticas educativas nas escolas públicas. Apesar de imposto por diferentes regimes, que vão da monarquia à república e à ditadura, os uniformes são encarados positivamente como agentes do processo de modernização, democratização e promoção da igualdade educativa. Esta situação é desconhecida em Portugal, país onde o uniforme escolar está associado à imagem dos colégios privados confessionais e laicos.
O trabalho desenvolvido por Da Silva constitui um importante contributo para a história da educação, considerado o enfoque teórico e o levantamento de fontes. Pessoalmente, gostaria que a investigadora tivesse tido tempo para ir um bocadinho mais longe, entrando em campos porventura menos gratos como as memórias produzidas pelos estudantes sobre os uniformes escolares que foram obrigados a vestir numa determinada fase de vida e a importância que os órgãos de administração/gestão das escolas e os encarregados de educação/pais atribuíam a esses trajos. Mas, como sabemos, as teses de mestrado são limitadas no tempo da investigação, no penoso tempo da escrita e no número de páginas. As minhas felicitações a Katiene da Silva.