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quinta-feira, 18 de dezembro de 2008


Estudantes de Montpellier
Dois elementos da associação de estudantes da Universidade de Montpellier, com fraque, barrete e bandeira nas festividades académicas de 1891.
No século XIX, os estudantes universitários franceses não tinham traje consagrado nem coberturas de cabeça. Proclamando-se arauto da igualdade, era o próprio estado francês a promover a desigualdade, na medida em que permitia fardas e coberturas de cabeça aos estabelecimentos de ensino politécnicos e de artes e ofícios mecânicos.
O encontro de legações universitárias no 8º Centenário da Universidade de Bolonha, em 1888, fomentou uma autêntica corrida à invenção de símbolos vestimentários estudantis. Os estudantes franceses regressaram de Bolonha com uma gorra preta de veludo (la feluca), que rapidamente foi tradicionalizada com a designação de "la faluche". É essa mesma gorra que se avista nos estudantes de Montpellier escassos três anos volvidos.
(imagem do Museo Internacional del Estudiante)


Estudantes de Paris
Dois estudantes universitários de Paris numa gravura de meados do século XIX. O aspecto meio boémio, meio dandy, e o traje paisano-burguês, eram também praticados nas universidades espanholas, suscitando grande cobiça entre muitos dos estudantes de Coimbra que se reviam na abolição do hábito talar.
(gravura do Museo Internacional del Estudiante)


Chegada do pipo
Cortejo triunfal da chegada de um pipo de vinho a Bolonha, iniciativa dos estudantes da Univerisidade de Turim que em Junho de 1888 participaram no 8º Centenário da Universidade de Bolonha.
A recepção solene a um pipo ou tonel de vinho transportado aos ombros ou sobre uma carroça/carro de bois era uma das mais queridas tradições populares e académicas europeias. Conhecemos diversos exemplos de festividades associadas à exibição ou parada triunfal de pipos: Carnaval da Mealhada, Festas do Divino Espírito Santo/Açores, libações de confrarias espontâneas de São Martinho.
Na Universidade de Coimbra há diversos relatos de entradas triunfais de pipos de vinho, conduzidos sobre andores, desde a Estação Nova até ao Bairro Latino. Nos finais da década de 1980, uma residência universitária da Alta realizou pelo menos dois cortejos deste tipo, com o pipo transportado por caloiros. À luz da moral vitoriana, o transporte do pipo e o seu sacrifício ritual representam apenas a dissolução dos bons costumes. Uma interpretação bem mais próxima da realidade diz-nos que o pipo é uma personificação do deus Baco, amado pela estudantada, transportado em parada triunfal, numa réplica às solenidades de entrada praticadas pelos notáveis. Quanto às libações, um estudante diria que sem elas a festa não é festa!
(gravura do Museo Internacional del Estudiante)

Carnaval estudantil
Corso alegórico ou "mi-carème" dos estudantes de Paris numa litografia de 1893 (Museo Internacional del Estudiante). As paradas burlescas, o travestismo, a inversão momentanea da ordem e das hierarquias, o julgamento do tempo, a incineração, a inumação no solo ou na água, a embriaguês, a leitura de testamentos satíricos, a coroação de alegorias, a barulheira frenética, o desfile de despojos, eram elementos característicos dos rituais de passagem associados à gestão do tempo cíclico nas comunidades tradicionais.
Os elementos referidos, sob a forma de charivaris e carnavais, eram praticados por populares e estudantes, tanto nas aldeias como nas cidades de Portugal, Espanha, Itália, Brasil ou Bélgica. Daí que, no caso de Coimbra, a prudência aconselhe a não se arriscar nenhuma data segura para a origem da prática da Queima das Fitas em Coimbra. E quem a quiser apontar estará apenas a fantasiar. Com diversos nomes (=soiças, charivari do ponto, caçoada do ponto, festa do ponto, latadas, festa das latas, queima das fitas), a Queima das Fitas era até aos inícios do século XX apenas mais um dos charivaris da cidade e do município: o dos estudantes passou a chamar-se Queima das Fitas, o dos populares citadinos da Baixa era a Queima do Judas, o dos povoados limítrofes Enterro do Bacalhau.


Baile dos estudantes em 1910
Cartaz promocional do baile dos estudantes da Universidade de Lyon, realizado em 12 de Março de 1910. O figurante, em casaca de gala, ostenta um barrete estudantil (la faluche).


Cortejo dos estudantes de Paris
Ilustração do "Le Petit Journal", de 4 de Abril de 1897, relativa ao cortejo carnavalesco dos estudantes de Paris. Na década de 1890, o corso carnavalesco académico popularizou-se em França e Portugal, tornando-se uma prática querida dos estudantes liceais, das escolas de artes e ofícios, dos politécnicos e das universidades.
Na Universidade de Friburgo havia uma festividade instituída pelo menos desde 1842. Em Portugal, a década de 1890 assiste ao nascimento dos cortejos carnavalescos na Escola Politécnica de Lisboa, na Academia Politécnica do Porto e em vários liceus. Nalgumas situações tratou-se de adoptar as novas tendências carnavalescas traduzidas nos cortejos alegóricos à base de carruagens floridas e galantes batalhas de flores (lançamento de flores, bolas de cera e jactos de seringas), costume que teve grande acolhimento entre os estudantes de Coimbra. Noutros, a festa carnavalesca arcaica, de raizes medievais (charivari, enterro, queima, serração, julgamento), passou a conviver com os aportamentos do carnaval em processo de modernização. Estão neste caso a Queima das Fitas dos alunos do 4º ano da Universidade de Coimbra, que radicando nos charivaris medievais, acolhe os contributos trazidos pelo carnaval burguês e aristocrático de finais do século XIX, bem como os vários enterros que os liceais passam a realizar desde a década de 1890, que mais não são do que uma apropriação das tradições rurais da Queima do Judas, do Julgamento do Bacalhau e da Serração da Velha. A única festividade académica portuguesa que não se enquadra nos modelos referidos, em termos de calendário e de programa, é as Nicolinas de Guimarães, associada ao antiquíssimo ritual decembrista do São Nicolau dos estudantes.


Baile dos Estudantes de Lyon
Na primeira metade do século XX ficaram famosos em Portugal os bailes de fim de curso na Universidade de Coimbra (década de 1930), Escola de Agrária de Coimbra e liceus portugueses. Do outro lado do Atlântico chegavam notícias dos bailes de finalistas dos liceus norte-americamos.
Mas o baile estudantil português, hoje em dia condimento quase obrigatório nos festejos de encerramento de ano escolar no ensino superior português civil e militar, nem são originais, nem são os mais antigos da Europa.
Na década de 1990 a Escola Politécnica de Paris já realizava regularmente mundanos e aclamados bailes no Trocadero. Na cidade de Lyon, os estudantes iniciaram o baile de carnaval em 1877, tradição das mais celebradas e antigas da Europa, com produção iconográfica em jornais como o "Le Monde Illustré", e o "Le Progrès Illustré", nº 117, de 12 de Março de 1893. Da mesma forma que as festas de fim de ano dos estudantes de Coimbra originaram uma copiosa produção de cartazes desde a 2ª metade do século XIX, também o baile académico de Lyon inspirou cartazes ilustrados, num dos quais figura a assinatura de T. Lautrec.
Nesta página do "Le Progrès Illustré", de 12.03.1893, conta-se a história do baile estudantil de Lyon desde 1877.


Colegial francês
Aluno de colégio privado francês em meados do século XIX, segundo gravura do acervo do Museo Internacional del Estudiante. O aluno enverga cartola, calças compridas e casaca recortada no ventre, com abas posteriores, numa espécie de réplica civil aos trahes militares. Trata-se de uma variante do pequeno uniforme que os alunos da Politécnica de Paris tinham consagrado desde a 2ª década do século XIX.
No século XIX, as vozes do abolicionismo vestimentário, conviveram com instituições de ensino público onde as fardas miliares eram bem aceites e com colégios privados cujos regulamentos consagravam um uniforme obrigatório.
O mesmo acontecia na Grã-Bretanha, Canadá, EUA, Espanha, Japão, Portugal ou Brasil, sendo conhecido que alguns dos abolicionistas mais radicais matriculavam os seus descendentes nestas escolas.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

O regresso da Formatura em Udine



Formatura em Udine (2006)

Cerimónia de formatura em Udine

Procurando individualizar o primeiro ciclo de estudos decorrente do processo de Bolonha, em Outubro de 2006 a Università degli Studi di Udine aventurou-se na realização da primeira “graduation ceremony” pós-moderna segundo o paradigma das universidades e academias militares dos EUA.
Houve toga preta à americana, canudo e barrete (“tocco”) atirado ao ar (il lancio del tocco) por 60 formandos conforme usança na maior parte das universidades dos EUA. Este costume, que também é conhecido em algumas universidades britânicas, parece ser uma réplica do “hat toss”, ritual de lançamento do boné praticado desde 1912 pelos finalistas da US Naval Academy.
Se a queda do Muro de Berlim abriu um amplo ciclo de corrida/invenção aos trajes talares por parte dos docentes dos estabelecimentos de ensino superior dos antigos países de leste, os anos de viragem para o século XXI assistiram à consagração das neo-cerimónias de formatura em universidades da Europa Continental longamente associadas as práticas abolicionistas. Enquanto parte significativa da nata intelectual dos corpos docentes de algumas universidades clássicas continuava fiel ao catecismo six-huitard, cultuando a uma leitura monista do tempo linear, da cultura e das vivências, um leque de eventos de curto prazo encarregar-se-ia de torpedear uma tal filosofia da história no que ela comportava de autoritarismo e rigidez.
Às universidades dos antigos países de leste vieram juntar-se, um pouco por toda a Europa, os movimentos cívicos das confrarias gastronómicas e vinícolas, fortemente apostados na revitalização do património imaterial. A movida das confrarias portuguesas, espanholas, francesas, belgas e italianas, não pode ser apressadamente rotulada de surto de reaccionarismo. O espectro dos entronizados centra-se na livre atracção de elites políticas, económicas e académicas, reflectindo projectos de revitalização, divulgação e salvaguarda do património material e imaterial definidos e apoiados à escala internacional pela UNESCO.
Efectuando uma revisitação do século XX, rapidamente se concluiu que a abolição das cerimónias de colação dos graus nas universidades históricas da Europa continental redundou numa certificação meramente administrativa de secretaria, cuja imagem não cessou de deteriorar-se nos anos da massificação do ensino superior. No caso de Coimbra, muitas das vozes que defendiam o abolicionismo ou propunham a substituição dos costumes académicos pelos militares, faziam de conta que as escolas militares não continuavam a realizar rituais de investidura e de formatura. Sinal eloquente de algumas incongruências, o discurso abolicionista reivindicado nos anos de juventude, longe dos círculos familiares e vicinais, era rapidamente esquecido no regresso do “dr.” à terra de origem. Aí, podia acontecer de tudo um pouco, desde o casamento católico ao baptismo dos filhos, passando pela atribuição do nome do avô ao primeiro descendente, à inscrição da criança no clube de futebol do coração ou à sua matrícula em colégio cujo regulamento impusesse farda infantil obrigatória. Revolucionário teórico em Coimbra e conservador na terra, eis um paradigma ideológico comum a muitas das franjas grupais estudantis.
É próprio da juventude contestar os trajes profissionais, insignias e cerimónias, ou achar que estas não fazem qualquer sentido, como é próprio da adultez perceber o seu exacto significado e papel na afirmação das instituições e na regulação das relações sociais. O assunto poderia aliás ser dilucidado in partibus com a conversa entre Antero de Quental e Eça de Queirós, passados anos sobre a juventude e a luta pela abolição da capa e batina. Vestido com desmazelo e roupa coçada, como sempre fizera, Antero tentou fazer ver a Eça que este se convertera num diplomata palaciano que até tinha de usar o grande uniforme napoleónico com bicórnio emplumado e espadim, atitude que Antero considerava um retrocesso civilizacional. Eça, com o sentido de humor que lhe era próprio, olhou para as mangas do casaco de Antero, e vendo-as puídas e sem garbo, replicou-lhe amigavelmente que o grau de civilização que Antero dizia ter atingido se via pelo estado das mangas do casaco que trazia vestido!
A verdade é que as elites académicas, financeiras, desportivas e artísticas do século XX não queriam o abolicionismo tal como ele foi visto e praticado em algumas universidades. Perante a inércia, invisibilidade ou desacreditação de algumas instituições de ensino superior, outras instâncias certificativas emergiram um pouco por todo o Ocidente. Não obstante as críticas e rumores que habitualmente rodeiam a atribuição dos galardões, e dos actos raros de renúncia aos prémios, poucos são os países onde não há prémios para rainhas de beleza, desportistas, jornalistas, cientistas, economistas e gestores, produção cinematográfica, televisiva, musical e literária.
No que respeita ao cinema, citemos os Óscares de Hollywood (desde 1929), o Leone d’Oro e o Leone d’Argento do Festival de Cinema de Veneza (desde 1932), os ursos de ouro e prata do Internationale Filmfestspile Berlin (desde 1952), a Palme d’Or do Festival de Cannes (atribuída desde 1955), ou o Golfinho de Ouro (Festróia, desde 1985).
Quanto a prémios literários e científicos, são sobejamente conhecidos o Prémio Nobel, nas categorias Física, Química, Medicina, Literatura e Paz (desde 1901), e o Pulitzer Prize (EUA, desde 1917).
A indústria musical realiza anualmente nos EUA desde 1958 o Grammy Award (melhor artista, melhor canção, melhor disco…). Anterior a este é o Emmy Awards, instituído nos EUA em 1949 para programação televisiva, que terá servido de inspiração ao português Globos de Ouro, criado em 1996 pela SIC/Revista Caras (música, desporto, moda, teatro, cinema, televisão, personalidades).
No mundo do desporto, não há modalidade que dispense troféus, sejam eles olímpicos ou futebolísticos. No caso do futebol, ao troféu clássico consubstanciado na taça, vieram juntar-se o prémio Bota de Ouro, da UEFA, iniciado em 1967-1968, e o Bola de Ouro, proposto pela revista francesa “France Futball” em 1956. No último exemplo, o prémio resulta de votação realizada por 52 jornalistas desportivos que procuram eleger o Futebolista Europeu do Ano, situação contígua à das eleições para as chamadas “personalidade do ano”.
O mundo financeiro e empresarial não ficou à margem deste fenómeno de premiação, existindo diversos galardões atribuídos a empresários, gestores, banqueiros e economistas. O mais conhecido será o Prémio Sveriges Riksbank, de economia, surgido na Suécia em 1968.
No que respeita às situações apresentadas (sem preocupações de exaustividade), nem eleitores, nem premiados consideram estas cerimónias reaccionárias ou ridículas, visão comum aos entronizados nas diversas confrarias gastronómicas e vinícolas.
Contudo, não seriam nem as confrarias nem as instituições de atribuição de troféus a colocar as universidades europeias em estado de alerta relativamente aos trajes, insígnias e cerimónias que foram sendo declaradas abolidas desde o iluminismo. Enquanto Paris discutia se voltava ou não voltava a usar a “toge”, e Coimbra e os lentes se degladiavam na questão das insígnias, jovens e aguerridas escolas de gestão da Europa Central punham em prática estratégias de promoção da imagem e de colocação dos seus formandos no mercado de trabalho através da adopção descomplexada da “graduation ceremony” dos EUA.
Em universidades francesas, italianas, alemães, suíças, espanholas, e em Coimbra, julgou-se erradamente que se tratava de uma brincadeira de mau gosto. Mas as “business schools” e as “management schools” provaram que não estavam a brincar. O traje e as cerimónias de formatura de cursos, abolidas pelas universidades clássicas reapareciam na Europa Continental pela mão de novas estratégias de marketing. O problema não se colocava nem tinha sentido na Grã-Bretanha, onde as formaturas haviam sido mantidas, mas na Europa Continental as equipas reitorais a braços com o processo de Bolonha viram-se obrigadas a repensar as estratégias de afirmação e promoção das respectivas imagens. Definitivamente, a mera conclusão administrativa do curso deixara de fazer sentido numa era de massificação, de diminuição da procura de matrículas, de desprestígio dos diplomas e de dificuldades de acesso ao mercado de trabalho.

O conceito de património imaterial, pioneiramente praticado por franjas de estudantes da Universidade de Coimbra na segunda metade da década de 1970, é a grande vedeta dos anos iniciais do século XXI. De acordo com os parâmetros UNESCO e a legislação do património cultural que tem vindo a ser adoptada pelos países ocidentais, o património é bem mais do que os convencionais castelos e conventos, devendo evidenciar marcas distintivas e originais. Aquilo que para os modernistas cosmopolitas nada mais era do que provinciano, produto menor ou destituído de valor, ganha pleno interesse na pós-modernidade, convocando políticas de salvaguarda e de responsabilização.
No pós-modernismo, a visão estatal napoleónica, assente no primado da uniformização geral, já não seduz nem convence. Ao contrário dos séculos XIX e XX, que haviam sido de aproximação identitária aos costumes e cerimonial da Universidade de Coimbra, o crepúsculo do século XX testemunhou a proliferação de paradigmas distintivos.
E aqui, aplicando os critérios UNESCO de salvaguarda e revitalização do património integrado em núcleos históricos, a haver algum estabelecimento de ensino português a galardoar, essa instituição será seguramente a Universidade do Minho, onde a reitoria e membros do corpo docente acompanharam a associação de estudantes na afirmação de projectos culturais repassados de criatividade e originalidade em termos de vestes, rituais e festividades.
A Universidade de Udine não está sozinha nesta corrida. O movimento emite sinais de adesão na Suíça, na Alemanha, em Salamanca, no grupo das várias universidades que se acobertam no sólio Paris, e na Bélgica (Gand, retoma da formatura em 2008).
Para início de conversa, faria sentido uma distinção entre a "graduation ceremony" à americana, adoptada pelas "business schools" sem legado patrimonial a respeitar, e a retoma da formatura nas universidades clássicas detentoras de património histórico em estado de hibernação. A observação das experiências realizadas na 1ª década do século XXI na Suiça, Alemanha, França, Itália e Bélgica, diz-nos que se procedeu a um transplante acrítico da "graduation ceremony" americana, aqui e ali com mistura de momentos da cerimónia da entrega dos Óscars, sem atender às especificidades das cerimónias de formatura consagradas nas antigas constituições estatutárias. Salamanca foi a única universidade a tentar revitalizar a formatura a partir da actualização das disposições estatutárias, mas o facto de ter omitido o cortejo na via pública e a não disponibilização de vestes e insígnias, tem comprometido o sucesso da iniciativa.

Fonte: http://qui.uniud.it/