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sábado, 12 de junho de 2010


Coimbra, Pátio das Escolas Maiores, préstito de colação de grau de doutor, 1959
Fotografia captada da Via Latina para o pátio, não mostra a Charamela e o couce do préstito praticamente não se consegue divisar.
O que é a Charamela? é um grupo musical enformado por executantes de instrumentos de sopro, com raízes nas entradas triunfais que os generais vitoriosos davam a ver em Roma. Tradicionalmente os charameleiros vestiam libré à portuguesa, no leque de instrumentos incluíam-se charamelas e nos instrumentos em uso fixavam-se pendões de seda adamascada bordados com motivos heráldicos. No século XIX a Charamela começou a vestir a farda direita, quer dizer, uma casaca singela de tipo napoleónico que comparada com as antigas librés pouca valia expressa. As charamelas actuavam em cortejos pedestres e em cavalgadas solenes. Na actualidade existem charamelas na Casa Real Britânica e na Universidade de Salamanca. De acordo com o regulamento do cerimonial, a Charamela deveria actuar em todos os actos solenes, o que nem sempre acontece.
Quem são os Archeiros? O corpo de guardas que tradicionalmente garantia a segurança do reitor, da casa reitoral, dos edifícios universitários e do perímetro urbano integrado na área de jurisdição da Univ. era conhecido por verdeais e ulteriormente por archeiros. Obedeciam à voz do meirinho, que tinha direito a vara alçada, e mais tarde ao guarda-mor. Ao longo dos séculos os archeiros envergaram a indumentária em voga nas cortes europeias. A partir de 1836 os verdeais ou alabadeiros passaram a ser conhecidos por archeiros, pese embora o facto de não usarem arco. No dia-a-dia usavam uma farda de tipo militar muito singela. A farda de trabalho consagrada no século XX ainda se pode ver, constituída por casacão cinzento avivado de verde, calça igualmente cinzenta, boné de pala e espada. Sendo a Porta Férrea um espaço cruzado anualmente por milhares de turistas, tanta singeleza desafia a imaginação, sobretudo quando se estabelecem as inevitáveis comparações com a farda de trabalho que os beefeaters patenteiam na Torre de Londres. Nos dias de gala, os archeiros vestem o grande uniforme napoleónico, que complementam com espada e alabarda. As alabardas usam-se erguidas, mas nos préstitos fúnebres seguem derreadas. Parece faltar algo na foto. O adereço em falta é o bicórnico de feltro preto ou chapéu à Napoleão, que tem andado esquecido desde a revitalização das tradições universitárias pelos idos de 1916.
Quem vem logo atrás dos archeiros? Em primeiro lugar a Escola de Farmácia, à época uma escola menor, representada apenas pelo Doutor Ramos Bandeira. Como as escolas desfilam por ordem inversa das suas precedências, após Farmácia temos sucessivamente Faculdade de Ciências, Faculdade de Medicina, Faculdade de Direito e Faculdade de Letras.
Não se vêm mulheres entre os doutores? Era suposto vermos logo na frente Maria de Serpa, doutorada em Farmácia pela Univ. do Porto, docente e investigadora da Escola de Farmácia. Também era expectável vermos no segmento da Faculdade de Letras a Doutora Maria Helena da Rocha Pereira, mas a fotografia não permite visualizar os docentes de Artes Liberais.
Quem vem após a Faculdade de Letras? Vai o apresentante do novo doutor, no meio do galo e da galinha, quer dizer, ladeado pelos dois doutores que foram convidados para fazer o elogio do novo doutor e o elogio do seu apresentante.
E em seguida? Não se consegue ver, mas segue o pagem do reitor, mais conhecido por pajem da borla, que segura uma salva de prata sobre a qual ostenta a borla doutoral, o anel doutoral e o livro.
Acabou o cortejo? Não exactamente. Seguem agora os bedeis das faculdades, dois a dois, com traje de grande gala à antiga portuguesa e maças das respectivas escolas. Atrás deles, em posição central, caminha o mestre-de-cerimónias em hábito talar e com o seu bastão.
Então e o Reitor? Chegámos precisamente ao Reitor, dobremos a língua pois é dia de acto grande e o melhor é dizermos logo todos os títulos que são primus Magno Cancelário, secundus Reitor Magnifico, tertius Venerando Prelado.
O Reitor desfila sozinho? Não. Nos actos solenes que não sejam colação de graus vai sempre no meio, ladeado à direita pelo Director da Faculdade de Letras e à esquerda pelo Director da Faculdade de Direito. Em dias de actos de colação quem vai no meio é o novo doutor, seja ele honoris causa ou não, tomando a mão direita o Reitor e a esquerda o Director da faculdade que outorga o grau.
Bem, ainda não falámos das autoridades civis e militares... O lugar dos altos dignitários civis, militares e religiosos é sempre atrás do Reitor, constituindo violação da praxe a tentativa de intrusão de convidados entre a Univ. e o Reitor. Aqui, a disposição dos convidados e altos dignitários é feita de acordo com as precedências de Estado, os usos e costumes e bom senso quanto baste.
Quem fecha o cortejo? Novamente invisíveis, os contínuos e o guarda-mor.
Não podem entrar outras deputações no cortejo? De acordo com os costumes praticados até inícios do século XX, entre os convidados e o guarda-mor podem incluir-se os dirigentes de topo de serviços universitários e estudantes representantes dos vários organismos culturais e desportivos.
Fonte: Coimbra. a Cidade Universitária e a sua Região. Lisboa: Livraria Bertrand, 1959, p. 44

sexta-feira, 11 de junho de 2010


Elogio do Cardeal Ratzinger, UNavarra, 1998
O apresentante ostenta insígnias com mistura do branco de Teologia e do vermelho de Direito


O Gran Canciller da Universidade de Navarra com três honoris causa, entre eles o então Cardeal Joseph Ratzinger (doutor pela Faculdade de Teologia, 2.02.1998)
Ratzinger opta por vestir a toga, mas poderia ter envergado hábito talar romano próprio dos cardeais, no que estaria plenamente autorizado pela antiga tradição ibérica e pela legislação académica espanhola.
O magno cancelário veste batina talar avivada, faixa de seda, capa talar preta, murça preta de veludo (reservada aos reitores), solidéu e grande colar. A cobertura de cabeça do cancelário é o barrete preto octavado, com borla de seda preta e franjas em ouro.
Em Portugal apenas duas universidades consagram a figura do cancelário. A Univ. de Coimbra, onde o Magno Cancelário é o próprio reitor, situação que desde 1834 origina hilariantes gafes protocolares que fazem lembrar as macarrónicas orações que se davam a fazer aos caloiros. Ele há vezes em que se diz "Exmo. Cancelário", ele há vezes que que se diz "Senhor cancelário", ele há vezes em que reitor vem primeiro e cancelário depois, dislate protocolar que em si mesmo fere de nulidade os actos solenes, pois o cancelário precede sempre a função e o título de reitor, sendo ele e unicamente ele que confere legitimidade e licença para a realização do acto. Apenas poderá substituir o Cancelário o chefe de estado, prerrogativa que estes inteligentemente costumam dispensar, realizando que na sua casa e nos actos solenes devem ser as autoridades académicas a presidir.
A outra instituição que tem cancelário é a Universidade Católica Portuguesa, aqui designado por Magno Chanceler, forma de dizer que replica a tradição espanhola e britânica. Em Coimbra, conforme se apontou, Cancelário é o próprio Reitor e Chanceler é o Director da Faculdade de Direito, sendo que no passado este último tinha o carrego de chancelar os diplomas solenes e ao tempo presente consta que pouco ou nada chancela.

Um licenciado em Filosofia e Letras, Madrid, ano de 1880
Toga talar preta, conforme o modelo tradicionalmente usado pelos advogados espanhóis, com a manga tufada, sem punhos ricos; murça simples, idêntica ao desenho consagrado para os doutores desde 1850; barrete facetado com meia borla de seda na cor da especialidade científica


Momento da imposição do barrete na laurea honoris causa em Filosofia atribuída pela Universidade de Ferrara a Florestano Vancini, 16 de Maio de 2008
Mais imagens:

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Espanha, inícios do século XX, universidade não identificada
Jovem clérigo doutorado em Teologia, com hábito talar romano e borla e capelo


Graduado em Sagrada Teologia
Universidade espanhola não identificada, inícios do século XX. O diplomado enverga hábito talar romano (capa e batina talares), murça de cetim branco, volta branca e barrete octavado preto encimado por borla de seda branca.
Não obstante as reformas levadas a cabo em 1850 e 1859, que vieram consagrar a toga judiciária nas universidades, os eclesiásticos detentores de graus académicos mantiveram o antigo costume do porte do hábito religioso. Melhor dito, na Univ. de Coimbra, nas universidades católicas de Roma e nas universidades espanholas os clérigos podem optar pelo uso do hábito talar romano e este é considerado para todos os efeitos traje académico. Apesar de no século XIX e primeiro quartel do século XX se ter tentado conferir idêntico estatuto aos uniformes militares, esta solução não chegou a colher legitimidade bastante. Em Coimbra, a situação é regulada pelos antigos estatutos, enquanto que em Espanha a matéria está tratada no Real Decreto 146/1930, de 10 de Janeiro.
O barrete exibido na fotografia é o autorizado desde 1859 para bacharéis e licenciados: oito faces forradas de preto e borla central comedida. Deve ser do tipo pompom, com cerca de 2cm de diâmetro, reservando-se a borla grande e as franjas ou láureas para os doutores. Um pouco mais de atenção aos pormenores revela que se trata do mesmo modelo usado pelos advogados espanhóis e pelos docentes da antiga Escola Médico-Cirúrgica do Porto.


Casaca civil adaptada a hábito doméstico de clérigos, variante anglo-saxónica
Modelo usado no século XIX e primeiro terço do século XX. Com insignificantes variantes (carcela dupla, panos dianteiros inteiriços) este mesmo modelo foi autorizado na Univ. de Coimbra como pequeno uniforme de porte diário em 1863. Abolido o uso quotodiano em 1910, viria a originar duas outras variantes: a) casaca para estudantes, dita "batina", que apesar de ser um traje unissexo no que toca às peças nucleares, só é envergado por escolares do sexo masculino; b) casaca para lentes, ostentando carcela integralmente cerrada, assim usada desde finais de 1915.
Desvantagens associadas ao modelo docente:
1-na sua origem e evolução é um conjunto indumentário próprio para contextos de trabalho, vida doméstica e situações de pequena gala, como tal inadequado as cerimónias solenes;
2-excessivamente simples e geometrizado, a configuração rectangular não é ergonómica nem contém potencial estético;
3-os tecidos empregados não são apropriados aos graus académicos;
4-após 1974 uma percentagem significativa do corpo docente optou por não impor nem usar insígnias. Neste caso, a singeleza e modéstida do hábito ficam mais expostas, não raro revelando a sua pobreza quando confrontado com trajes adoptados por instituições nacionais e estrangeiras congénes. A pertinência de uma reflexão interna sobre a reforma do hábito não é propriamente uma falsa questão;
5-excessivamente colado ao corpo (ombros, peito e ancas), tende a arrebitar sobre no peito e não se adapta a situações de aumento de peso ou gravidez, problema de há muito sabiamente resolvido pelos trajes talares tornados unissexo;
6-pode criar situações embaraçosas em ambientes de colação de graus honoris causa, sendo necessário descoser as costuras das costas ou flancos e encobrir o truque com a capa, esperando que o homenageado compreenda e desculpe os incómodos sofridos;
7-é excessivamente curto, conferindo ao conjunto capa/insígnias desagradável impacto visual;
8-não tem dignidade suficiente, seja em termos anatómicos, seja em termos de padrões texteis, para responder à importância e dignidade do cargo de reitor.

Prancha de apoio à confecção da grande casaca civil, modelo de finais do século XVII/século XVIII

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Hábito curto, hábito doméstico


O hábito curto ou privado na sua variante anglicana
Clérigos no paço episcopal de Montréal em 1874 (acervo do Musée McCord): a meia alta de seda é externamente protegida com polainas pretas de lã; em vez de colete civil, os clérigos anglicanos vestem por baixo da casaca uma sotaina de seda com abotoadura assertoada, mantendo assim a antiga tradição dos hábitos sobrepostos.


Figuração do hábito privado


Outra imagem do hábito doméstico avivado, próprio para cardeais romanos
A casaca civil curta, embainhada pelo joelho, emparceira com uma meia capa, elementos que não obstante as variantes modísticas vemos assinalados na indumentária religiosa europeia desde a década de 1660.


Fotografia do futuro Papa Leão XIII com hábito doméstico


O cardeal Quaglia com o hábito privado
A casaca é trazida desabotoada a partir do peito, permitindo exibir o colete e os calções. Eis uma atitude que no século XIX o regulamento disciplinar em vigor na UC positivava como falta de decoro e de gravidade, dando azo a advertência, detenção e aplicação de penalidades.


Cardeal com hábito doméstico
Inícios do século XIX, Itália, cardeal romano com o chamado hábito curto, hábito doméstico, hábito privado, hábito "de abate" ou sotanilla. Conjunto indumentário masculino composto por sapatos pretos de couro e fivela, meias vermelhas de seda fixadas com ligas, calções, casaca civil preta avivada a escarlate e colete preto avivado. Completa o conjunto um tabarro ou capote invernal com romeira e vivos, generosamente forrado, e um tricórnio de feltro.
Por muito estranho que possa parecer, é no hábito privado ou hábito curto que radica o actual hábito talar conimbricense, o qual se supõe erradamente ter origem clerical. Porém, o hábito curto, usado até ao primeiro quartel do século XX por membros das igrejas romana e anglicana, tinha origem civil fini-seiscentista e não foi nunca um traje de cerimónia. Quando muito terá sido de pequena gala, que não de grande gala.
Posto isto, dir-se-á que o único elemento textil de raiz clerical remanescente no hábito talar conimbricense civil é a capa, esta sim oriunda do século XVI e do chamado mantéu espanhol ou capa da Societas Iesu. Muita ampla, com colarinho raso e acentuadamente alto (4,5 a 5cm), os jesuitas dela fizeram uso continuado desde 1534. Será que já existiria anteriormente em Espanha, tendo sido apropriada pelos jesuítas? A ser assim, alguma pertinência assistirá ao popular designativo "mantéu espanhol". No caso concreto de Coimbra não é inteiramente pertinente chamar mantéu à capa talar herdada da Companhia de Jesus, pois que o mantéu à portuguesa era dotado de bandas dianteiras (que podiam ser bordadas) e cabeção, confundindo-se assim com o feitio do ferraiolo romano.