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sábado, 11 de fevereiro de 2012

Chirímias, charamela, charanga, bando

Grupo de gaiteiros na cerimónia de abertura do ano académico. Uma aposta criativa da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa, 23.11.2011, que revaloriza o património festivo e musical português, estabelece pontes com as festividades praticadas nalgumas universidades anglo-saxónicas e marca um importante momento na construção da identidade universitária portuguesa.

Chirímias, Acto solemne de apertura de curso, Universidad de Salamanca, http://campus.usal.es/~memoria0607/0607/imagenes/Apertura_Curso/pages/DSC_001.jpg.htm

"Política. O bando ministerial distribuindo o programa da função", caricatura de Rafaeal Bordalo Pinheiro publicada n'O António Maria n.º 2, de 19.6.1879. Figuração dos políticos mediáticos do momento.
O bando e pregão eram uma tradição medieval enraizada nos municípios de Portugal e do Brasil, que foi abolida nos câmaras municipais portuguesas em finais do século XIX mas que ainda se mantém em Espanha. Com bando musical e pregão se anunciavam publicamente nos municípios os principais atos legislativos, administrativos e judiciários e os programas das festividades. O pregão começava habitualmente na varanda de honra dos paços do concelho (anúncio, proclamação) e percorria as praças e ruas mais importantes. Era composto pelo alferes da bandeira, pelo pregoeiro e pelos músicos da charanga municipal. Pelas notícias de que disponho esta tradição apenas será praticada na cidade de Guimarães no contexto das festas académicas de S. Nicolau, conhecidas por Nicolinas. Eis aqui um excelente instrumento de revalorização de centros históricos, combinando património imobiliário, património imaterial oral, arquivos municipais, grupos de teatro e comunidade escolar numa lógica de utilização sustentável de recursos locais e atracção de públicos. Em muitas instituições, o património é apenas um peso morto e por vezes incómodo. Mas não tem que ser necessariamente assim.

"A procissão política. 12 de junho de 1879", caricatura de Rafael Bordalo Pinheiro, publicada n'O António Maria n.º 1, de 12.6.1879. Representação dos políticos mediáticos e da atividade partidária com os ingredientes comuns ao charivari popular. Na frente, charanga de S. Jorge.

Casaca da libré de charameleiro da charamela real, Lisboa, época de D. José I. Feitio da frente e aspeto do forro. Acervo do Museu Nacional dos Coches, Inv. n.º F 0031. A charamela real abria tradicionalmente os cortejos em que participavam os monarcas, os membros da casa real e os altos dignitários estrangeiros. Podia atuar em embarcações de gala. Na cerimónia de abertura anual do parlamento, os charameleiros não integravam o cortejo entre o paço real e S. Bento. Aguardavam o monarca no interior do parlamento e  iam na frente do cortejo que se organizava entre a porta principal e a entrada da câmara dos deputados. Com a transferência da corte para o Rio de Janeiro, D. João VI duplicou no Brasil a charamela, os bergantins e os antigos estilos da corte portuguesa, os quais se mantiveram no período do Império.

Casaca de charameleiro, época de D. José I, feito das costas. Lisboa, cervo do Museu Nacional dos Coches, Inv. n.º F 0031.

Calções que integravam a libré de gala dos charameleiros da charamela real na época de D. José I, Lisboa, acervo do Museu Nacional dos Coches, Inv. n.º F 0006. Pano de veludo vermelho cozido à mão, abertura dianteira de alçapão com botões, cós inferior e casas agaloadas.

Uma das trombetas da charamela real da época de D. José I, Lisboa, Museu Nacional dos Coches, Inv. n.º IM 0020. Os instrumentos eram habitualmente ornamentados com saias (percussão) e pendões bordados (sopro), como ainda hoje acontece com as charangas de gala em Espanha e com os trombeteiros da casa real inglesa.

Libré de gala da "charanga dos pretos" que tocava a pé na frente do cavalo que conduzia S. Jorge na procissão do Corpus Christi de Lisboa. Foto da procissão de 1907. O que sobreviveu destes fardamentos, arreios, o próprio S. Jorge, ficou no acervo do Museu Nacional dos Coches.

Charameleiros ou tubicines: a charamela em andamento na cabeça do préstito de abertura solene das aulas, pátio das escolas gerais, Univ. de Coimbra, Novembro de 1987. Interpretação do Canticorum Iubilo, em simultâneo com o tanger festivo do sino grande que para o efeito se fazia dobrar por dois "cabreiros" agarrados às cordas (o sino é tão pesado que só após 3 ou 4 puxões da corda é que ganha balanço e começa a virar). Os charameleiros costumavam levar uns maços com minipartituras com as peças do reportório, que fixavam com uma mola na parte superior do instrumento.

Charameleiros, Univ. de Coimbra, Nov. de 1987, momentos antecedentes do início da cerimónia de abertura solene. Fardão napoleónico em lã azul ferrete, cabeça descoberta, sapato ordinário

Regente da Charamela da Universidade de Coimbra, 1987. Enverga casaca preta com colete e calças compridas, veste de rigor adotada desde meados do século XIX nas grandes orquestras pelos maestros, músicos e divos solistas. Exterior da Biblioteca Joanina, aguardando a saída do cortejo académico na cerimónia de abertura solene das aulas, Novembro de 1987.
A charamela é um grupo musical de composição eclética e durabilidade efémera que acompanhou a maior parte das universidades medievais europeias até ao século XIX. A pé, a cavalo e em sala, atuava na receção a chefes de estado e altos dignitários, anunciava a cerimónia de véspera (bando e pregão), abria os cortejos, sinalizava os momentos solenes do calendário académico e simbolizava a presença do reitor. Em Coimbra, a Universidade persistiu em manter a charanga. Como se disse, não se trata de uma agremiação que tenha sede permanente na Universidade. Não há vestiário, nem sala de ensaios, nem armário de instrumentos, nem arquivo de partituras. Os músicos eram tradicionalmente recrutados nos municípios dos arredores de Coimbra (Montemor-o-Velho, por exemplo), juntavam-se na casa do regente, ensaiavam o reportório indicado pelo reitor ou pelo mestre de cerimónias e compareciam no local da cerimónia à hora combinada.
Houve dois momentos marcantes de interrupção de  atividade da charamela: aquando da Revolução de 5.10.1910, com a suspensão dos atos cerimolialísticos a formação só foi plenamente retomada em 1918, sob a batuta do regente do Orfeon Académico, padre Elias Luís de Aguiar; no rescaldo do Mai 68, entre ca. 1969-1980, período em que novamente a Universidade suspendeu as solenidades do calendário, incluindo colação de graus e abertura das aulas.
Existem inúmeros relatos de imprensa, crónicas e documentos de despesa da Universidade que fazem fé da contratação dos serviços de tocadores, da compra de instrumentos e do agendamento de presença em cerimónias. Há também na literatura produzida pelos memorialistas académicos uma propensão para referenciar a charamela como uma velharia ridícula, dispensável e desafinada. Enfim, uma imagem demasiado leviana do que eram as charamelas na cultura europeia e das funções sócio-culturais que eram chamadas a representar. Hoje, dir-se-ia que nessas imagens pululam um bocadinho de piada, um niquinho de ignorância e uns pozinhos de arrogância. No resto da Europa, que saibamos, apenas a Universidade de Salamanca aboliu e retomou as chirímias que nas grandes solenidades atravessam o patio das escolas maiores e conduzem os préstitos à sala de atos grandes. Formação semelhante é usada nos cortejos académicos da Universidade de Alcalà de Henares, que herdou o edifício da velha Alcalà/Complutense. No caso de Salamanca, destaco três peculiaridades face a Coimbra: 1) presença de pelo menos duas chirímias na formação salmantina, enquanto que em Coimbra não estão incluídas charamelas nos instrumentos de sopro; 2) em sala, as chirímias alternam com um grupo coral, situação que em Coimbra não ocorre; 3) em Coimbra, a charamela toca em sala sentada sobre um pequeno tablado de madeira, tendo na frente estantes metálicas com as partituras e o maestro de pé, atuando como uma orquestra de câmara. Em Salamanca, a charamela toca sempre de pé, no cortejo e na sala de atos.
Nos arredores de Coimbra permanecem vestígios da atuação das charangas e gaiteiros na frente das procissões e cortejos, cuja função é similiar à desempenhada pelas charamelas. No município de Montemor (Tentúgal, Pereira do Campo?), há notícia da presença destas formações nos cortejos dos reis magos.
Na década de 1980 a charamela atuava regularmente das cerimónias anuais de abertura solene das aulas (uns anos em Novembro, outros em Dezembro), nas imposições de insígnias doutorais e nos doutoramentos honoris causa. A formação era então constituída por músicos da banda militar de Coimbra que ensaiavam o reportório combinado e compareciam no pátio das Escolas no dia e hora em uniforme de gala. Estando presente o Presidente da República tocava-se na sala dos atos A Portuguesa, a anteceder o Hino Académico de Coimbra. Nos honoris causa, sendo convidado de honra chefe de estado estrangeiro, o hino nacional do país do homenageado era tocado antes do Hino Académico. Estou precisamente a lembrar-me dos honoris do rei D. Juan Carlos de Espanha, do presidente José Sarney, do Brasil, e do Secretário-Geral da ONU. A abrir os cortejos, o Canticorum Iubilo, de Haendel. Nos intervalos, obras solenes, e de cariz festivo e celebrativo. A encerrar os atos em sala, obrigatoriamente o Hino Académico de Coimbra, com música de José Cristiano de Medeiros, e não o Gaudeamus Igitur que entrou nas solenidades académicas portuguesas por via da Universidade de Lisboa durante o reitorado de Marcello Caetano.
Ouvir
-abertura de cortejo com formação espanhola de gaiteiros e inclusão de formação de gaiteiros da beira litoral no meio do cortejo, Desfile das confrarias no Capítulo da Confraria Nabos e Companhia, Carapelhos (2009), http://www.youtube.com/watch?v=qVW4GGN8;
-Cerimónia de investidura honoris causa de Germán Sánchez Ruipérez e Steplen Witakar na Universidade de Salamanca (2011), http://www.youtube.com/watch?v=uZIH7qIUz;
-Cerimónia de doutoramento honoris causa na Universidade de Coimbra (2007), http://www.youtube.com/watch?v=aXuqKUBx;
-utilização simultanea de orquestra+coro em sala, Cerimónia de Doutoramento honoris causa de Joseph Ratzinger em Teologia, Universidade de Navarra (2007), http://www.youtube.com/watch?v=UjGx3GUfk;
-Acto Solemne de Apertura del Curso de las universidades de Madrid 2011-2012, Alcalà de Henares, 7.9.2011, http://www.youtube.com/watch?v=2q6WDfnX4M.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Retrato de corpo inteiro do bispo de Bragança, D. José Alves Mariz
Fonte: O Occidente n.º 895, de 10.11.1903

O rei D. Carlos I entrega os troféus aos vencedores do torneio de ténis realizado no Sporting Club de Cascais
Repare-se no cenário natural, no aspeto das taças e na ausência de indumentária formal. Com efeito, o protocolo desportivo surge no século XIX, mais concretamente no mundo britânico, associado à prática do hipismo, das regatas (décadas 1830-1840), do ténis, do futebol (décadas de 1860-1870), do ciclismo (as "voltas", em voga na década de 1890), do pugilismo, da ginástica militar e sueca, a que rapidamente se juntam as corridas de automóveis (1.ª década do século XX). Outro evento desportivo que marca uma viragem nos gostos é a retoma dos jogos olímpicos modernos. As novas modalidades desportivas, inicialmente praticadas como divertimentos aristocráticos, começam a popularizar-se. Por arrastamento surgem as roupas desportivas, de corte prático e funcional, os emblemas de camisola (décadas de 1860-1870), as cores e distintivos dos clubes, os troféus (taças de grandes dimensões, medalhas) e as cerimónias de premiação.
Fonte: O Occidente n.º 894, de 30.10.1903

Aspeto do conclave dos cardeais romanos que em 4.8.1903 elegeu no Papa Pio X. Esmagador predomínio da batina romana avivada, também conhecida desde as décadas de 1860-1870 por abito piano. Os eleitores trabalham em mesinhas individuais, enquadradas por baldaquinos levantados (estes baldaquinos eram de subir e descer). Dignas de reparo algumas semelhanças com a forma de organização do trabalho e arranjo cénico dos espaços das casas de despacho de instituições luso-espanholas como irmandades, confrarias e tribunais superiores.
Fonte: O Occidente n.º 887, de 20.8.1903

Imposição do barrete cardinalício ao núncio apostólico André Ajutti (1903)

Insigniação do cardeal André Ajutti (1), em 14.7.1903

Insigniação do cardeal André Ajutti (2): relato da cerimónia
Fonte: O Occidente n.º 884, de 20.7.1903

Cerimónia de imposição do barrete cardinalíco na capela real ao núncio Ajutti em 14.7.1903 segundo os estilos convencionais do cerimonial religioso católico e monárquico-diplomático.
Fonte: O Occidente n.º 885, de 10.8.1903

Retrato jovem do Bispo da Diocese da Guarda D. Manuel Vieira de Matos, que fez a sua entrada solene na catedral a 4.6.1903. Enverga hábito coral de inverno com murça de arminhos. Viria a ser um dos prelados portugueses em destaque no conflito entre a República e a Igreja Católica.
Fonte: O Occidente n.º 883, de 10.7.1903

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Cultura académica: hábito talar da Universitat Freiburg, conforme gravura de 1903
Toga talar preta avivada de azul/blau: Medicina
Toga talar preta avivada de vermelho/rot: Direito/Ciências Jurídicas
Toga talar preta avivada de cor-de-laranja/orange: Ciências Naturais/Matemática
Toga talar preta avivada de lilás/violeta: Teologia
Toga talar preta avivada de verde/grun: Filosofia/Humanidades
Fonte: http://www.uniarch.univ-freiburg.de/

Cultura académica (1): o jovem teólogo e professor Joseph Ratzinger profere uma oração na Universidade de Muenster

Cultura académica (2): o jovem Joseph Ratzinger na Universidade de Muenster com hábito talar e gorra
Fonte: http://freeforumzone.leonard.it/

Variante britânica da abatina: o cónego Parkinson (1816-1895), doutor em Teologia por Cambridge (1851), docente no St. Bees College, com toga, capelo e gravata à francesa.
Fonte: http://www.stbees.org.uk/publications/college/

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Origens da abatina: traje civil de abade, abatina, traje de abate, abito corto: justaucorps inicialmente sem colarinho, com calções, meias altas, sapatos de fivela, colete, volta branca, solideu e tricórnio. Invisível a capa curta ou ferraioleto. Nalgumas gravuras da época avista-se o regalo. O bastão, adornado de cordão de glandes, muito usado por abades e bispos, sobreviveria como insígnia dos reitores das universidades de Espanha.
Fonte: gravura do século XVIII, http://www.lafoliedix-huitieme.eu/marchande-modes/topic308.html

Património académico: costas da abatina pormenorizada no post seguinte, feitio das costas (peça AZ 475 do acervo do Museu Nacional de Etnologia), disponível em http://www.matriznet.ipmuseus.pt/.
A sinalização de peças musealizadas do património vestimentário académico colocou em evidência a dispersão dos acervos por múltiplas entidades custodiais públicas, a flutuação e imprecisão dos usos de taxonomias predefinidas nem sempre apropriadas e, na ausência de um referencial de normalização, o papel supletivo conferido a diversas normas de inventariação em uso. Um dos principais problemas destas normas reside no estabelecimento de supercategorias fixas, oriundas da museografia técnica do período positivista, como "Artes plásticas", "Artes decorativas", "Arqueologia" e "Etnologia". As vulnerabilidades e contradições deste sistema classificatório foram detalhamente analisadas por  Ana Patrícia Soares Lapa Remelgado (Gestão integrada de coleções museológicas. Proposta aplicada aos museus da Câmara Municipal do Porto. Porto: FL/UP, 2008, dissertação de mestrado, pp. 29 a 90, em especial 83-90, disponível em http://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/9142). As normas referenciadas podem consultar-se em http://www.ipmuseus.pt/pt-PT/recursos/publicacoes/edicoes_online/pub_online_normas/ContentDetail.aspx.
O problema da dispersão dos acervos vestimentários nos vários museus públicos, causador de manifestos prejuízos em termos de produção de informação ao cidadão/utente, estudos especializados, visão de conjunto, projetos de restauro, dinamização de projetos, poderia ser facilmente resolvida mantendo nos museus regionais ou locais os acervos diretamente ligados à memória/identidade das comunidades e concentrando todos os outros na instituição central vocacionada para a gestão deste património.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Património académico: abatina/hábito talar unissexo da Univ. de Coimbra, vista de frente
Acervo do Museu Nacional de Etnologia, Lisboa, n.º de Inv. AZ 475, disponível em http://www.matriznet.ipmuseus.pt/. Discordância quanto à "supercategoria", sendo de substituir "etnologia" por indumentária profissional/alfaitaria artesanal. Acusando a arbitrariedade dos usos da taxononomia, noutros museus da rede pública portuguesa o campo multinível "supercategoria" vem designado por "arte", quando o objecto transversal continua a ser a indumentária. Necessidade de precisar com mais rigor a cronologia: século XX, e mais concretamente 1953, para a data em que o alfaiate conmimbricense Pinto de Figueiredo entregou o trabalho ao Prof. Jorge Dias. Quanto às dimensões, repete-se o que já foi escrito para a capa que integra este conjunto: na abatina tiram-se as medidas de altura(s) na frente (da base do colarinho à bainha inferior, da base posterior do colarinho ao rebordo da bainha nas costas, lateralmente, do rebordo inferior do sovaco à base da bainha); mede-se a cintura; mede-se o peito, tendo sempre em consideração no tirar das medidas torax feminino e torax masculino e previsão de aumento de peso; mede-se o perímetro do pescoço para as medidas do colarinho; mede-se e talha-se em separado o colarinho (altura, comprimento). Medem-se as mangas tendo em conta comprimento máximo, perímetro de boca e perímetro da cava. Se a manga é de balão ou afunilada, mensuram-se separadamente as diversas partes constitutivas.
Não se sufraga a "descrição" nem o vocabulário empregue. Trata-se da abatina, batina curta, abito privato, habit de la maison, traje de abate, clerical frock coat, tornada moda nas cortes de Inglaterra e da França por volta de 1660. Nunca foi traje de gala embora tenha sido usada por clérigos e académicos em universidades, academias científico-lietrárias, paços episcopais e reais, bem como na corte papal. São conhecidas três variantes deste traje que esteve em uso até inícios do século XX nos países católicos e anglicanos:

-modelo europeu composto por abatina de seda fechada na frente, colete abotoado até ao pescoço, capa curta (ferraioleto), calções, meias altas, sapatos de fivela e chapéu de época em feltro (tricórnio, capello romano). Este modelo podia ser avivado no forro, botões, orlas e caseado na cor da dignidade esclesiástica do portador (vermelho para cardeais, rosa seco para arcebispos e bispos, amarante para monsenhores e cónegos);
-modelo anglo-saxónico com a abatina de carcela aberta, sotaina assertoada, calções, meias altas, sapatos de fivela, sem capa, predominando o tricórnio de feltro (séc. XVIII) e a cartola com a aba ligada à copa por presilhas de seda (sécs. XIX-XX);
-modelo Universidade de Coimbra, com a abatina de carcela fechada e capa talar.

A abatina chegou à corte portuguesa na época de D. Pedro II e rapidamente se difundiu entre o clero urbano. Ribeiro Sanches, estudante da Universidade de Coimbra por alturas de 1716-1718, diz que a viu chegar de Lisboa às lojas de vestuário do largo da Portagem, conjuntamente com perfumes, sinaizinhos postiços, cabeleiras, bengalinhas e meias finas. Sensivelmente na mesma conjuntura o dicionarista Rafael Bluteau descreve as caraterísticas da abatina, ficando muito clara a diferença face à loba de dois corpos, à sotaina ordinária e à beca talar ou garnacha. A abatina ganha adeptos entre os alunos e professores da Universidade de Coimbra sem que chegue a haver um ato institucional de aprovação do modelo ou um edital onde se diga que é aceite em pé de igualdade com a veste histórica consagrada nos estatutos. Antes dos estudantes e docentes progressistas da Universidade de Coimbra exaltarem a abatina, o que só acontece entre o primeiro liberalismo constitucional e a regeneração, uma outra instituição portuguesa de ensino e formação consagrou oficialmente a abatina nos seus estatutos como um dos dois trajes corporativos dos seus alunos. Refiro-me ao Real Colégio dos Nobres, com sede em Lisboa, criado pela Carta de Lei de 7.3.1761 e extinto pelo Decreto de 4.1.1837. Solenemente aberto em 19.3.1766, prescreviam os estatutos de 7.3.1761 no Título IV dois trajes institucionais para uso interno e externo:

1) para uso dos colegiais e reitores nos corredores, salões, salas de aula, laboratórios, refeitório, a garnacha preta. Era a beca de dois corpos, tradicionalmente usada pelos juizes letrados portugueses (nunca se associou esta experiência da beca do Colégio dos Nobres à tradição vestimentária judiciária instituída na década de 1850 pelas escolas médico-cirúrgicas de Lisboa e do Porto);
2) a abatina com capa curta ou comprida para os colegiais filhos segundos e terceiros da fidalguia (os primogénitos podiam sair em grande casaca ou habit de cour);
3) nas aulas práticas de ginástica, esgrima e equitação a garnacha era substituída por vestuário funcional.

A abatina identificada na ficha de inventário é de confecção inteiramente artesanal. Veste constituída por dois panos dianteiros inteiriços, unidos superiormente a colarinho, mangas e costas por meio de costuras de máquina. Integralmente forrada de cetim preto, exceto no pano das mangas que é em branco listado. Apresenta carcela frontal fingida, com sistema de fecho à base de cinco casas e cinco botões de massa. Dois bolsos metidos nas ancas, com fundilhos de pano e portinholas retangulares singelas. Bolsinho inserido sobre o peito esquerdo, sem portinhola. Duas mangas tubulares unidas às cavas dos ombros, estreitando ligeiramente na direção dos punhos, sem canhão, com carcela de três botões de massa na linha exterior do pulso. Colarinho raso, fechando no decote com colchete metálico. Parte superior das costas talhada em dois panos cortados e costurados na linha da cintura. Cintura cintada. Parte inferior posterior formada por duas abas cindidas a meio por racha (nalguns casos podia fixar com botõezinhos) e duas pregas ladeantes encimadas por botãozinho de massa. Bolsos interiores metidos no forro conforme gosto do cliente. Nos modelos antigos, era comum este tipo de vestes profissionais ostentarem não a etiqueta do alfaiate mas o nome do proprietário bordado em linha de cor. Era prática comum nas instituições que tinham vestiário como seminários, colégios, universidades e tribunais. Embainhamento inferior por baixo da linha do joelho.
Confeccionada com grande aprumo técnico, não se trata de uma veste de gala, conforme atestam o pano de lã, os vulgares botões de massa, a ausência de carcela ornamental e a inexistência de orlas no colarinho e bainhas. Corte geométrico acentuado, acusando influência do "rational dress" e da uniformologia militar campeante entre a segunda metade do século XIX e a Grande Guerra, com prejuízo da harmonização anatómica e do impato estético.
Objetos associados: no Museu Bernardino Machado, sito em VNFamalicão, existe uma abatina de seda confecionada no século XIX que pertenceu a Bernardino Machado.