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sábado, 24 de julho de 2010

Como se forma em Direito um bacharel




"Como se forma em Direito um bacharel coimbrão", foto-reportagem do estudante João Maria de Magalhães Colaço, na I. P., n.º 302, de 4 de Dezembro de 1911
A irritante petulância literária do autor não obscurece por inteiro algumas frases portadoras de interesse informativo. A maior parte das fotografias é detentora de interesse. As fotografias revelam em primeira mão que a capa e batina, cujo porte diário fora abolido em Outubro de 1910, continuava a ser usada em elevada percentagem pelos estudantes do sexo masculino. A Revolução trouxera algumas novidades, desde logo, a instabilidade cromática associada a actos de transgressão dos códigos vestimentários, a casaca definitivamente aberta, bandeada de cetim a imitar os burgueses endinheirados e bem postos na vida e nos negócios, a capa enrolada no colarinho e transportada heterodoxamente no ombro direito, no ombro esquerdo ou no braço esquerdo.
As fotos não são todas capatadas em finais de 1911. A que retrata a trupe é copiada de um postal ilustrado em circulação desde ca. 1905. O que estas fotografias demonstram é que os estudantes da UC continuaram a praticar as tradições e rituais sem que a Revolução de 1910 os tenha beliscado.
O maior interesse deste escrito reside na informação prestada sobre a pasta académica de couro. De acordo com o articulista, a pasta de dois fólios encontrava-se generalizada entre os alunos do quarto e do quinto anos. Os primeiros enleando-lhe uma fita estreita na dobra, os segundos fixando-lhe vistosos jogos de fitas de seda canelada e moiré.
Não se sabe exactamente em que data e em que faculdade começou a pasta de couro/cabedal a ser usada. Na primeira metade da década de 1890 há fotografias que ainda mostram os estudantes do quarto ano com os livros e folhas de apontamentos atados em cruz com o grelo ou fita de algodão. Entre os quintanistas, o que estava generalizado e era considerado chic era a pasta de luxo. A pasta de luxo não era de couro, porque o couro era tido por vulgar, não era preta, porque a pompa associada às vivências de então requeria que fosse inteiramente na cor do curso, e não era lisa, pois que sendo de luxo exibia bordados a fio de seda e missangas, pinturas sobre tecido ou adornos em prata lavrada.
O acervo fotográfico do Museu Académico de Coimbra poderá proporcionar surpresas nesta matéria. Sem provas seguras, diria que a pasta de couro terá surgido não na Faculdade de Direito, como parece pretender Magalhães Colaço, mas antes na Faculdade de Matemática ou na de Filosofia Natural. Há uma fotografia de uma turma do Doutor Bernardino Machado, dos anos de 1896-1897, onde um aluno exibe a tipologia de pasta de couro que se generalizou entre os estudantes da UC na primeira década do século XX. Indo um pouco mais longe, não terão sido os estudantes militares que frequentavam Matemática e Filosofia Natural (=Ciências) na década de 1890 a introduzir a pasta de couro na UC?
O modelo a que nos referimos estava bastante generalizado no século XIX entre militares, arqueólogos, oceanólogos e cientistas que faziam regularmente trabalho científico em contacto com a natureza e se confessavam adeptos do positivismo e do método positivista. Em França, os militares em campanha usavam a "porte-feuille", pasta de couro preta ou acastanhada, como resguardo de folhas de apontamentos, bloco de notas e agenda. Tudo leva a crer que é daqui que vem a pasta estudantil, da organização militar e científica dos projectos, mantendo até ao presente uma ligação à função de origem que consiste em nunca trazer a pasta vazia. Se não houver nada para a encher, então que se lhe meta ao menos uma folha, dizem os entendidos no assunto. Quando se generalizou a pasta, convém lembrá-lo, ainda não havia manuais escolares de uso regular, pelo que só era preciso transportar folhas de papel para escrita e folhas de litografia com impressão das lições mais recentes.
Antes de 1910 a pasta estudantil aparece documentada em alunos da Escola Médico-Cirúrgica do Porto. Para aprofundarmos mais a radicação da pasta entre os académicos matriculados em estabelecimentos da cidade do Porto, valeria a pena estudar o acervo do Museu da Medicina da UP. Entre 1920 e 1944 a pasta foi alvo de grande atenção na UP, graças ao programa anual conhecido por Festa da Pasta. Terão os estudantes de Coimbra iniciado o uso da pasta de couro, com ulterior generalização noutros estabelecimentos de ensino, como sucedeu após 1910 e depois de 1974? Ou terá a pasta de couro aparecido nas escolas politécnicas do Porto fini-oitocentista? Um coisa se pode concluir, a pasta de couro tem aproximadamente cem anos de existência nos meios académicos portugueses. No início era em couro e cabedal (qual couro sintético!), em preto, castanho e ocre, trazendo por dentro um generoso bolso que depois se veio a atrofiar, de tal arte que só dá para porta-moedas.
Prática e funcional, a pasta de couro fez a democratização do ensino superior e atravessou os anos da massificação. Ao contrário da pasta de luxo, a de couro podia dobrar-se e meter-se no bolso, fazendo todo o garbo de muito académico de antes de 1974.


Alunos da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa num intervalo de aulas, 1911

Pátio da nova Escola Médica, inaugurada em 1906. A revista I. P, n.º 294, de 9 de Outubro de 1911, dedicou uma reportagem à vida escolar na Escola Médica de Lisboa. Das sete fotografias relativas aos estudantes em aulas teóricas, intervalos e prática laboratorial, o único traje não civil que se avista é a bata branca.

A situação retratada leva-nos a concluir que a presença da capa e batina nesta Escola era bastante rarefeita, estando mais directamente correlacionada com os membros da Tuna Académica de Lisboa. A confirmar esta ilação, a fotografia do curso médico de 1905, onde avultam duas formandas, não regista qualquer capa e batina, como não regista crachás de curso nem pastas com fitas (cf. Maria Filomena Mónica - A queda da monarquia. Portugal na viragem do século. Lisboa: Dom Quixote, 1987, pp. 234-235).

Não é porém esta a imagem da Faculdade de Medicina da UL veiculada pelo mediático filme A Canção de Lisboa, do arquitecto Cottineli Telmo (1933), película que procura replicar o modus vivendi que se praticava com outro nível de radicação etnográfica em Coimbra.

Algum uso da capa e batina se nota na UL ao longo da Primeira República, mas associado aos estudantes da Faculdade de Direito pelos finais da Grande Guerra e década de 1920 adentro. Pelo menos é o que parecem mostrar fotografias do curso de Marcello Caetano, quando a casa era no Campo de Santana (Marcello Caetano - Fotobiografias do século XX. Lisboa: Círculo de Leitores, 2002, pp. 20, 27, 28). Aliás é neste núcleo de estudantes católicos e de adeptos do Integralismo Lusitano que arranca em Portugal a Missa de Consagração dos Quintanistas, mais conhecida por "benção das pastas" cuja origem se tem por erradamente conimbricense. Os dados disponíveis são de molde a não permitir equívocos. A benção das pastas arranca na UL em 1926, enquanto a Consagração dos Quintanistas Católicos da UC ao Sagrado Coração de Jesus tem a sua primeira edição em Maio de 1932. Por seu turno, os estudantes da UP realizam a sua primeira benção de pastas em 1944, na fase de transição da antiga Festa da Pasta para o modelo Queima das Fitas.

O uso da capa e batina entre os estudantes da UL durante a República e o regime salazarista não está convenientemente estudado. Por exemplo, não se sabe se as alunas da UL chegaram a usar o conjunto tailleur/capa inventado em 1915 pelas suas colegas dos liceus da capital.

Destoando do registo empático assumido no filme a Canção de Lisboa, a Mocidade Portuguesa começou por se mostar muito desconfiada em relação à capa e batina e às vivências estudantis. A título de exemplo, o Jornal da Mocidade Portuguesa, do n.º 1, de 1/12/1937 ao n.º 7, de 2/03/1938 depreciou o assunto através da banda desenhada morigeratória "As aventuras do caspa e batina".

Ao contrário da Cidade Universitária de Coimbra, onde a representação artística da capa e batina é forte, na Cidade Universitária de Lisboa a capa e batina é exteriormente imperceptível. Imperceptível porque não fazia parte da identidade estudantil ou impercetível porque os estudantes não foram sequer motivo de representação artística? Vejamos, a fachada da Aula Magna, nas traseiras da reitoria, está generosamente guarnecida de esgrafitados onde Almada Negreiros evoca a mitologia clássica e representa bandos de estudantes em diversas actividades. Nem um veste capa e batina, ou como se diria em Coimbra, estão todos "à futrica".

Embora não pareça, este é um assunto do maior interesse para as Ciências da Educação, para a sociologia da educação e estudo dos comportamentos juvenis. Que continuidades e rupturas entre um uso anterior a 1974 marcadamente rarefeito e masculinizado e os uso massificados que nas décadas de 1980-1990 foi dado avistar em Lisboa?

A abertura da Escola de Guerra em 1911



Cerimónia de abertura do ano na Escola de Guerra
Por todo o Ocidente e nos domínios coloniais, eram comuns nesta época as cerimónias de abertura solene das universidades, escolas politécnicas, liceus, escolas militares, parlamentos e tribunais. Nos países católicos e anglicanos era costume a cerimónia parlamentar, universitária ou judiciária ser antecedida por uma cerimónia religiosa. Em França, a solenidade de abertura dos tribunais públicos passava obrigatoriamente pela Messe Rouge, isto é, missa católica dos magistrados com toga de grande gala vermelha. Em Portugal, a abertura anual da Universidade de Coimbra e do Parlamento incluíam prévia Missa do Divino Espírito Santo, a primeira na Real Capela de São Miguel do Paço das Escolas, a segunda na Sé catedral de Lisboa.
O regime republicano respeitou o costume das aberturas solenes. Estas faziam-se e continuaram a realizar-se na Escola do Exército com presença dos membros do governo. As universidades de Lisboa e do Porto começaram logo em 1911 a fazer as suas cerimónias inaugurais de ano lectivo. Coimbra demorou e hesitou, primeiro com uma retoma tímida em 1912 e a partir de 1918 com regularidade anual. A Academia das Ciências também recorreu a este tipo de cerimónias, convidando o Chefe de Estado e membros do governo.
A cerimónia relatada na reportagem teve lugar em 3 de Dezembro de 1911, sendo director o General Morais Sarmento. De anotar o cenário a disposição da mesa de honra e a esfinge da República. Os momentos mais importantes do programa académico-militar foram:
-recepção aos convidados à porta do edifício;
-constituição da mesa de honra com o Chefe de Estado Manuel de Arriaga, o Ministro da Guerra e o Director da Escola (O PR, sentado no meio, preside ao acto; o Ministro da tutela toma a direita; o Director do estabelecimento sentado à esquerda);
-oração de sapiência proferida por Mendes Leal;
-distribuição de diplomas de mérito aos alunos distintos;
-visita do Chefe de Estado às instalações, com guarda de honra pelos alunos;
-discurso de boas vindas do Director e do corpo docente aos novos alunos no salão nobre;
-parada dos alunos com armas ao som de banda instrumental.
Fonte: I. P., n.º 303, de 11 de Novembro de 1911

Indumentária dos médicos e enfermeiros da Cruz Vermelha portuguesa em 1910
Traje civil mascilino com braçadeira e boné de pala com aplicação do emblema; bata branca, corté evasé, embainhada pela meia perna, colarinho com gola de orelhinhas e abotoadura de trespasse. Trabalho de campo na sede do jornal O Século, Rossio, Lisboa.
Fonte: I. P., n.º 244, de 24 de Outubro de 1910


Gaiteiro do Bombarral
Fato masculino domingueiro em tecido de lã, de três peças, constituído por calças compridas de boca larga, a cair sobre o peito do sapato como se fora falsa polaina, braguilha dianteira de carcela, colete e jaqueta. Camisa branca de linho. Chapeirão preto de feltro, corresponde ao modelo de cobertura de cabeça usado entre o século XVIII e a primeira metade do século XIX na Beira Litoral e na Estremadura. O modelo oitocentista tinha quatro presilhas de lã e oito pompons, quatro na aba e outros quatro no rebordo da copa. Sapatos de couro.
Tocador de gaita-de-foles do Bombarral que em Novembro de 1910 foi a Lisboa integrado numa manifestação de júbilo e agradecimento aos membros do governo provisório.
Fonte: I. P., n.º 249, de 28 de Novembro de 1910

quinta-feira, 22 de julho de 2010


Grandes oficiais suiços com balandraus anunciam a presença do Governador do Cantão de Glarus
Saída do governador, antecedido pelas respectivas insígnias, a caminho de uma assembleia de referendo.
O articulista da I. P., n.º 275, de Maio de 1911, louva os referendos suiços como sendo a essencia do republicanismo ocidental. A documentação fotográfica relativa à prática republicana suiça informa sobre um saudável convívio com trajes rituais e insígnias de poder, ao contrário do modelo abolicionista francês que não esconde o seu desconforto nestas matérias.


Saída de uma brigada de distribuição de cartas (1911)
De reparar que o primeiro carteiro da frente sobraça uma pasta de couro com aba e fecho à base de correia e fivela. As pastas de couro e cabedal, de um e dois fólios, estavam na moda, sendo consideradas muito práticas para transporte de correio, serviços diplomáticos, expedições arqueológicas, expedições oceanográficas, guarda-documentos militares, arrumação de folhas de apontamentos de engenheiros e de agendas de notas de botânicos.
Foi neste contexto que pela segunda metade da década de 1890 se começou a generalizar na Univ. de Coimbra a pasta de couro/ou cabedal em preto, castanho e ocre, mais tarde baptizada "pasta da praxe", que antes de 1910 também aparece documentada em alunos da Médico-Cirúrgica do Porto e em alunos da Escola Agrária de Coimbra.


Carteiros junto do posto dos correios do Terreiro do Paço, Lisboa, com sacos de couro e uniforme constituído por sapatos de couro, calças compridas, colete, paletot e kepi.
As empresas capitalistas do liberalismo clássico afirmaram a sua identidade corporativa junto das populações através do uso sistemático de uniformes de inspiração militar. Não bastava dizer que se era sério, honesto e digno de confiança. Era necessário mostrá-lo através de um "exército" ou de uma "legião" de empregados convenientemente fardados e dispostos a seduzir e fidelizar clientes. Se os exércitos inspiravam confiança, capacidade de liderança, disciplina, sentido de organização, então os agentes comerciais e industriais não tinham mais que imitar a sua imagem de sucesso. Um pouco por todo o lado, nas ditaduras e nas democracias, nos hoteis, combóios, transatlânticos a vapor, redes de carros eléctricos, colégios de ensino privado, estancias termais, casinos, prisões, casas de correcção de menores, asilos de mendicidade, estações de correio, bandas filarmónicas, o uniforme paramilitar de linhas simplificadas triunfa e identifica os organismos prestadores de serviços e as instituições vocacionadas para a exploração dos mercados.
Fonte: I. P., n.º 271, de 1 de Maio de 1911


O novo uniforme dos guardas da mata de Sintra, estreado em 16 de Maio de 1911
Conjunto masculino composto por chapéu rígido de feltro, colete de carcela direita, jaqueta, calção, polainas, botas e cajado, replicado a partir do traje campesino austríaco.
Fonte: I. P., n.º 275, de 29 de Maio de 1911

O Orpheon em Paris



O Orpheon em Paris, 1911
Fonte: I. P., n.º 270, de 24 de Abril de 1911

A visita a Paris do Orpheon Académico




Fotografia promocional do Orfeon tirada no Jardim Botânico


A capa e batina reformada após 1910, na sua versão masculina, continuando em uso nas aulas e nos organismos académicos os uniformes militares


Reportagem da digressão do Orfeon Académico a Paris em 1911
Fonte: I. P., n.º 264, de 13 de Março de 1911


O Enterro da Farpa
Foto-reportagem da I. P. n.º 263, de 6 de Março de 1911, com o título "O Carnaval dos Estudantes do Porto. O Enterro da Farpa". Parece ser uma festividade nascida na Academia Politécnica, de tipo charavari, cujo programa era muito semelhante aos dos centenários cívicos da segunda metade de oitocentos e Centenário da Sebenta realizado pelos estudantes de Coimbra em 1899.
O programa apresentava uma sequência de números e quadros burlescos, entre eles a simulação da chegada do Rei D. Miguel e sua comitiva à Estação de S. Bento, o projecto da nova bandeira republicana, Minerva, a Moda 1911, a revista à Ala dos Desesperados e o transporte do ataúde com o cadáver da Farpa.


Festejos carnavalescos promovidos pela Escola Politécnica de Lisboa, Inverno de 1911
O n.º 263, da revista I. P. de 6 de Março de 1911 editou uma foto-reportagem intitulada "A festa dos estudantes da Escola Polythechnica" com nove fotografias. A reportagem não se limita a registar a mascarada, dando conta de viaturas alegóricas, figurantes, lançamento de foguetes, toque de tambores, travestis em parada, realização de um bazar e exibição de uma peça de teatro burlesco.
A promoção de festividades estudantis foi iniciada em Lisboa pelos cursos da Escola Médico-Cirúrgica, na década de 1890. Directamente inspiradas nas récitas de quintanistas levadas à cena em Coimbra e nas latadas, as festividades consistiam no ensaio e exibição de uma récita de fim de curso no pátio do Hospital de São José e na realização de uma parada em trajes carnavalescos. Distinguiu-se na realização destas festividades o estudante Ilídio Amado que estive directamente ligado à fundação da Tuna Académica de Lisboa e ao uso da capa e batina.
Na transição da década de 1890 para os anos inciais do século XX, os cursos da Politécnica tentaram concorrer com os da Médico-Cirúrgica, ambiente competitivo que originou o arranque de programas festivos estruturado em feira de barraquinhas, récita grotesca e corso de viaturas e mascarados. Quer a Médico-Cirúrgica, quer a Politécnica se inspiraram nos costumes académicos de Coimbra, a primeira afirmando a sua identidade visual com recurso à capa e batina, a segunda mantendo-se apegada ao uniforme militar.
À data da publicação das reportagens de 1911, embora os estudantes de Coimbra gostassem de pensar que eram os únicos a promover festividades anuais, a informação da época testemunha uma realidade bastante mais ampla:
-festividades na Médico-Cirúrgica e na Politécnica do Porto;
-festividades na Médico-Cirúrgica e na Politécnica de Lisboa;
-festividades em alguns liceus portugueses como Braga (Enterro da Gata) e Guimarães (Nicolinas ou o São Nicolau dos Estudantes);
-festividades em universidades da Suiça, França, Bélgiça, Suécia, Áustria e Alemanha, Grã-Bretanha e EUA, com bailes de gala, bailes de carnaval, paradas públicas e regatas.
A presença de viaturas motorizadas não esconde a permanência da estrutura das festividades arcaicas europeias ou charivaris de Carnaval e Quaresma, com cortejos burlescos, inversão momentânea da ordem, libações báquicas, julgamentos de alegorias e bonecos, pregação de sermões, leitura de testamentos, enterramentos, serrações e queimas. No caso de Coimbra queimam-se as fitas e enterram-se as cinzas, na Politécnica do Porto uma irmandade transporta um caixão com a Farpa, no Liceu de Braga os estudantes levam a enterrar a gata ou raposa dos chumbos.
Festividades estudantis ou festividades tradicionais populares apropriadas e adaptadas pelos estudantes? Se pudessemos viajar ao Portugal provincial de entre 1890-1910 no período de entre Carnaval e Páscoa não teríamos a menor hesitação em afirmar que aquilo que os estudantes estavam a fazer nas cidades era a mesma coisa que as comunidades tradicionais faziam nas aldeias, vilas e bairros das cidades com a designação de Queima do Judas, Serração da Velha, Julgamento do Bacalhau, Latadas de Noivos, Cornetadas ou Chocalhadas. Quando é que a "queima das fitas" e outras queimas deixaram de parecer populares e passaram a ser "genuinamente" académicas? A resposta é simples, à medida que as práticas cíclicas comunitárias foram caindo em desuso.

Alunas do ensino primário
Professora com vestido e avental de alças. Alunas com blusinha, saia, aventalinho e chapéu de palha. Manifestação cívica em Lisboa, 1911. O avental também aparece na mesma época em estabelecimentos de ensino particular brasileiros, como foi o caso do Colégio de Nossa Senhora do Sion, São Paulo.
A fotografia regista alunas das escolas primárias de Lisboa que estiveram presentes na Festa da Árvore, Avenida da Liberdade, em 5 de Março de 1911. A árvore plantada era uma "formosa laranjeira".
Fonte: I. P., n.º 265, de 20 de Março de 1911


Alunos das escolas primárias de Carnide e do Vintém Preventivo
Fotografia captada por J. Benoliel em 12 de Fevereiro de 1911, durante as festas promovidas pela Cantina Escolar Santa Isabel, em Lisboa.
Confirmando a moda ocidental e o processo de laicização do ensino, os alunos das escolas públicas e privadas citadinas são vestidos como mini-adultos com fardamento de inspiração militar. O fato de marujo é dos mais apreciados em Portugal e no Brasil no período áureo da Belle Époque, o que prova que que tantos os monárquicos como os republicanos concordavam nesta matéria. Blusa e calça para os meninos, blusa e saia para as meninas, assim documentam esta fotografia e outras que Furio Lonza sinalizou na obra História do uniforme escolar no Brasil, 2005, a páginas 48-56.
Convenientemente calçadas, penteadas e aprumadas nos seus uniformes, as crianças do ensino primário pareciam soldadinhos de chumbo instruídos nos valores do asseio, ordem e disciplina, em conformidade com os ideais republicanos de regeneração nacional.
Fonte: I. P. n.º 261, de 20 de Fevereiro de 1911, p. 248.


O Doutor Bernardino Machado com os seus alunos numa aula prática de Antropologia Física na Faculdade de Filosofia Natural no decurso do ano lectivo de 1896-1897, Univ. de Coimbra. Entre os alunos que procedem à mensuração de cranios avulta o rosto do futuro docente, político, militar e Presidente da República Sidónio Pais.
Documento relevante para o estudo do hábito talar. Regista simultaneamente as versões docente e discente em uso na década de 1890. Confirma a presença do uniforme militar, situação legitimada pela legislação promulgada em 1839. As pastas de luxo dos quintanistas fazem fé da presença de fitas de seda claras (azul celeste e branco, de Matemática) e claras e escuras (azul celeste, branco e azul escuro, sendo as últimas de Filosofia Natural ou Ciências Naturais).
Desde a década de 1850 que se ouviam na Univ. de Coimbra vozes descontentes com a obrigatoriedade da capa e batina em aulas práticas de Medicina, Matemática, Botânica e Antropologia Física, por se considerar que o hábito atrapalhava mais do que facilitava o aprendizado.
Fontes: Fotobiografia de Bernardino Machado. VNF: Edição da CMVNF, 2001; Museu Bernardino Machado. Exposição Permanente. VNF: Museu Bernardino Machado, 2002; foto-reportagem "O Ministro dos Negócios Estrangeiros da República". In I. P. de 3.01.1911, pp. 21-24, de onde foi estraída a imagem editada.

quarta-feira, 21 de julho de 2010


Plano central do Campus da University of Virginia (1817 e ss.)


Esquema de implantação dos edifícios da Praça do Capitólio, Roma
Projecto inicial de Miguel Ângelo, desenvolvido entre 1536-1546
Fonte: gravura sobre cobre de Étienne Dupérac


Peristilo do Palazzo del Rettorato, Roma


Plano de Nancy com vista da Praça Estanislau. O autor deste projecto será Emmanuel Here de Corny
Fonte: gravura do Archive Dép. Murthe-et-Moselle

Cidade Universitária de Roma
Projecto de Marcello Piacentini, 1932-1935, exerceu irreprimível fascínio sobre os arquitectos de Portugal e Brasil. Inspirou fortemente o projecto da Cidade Universitária de Coimbra e o projecto não realizado da Cidade Universitária de São Paulo. O autor da Cidade Universitária de Lisboa, Pardal Monteiro, visitou este campus em 1937.

Sobre a Cidade Universitária de Lisboa

A Cidade Universitária de Lisboa foi inaugurada em 1960 pela equipa do Reitor Marcello Caetano, conquanto o pavilhão da Reitoria só tenha ficado pronto em Outubro de 1961.
Embora não estudado de modo a evidenciar a plenitude das suas linhas de força, hesitações e virtualidades, o projecto da Cidade Universitária de Lisboa configura uma proposta pensada pelas elites universitárias portuguesas para a instalação dos poderes-saberes no tecido urbano da capital.
As cidades universitárias de Coimbra e de Lisboa são os únicos grandes projectos de obras públicas realizados pelo Estado na primeira metade do século XX em Portugal, em cenário de ditadura. Dos dois referenciados, o projecto conimbricense é o que mais se aproxima do ideal fascista, propondo infra-estruturas e cenários directamente ancorados nos conceitos da arquitectura monumental totalitária.
Solução a contento das elites e para as elites que ocupavam a cidade, o projecto de Coimbra escondeu mal efeitos perniciosos: a) a prepotência do estado autoritário, envasada em actos discricionários de expropriação utilizados como instrumentos de opressão burocrática; b) a extradição forçada dos moradores da cidade alta para bairros económicos periféricos; c) a imposição de altimetrias, volumetrias e soluções técnicas de ocupação em ostensiva violentação do relevo natural; d) a demolição forçada de património edificado pré-existente, sem concomitante plano de salvaguarda de cantarias, ferros forjados artísticos e azulejaria; e) a falta de visão quanto à previsibilidade de crescimento da procura do ensino superior, com a consequente sobrelotação dos espaços; f) a consagração de uma estética monumentalista, colossalista e sobre-humana que evidencia bem a distância do romanismo face à escala humanizada da arquitectura greco-ateniense; g) a plena confirmação de que os regimes autoritários demoliam quando e como lhes pareceu oportuno, em nome da “razão de estado”, contrariando os seus próprios princípios propagandísticos de ancoragem no respeito pelas tradições e costumes. O caso do esventramento de Coimbra fica a par da submersão da aldeia de Vilarinho da Furna, da destruição de Roma por Mussolini e do arrasamento de Bucareste por Nicolae Ceausescu.
O que está, está, mas porque estamos a falar dos intelectuais nas suas relações com o poder político, oferece-se dizer que não teria que ser forçosamente assim. A construção da Barragem de Assuão desencadeou uma campanha internacional, sob a égide da Unesco, que conduziu à transferência e salvaguarda dos complexos religioso-arqueológicos de Abul Simbel (1964-1968). As Grutas de Lascaux, descobertas em 1940, foram encerradas em 1963 aos turistas por razões de preservação das pinturas rupestres, medida que esteve na origem da construção da réplica Lascaux II, realizada entre 1972-1983. As escadarias monumentais da acrópole de Coimbra fazem pensar porque motivos terão sido ignoradas as soluções amplamente testadas em Portugal nos escadórios do Bom Jesus (Braga) ou dos Remédios (Lamego).
Inicialmente ignorada no conspecto das histórias da arte e da arquitectura, o caso da Cidade Universitária de Coimbra encontra-se amplamente estudado em sede de tese de doutoramento por Nuno Rosmaninho Rolo (O Poder da Arte. O Estado Novo e a Cidade Universitária de Coimbra. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006).
Em bom rigor não sabemos muito em Portugal sobre as características das cidades universitárias e campi universitários edificados nos vários continentes, de que aliás foi pródigo o século XX.
Fundada pelo Decreto de 24 de Março de 1911, a Universidade de Lisboa transitou de um paradigma eminentemente politécnico oitocentista, consubstanciado pelas pré-existências, para um modelo vincadamente humanístico. Até à década de 1950, os habitáculos da ciência caracterizam-se por alguma concentração em edifícios do Campo de Santana e pela relativa dispersão dos serviços no tecido urbano lisboeta. A Faculdade de Letras continuou a usar o edifício do Convento de Jesus, sede da Academia das Ciências, onde funcionara o Curso Superior de Letras. Medicina estava alojada no edifício da Médico-Cirúrgica, no Campo de Santana, garantindo a prática hospitalar Santa Marta. Farmácia, como escola e como faculdade efémera funcionou em contiguidade com Medicina. As Ciências permaneceram no edifício da Escola Politécnica, que por seu turno já tinha servido o Colégio dos Nobres. Direito começou a funcionar em 1913 no Palácio Valmor, encostado ao tribunal eclesiástico da diocese de Lisboa, também no Campo de Santana.
O projecto da Cidade Universitária de Lisboa, ou de um “bairro” para a universidade nasce por 1930, com a equipa reitoral de José Caeiro da Mata. As linhas de força do plano encontram-se reconstituídas por Patrícia Santos Pedrosa (Cidade Universitária de Lisboa 1911-1950. Lisboa: Edições Colibri, 2008; idem, Cidade Universitária de Lisboa. Vazios cheios urbanos ou as géneses alimentadoras de equívocos. Lisboa: ISCTE, 2007, disponível em http://upc.academia.edu/PatriciaSantosPedrosa/Papers/118003/Cidade-Universit%C3%A1ria-de-Lisboa).
Caeiro da Mata propunha concentrar no Campo Grande as faculdades existentes e respectivos anexos, conferindo destaque volumétrico ao pavilhão da reitoria, que deveria ficar situado entre Direito e Letras. O projecto vem a ser encomendado ao arquitecto Porfírio Pardal Monteiro em 1935, sendo Duarte Pacheco Ministro das Obras Públicas. A encomenda não terá sido meramente acidental. Pardal Monteiro era já um nome conhecido, trabalhava para o Estado e, pormenor a não perder de vista, tinha sido instado por Duarte Pacheco a desenhar o projecto do Instituto Superior Técnico.
Aliás, algum ar de família se nota entre o plano de ocupação do espaço no Instituto Superior Técnico e as plantas e cenários do Campo Grande. A mão de Pardal Monteiro está por ali, generosamente representada, sendo também de sua autoria o primeiro esboço da vizinha Biblioteca Nacional (inaugurada em 1969).
Onde é que o Reitor Caeiro da Mata, o Vice-Reitor António Carneiro Pacheco e o arquitecto Pardal Monteiro se inspiraram para indicar como melhor solução um campus encimado pela Reitoria/Direito/Letras?
Segundo os dirigentes da Universidade de Lisboa, a solução foi encontrada nos novos edifícios da Universidade Livre de Bruxelas, erguidos entre 1921-1928. Pardal Monteiro não desconhecia as fotografias do género publicadas em livros da especialidade e em 1937 deslocou-se com Duarte Pacheco às universidades de Paris e de Roma. Nas décadas de 1930-1940 a nova cidade universitária de Roma, concebida por Marcello Piacentini e edificada entre 1932-1935, constitui a coqueluche dos projectos ocidentais da especialidade, ultrapassando mesmo a obra de reconstrução da Complutense de Madrid levada a cabo pelo regime de Francisco Franco (fotos disponíveis em http://www.hotze.net/Roma/roma124htm; http://www.agisoft.it/Arte/5/a/Ar/Piacentini,%20Marcello.htm).
Cidade pensada para albergar a produção e conservação dos saberes postos ao serviço do Estado, o projecto de Lisboa embora não seja tão vincadamente totalitário como os de Roma e Coimbra reflecte ainda assim um forte desejo de afirmação e hierarquização dos saberes, de par com uma vontade de inscrição na história remota por via da discursividade genealógica.
Esse desejo de afirmação decorre do posicionamento topográfico, dos cenários ostentados nas fachadas de honra e das narrativas artísticas embebidas em cada um dos edifícios por sugestão dos membros da comissão de obras.
Com efeito, à data do arranque da Cidade Universitária de Lisboa já existiam no Ocidente projectos edificados em torno de um terreiro ou grande pátio, marcados pelo alinhamento simétrico de volumes à direita e à esquerda de um pavilhão central disposto no topo de um terreno. Era o caso do Capitólio de Roma, arranjo concebido por Miguel Ângelo no século XVI, de palácios com planta em U, como o Palazzo Barberini (1628), da autoria de Carlo Maderna, ou de cenários monofocais associados ao absolutismo e à ostentação barroca do poder. Entre finais do século XVIII e inícios do século XIX, os adeptos do neo-classicismo puseram em cena propostas urbanísticas e arquitectónicas que de alguma forma antecipavam projectos como a Cidade Universitária de Lisboa.
Em 1754 o rei Estanislau da Polónia promoveu na cidade francesa de Nancy um plano de construção que assentava na articulação de um palácio cimeiro, com a Place Royale delimitada por colunatas (influência do Vaticano de Bernini?), e arrumação longitudinal de edifícios na Place de la Carrière, esta decorada com jardins. O campus da Universidade de Virgínia, concebido por Thomas Jefferson e executado por Latrobe entre 1817-1826, embora coloque a reitoria à entrada do terreno, não deixa de optar por um rectângulo em torno do qual se arrumam os diversos edifícios. O esquema ortogonal do acampamento militar romano parece pairar sobre as soluções pensadas e adoptadas, bem como o desenho ideal da igreja de planta em cruz latina.
O que parece estranho na proposta avançada por Caeiro da Mata e Carneiro Pacheco é a posição de primazia conferida às faculdades de Direito e de Letras, na qualidade de instituições ladeantes da Reitoria. São declarações inequívocas de primazia protocolar. Dos três estabelecimentos politécnicos herdados de oitocentos e integrados na Universidade de Lisboa em 1911 como faculdades, Medicina é a primeira a ser criada por Decreto de 22 de Fevereiro de 1911. A sua exclusão do arranjo cénico é contudo compreensível, uma vez que foi pensada conjuntamente com o hospital, necessitando de mais terreno a ocidente do campus. Mas teria sido esta a solução definitiva, caso o edifício da Faculdade tivesse ficado separado do imóvel do Hospital de Santa Maria?
As Bases Constituição Universitária de 1911, presentes na letra do Decreto de 19 de Abril de 1911, precisam que a Universidade de Lisboa fica a ser constituída pela Faculdade de Ciências, Faculdade de Letras, Faculdade de Ciências Económicas e Políticas, Faculdade de Medicina e Faculdade de Agronomia. Tinha ainda anexas a Escola de Farmácia, a Escola Normal Superior e a Escola de Medicina Veterinária. Ulteriormente foi mandada criar uma Escola de Educação Física (Decreto de 26 de Maio de 1911).
Á luz do diploma citado, e da restante legislação escolar promulgada em 1911, a precedência entre as faculdades e escolas é a seguinte:

-Ciências (efectivamente criada e instalada, herança remontante a 1779)
-Letras (efectivamente criada e instalada, herança remontante a 1859)
-Ciências Económicas e Políticas (apenas instalada em 1913, sem herança patrimonial)
-Medicina (efectivamente criada em 22.02.1911. É inequivocamente a primeira Faculdade criada no âmbito da instalação da UL. Herança remontante à Real Escola de Cirurgia, de 1825)
-Agronomia (nunca chegou a funcionar na UL)
-Farmácia (só viria a funcionar como Faculdade com cariz permanente depois de 1968. Herança remontante à Escola de Farmácia, 1836)
-Normal Superior (viria a ser desanexada da UL)
-Medicina Veterinária (nunca chegaria a funcionar na UL).

O Estatuto Universitário de 1918 (Decreto n.º 4.554, de 6 de Julho de 1918), não respeita a ordem positivada em 1911. O artigo 3.º), Capítulo I, alinha as precedências em estrita conformidade com a tradição adoptada pela Universidade de Coimbra.

Vejamos:

-Coimbra: Letras, Direito, Medicina, Ciências, Escola de Farmácia, Escola Normal Superior;
-Lisboa: Letras, Direito, Medicina, Ciências, Escola de Farmácia, Escola Normal Superior;
-Porto: Medicina, Ciências, Técnica (=Engenharia), Escola de Farmácia.

No Estatuto Universitário de 1926 as precedências entre faculdades não são objecto de regulamentação (Decreto n.º 12.426, de 2 de Outubro de 1926; Decreto n.º 12.492, de 14 de Outubro de 1926).

As Modificações ao Estatuto da Instrução Universitária de 1929 (Decreto n.º 16.623, de 18 de Março de 1929), introduzem diversas disposições sobre o protocolo universitário, constando do artigo 113.º a ordem seguinte:

-Letras
-Direito
-Medicina
-Ciências
-Farmácia

Por seu turno, o Estatuto da Instrução Universitária de 1930 (Decreto-Lei n.º 18.717, de 2 de Agosto de 1930), longamente em vigor durante o Estado Novo, estabelece no artigo 1.º que a Universidade de Lisboa é constituída pelos seguintes estabelecimentos de ensino:

-Letras
-Direito
-Medicina
-Ciências
-Farmácia
-Escola Normal Superior.

Como se pode constatar, Ciências, primeiramente referida no diploma fundante de 1911 fica até 1985 no edifício da Escola Politécnica, ocupando posição secundária na Cidade Universitária e o quarto lugar nas precedências. Letras, sendo herdeira do Curso Superior de Letras, instituído em 1859, não era tão antiga como a herança reclamável por Ciências ou mesmo Medicina. A Escola Politécnica, fundada pelo Decreto de 11 de Janeiro de 1837, fora antecedida pela Academia Real da Marinha (Lei de 5 de Agosto de 1779) e pelo Colégio dos Nobres. Por seu turno, embora o estatuto de 1911 referencie a Faculdade de Ciências Económicas e Políticas, a Faculdade de Direito só foi efectivamente instalada em 1913. Como se infere pela análise dos diplomas publicados entre 1911 e 1930, o estabelecimento das precedências entre as faculdades na Universidade de Lisboa não obedeceu a critérios corporativos escorados na história da instituição mas somente à transposição acrítica do protocolo conimbricense.
Ciências que durante a República conseguira eleger sucessivos candidatos para a Reitoria, viria a ser preterida na viragem para a década de 1930 por reitores oriundos da Faculdade de Direito. Esta viragem, associada a modos de representação dos poderes-saberes reproduzidos pelos docentes formados em Coimbra talvez explique o facto de Ciências e Medicina não terem sido escolhidas para ladear o pavilhão da Reitoria na Cidade Universitária. Apesar de não explicitamente assumido pelos proponentes, é admissível que o arranjo topográfico do Campo Grande tenha resultado tanto do conhecimento do novo edifício da Universidade Livre de Bruxelas quanto do desejo de distanciamento face ao modelo recentemente adoptado com a criação da Universidade Técnica de Lisboa (1930).
No diploma de criação da Universidade de Lisboa, Agronomia e Veterinária surgem como escolas integrantes, quando na prática acabaram por funcionar como institutos superiores autónomos regulamentados pelo Ministério do Fomento sob a batuta de Brito Camacho. Como é sabido, Agronomia e Veterinária viriam a ser incluídas no leque de estabelecimentos constitutivos da Universidade Técnica de Lisboa.
A partir da década de 1930 a Escola Normal seguiria o seu próprio caminho, primeiro como Escola do Magistério Primário, e já na década de 1980 como Escola Superior de Educação de Lisboa do Instituto Politécnico de Lisboa. A Escola de Farmácia, inicialmente na dependência de Medicina, ascenderia a faculdade em 1921, sendo extinta em 1932. A Escola de Educação Física nunca chegaria a funcionar, situação que seguiu idêntico trilho em Coimbra.
Ao repensar a sua estrutura nos alvores da década de 1930, a Universidade de Lisboa assume-se como instituição de ensino superior vocacionada para as humanidades (daí o epíteto de “clássica”) e não como universidade politécnica. Tal opção é bem visível na deliberação do Senado, de 15 de Abril de 1915, que conduz à consagração da toga da Médico-Cirúrgica como traje docente, conforme decisão de 5 de Junho de 1915 e Despacho do Ministro da Instrução de 3 de Julho de 1915. Este pequeno pormenor é de vital importância para a compreensão do tema em análise, pois os trajes talares estavam associados à imagem das universidades históricas, ao passo que as fardas militares identificavam desde a governação de Napoleão Bonaparte as academias científico-literárias, as escolas politécnicas, as escolas militares e escolas de artes e ofícios de ensino secundário. Na mesma época e em todo o Ocidente, nos colégios particulares de ensino pré-escolar, no ensino primário, nos asilos e orfanatos, os uniformes eram invariavelmente de inspiração militar, oscilando entre a imagem do marujinho e a toilette do polícia ou do oficial da marinha.
A toga da Médico-Cirúrgica, mais conhecida por beca, era uma indumentária de trabalho. O traje de grande gala era uma farda de tipo militar, composta por bicórnio de feltro, casaca, calça avivada e espadim, inspirado no da École Polytechnique de Paris, uniforme que a Universidade de Lisboa não assumiu como instrumento identitário. Apesar de tudo, alguma herança corporativa politécnica transitou de oitocentos para novecentos. O traje docente da Universidade de Lisboa, reformado em 1960, apresenta diferenças ornamentais conforme os detentores/portadores sejam Professor Extraordinário ou Professor Catedrático, diferenciação que parece entroncar nas hierarquias oitocentistas de Lente Proprietário, Lente Substituto, Lente Demonstrador e Lente Catedrático. Apesar de a distinção ornamental e cromática da indumentária ser uma prática usual entre os membros da Igreja Católica Romana, as diferenciações vestimentárias adoptadas na Universidade de Lisboa parecem apontar mais directamente para os códigos uniformológicos militares que eram no fundo os usuais na Escola Politécnica. Já a admissão da prestação de provas académicas com grande casaca preta civil parece remeter para o modo de vestir dos membros do corpo docente do Curso Superior de Letras, documentados em fotografias de inícios do século XX com casaca, cartola e bengala. Outra herança politécnia assumida como imagem de marca é o tratamento de Professor.
A obra da Faculdade de Medicina e Hospital de Santa Maria, entregue ao arquitecto nazi Herman Distel, é projectada em 1939, tendo a construção decorrido entre 1944-1953. Entre 27 de Abril de 1953 e 1956 os serviços foram transferidos para o novo edifício. De alguma forma replicado no Hospital de São João, o Hospital Escolar de Lisboa nasce de uma planta em H, seccionada por torres adossadas, dois passadiços internos e quatro torreões extremos: Configura um exemplo de colossalismo totalitário, enquanto cidade médico-curativa auto-suficiente, que só virá a ser ultrapassado nas décadas de 1980-1990 pelos megacentros comerciais edificados em Lisboa (Amoreiras, Colombo, Vasco da Gama) e Vila Nova de Gaia (Gaia Shopping, Arrábida Shopping).
Em 27 de Maio de 1956 procedeu-se à inauguração do Estádio Universitário de Lisboa.
As obras da Reitoria, Faculdade de Letras e Faculdade de Direito arrastaram-se. O projecto de Porfírio Pardal Monteiro viria a ser actualizado e acabado por seu sobrinho António Pardal Monteiro. A transferência dos serviços para Direito e Letras teve lugar em 1958.
A obra da Reitoria ficou terminada em 1961. Em situação de proximidade fica o edifício das Cantinas, riscado por Norberto Corrêa e inaugurado em 1962. Pensado como espaço funcional, o último assume uma linguagem marcadamente vanguardista, talqualmente aconteceu na Cidade Universitária de Coimbra com o edifício da Associação Académica.
À semelhança de Roma, Coimbra ou do plano setecentista de Nancy, a Reitoria ocupa posição central, reforçando a ideia de comando, à luz do entendimento do poder praticado e propagandeado pelos regimes autoritários de entre-guerras. O edifício, na fachada voltada ao campus, ostenta uma extensa estrutura porticada, demarcada por pilares colossais. Contudo, o colossalismo dos pórticos da Universidade de Lisboa nunca chega a ser tão rígido e agressivo como as soluções avistadas em Coimbra ou Roma. A distribuição do espaço é marcadamente funcional, acobertando o edifício os serviços administrativos e o gabinete do reitor, o salão nobre e um grande auditório multi-funções (aula magna). Estamos em presença de um edifício com planta compósita à base de rectangulo envasado e trapézio, deveras interessante, que tem o condão de proporcionar excelentes espaços de trabalho, lazer e de abertura à produção cultural urbana.
À direita da Reitoria toma lugar a Faculdade de Direito, uma imensa mole de altimetria comedida, com bem destacado pórtico pilastrado e esgrafitados narrativos reforçados por mensagens epigráficas. A lição collhida no peristilo do Palazzo del Rettorato de Roma é bem evidente. Do lado esquerdo figura a Faculdade de Letras, de conspecto semelhante. Se olhados de oriente para ocidente, Letras toma a direita e Direito a esquerda. Parece uma ilusão de óptica mas não é. O que acontece é que ao olharmos os edifícios desta maneira os vemos exactamente na posição que os directores das faculdades de Letras e Direito da Universidade de Coimbra ocupam quando desfilam em cortejos ao lado do Reitor.
Quando se retomaram as tradições universitárias após o abolicionismo republicano e quando se redefiniram as precedências das faculdades, Caeiro da Mata e Carneiro Pacheco ainda estavam a leccionar na Faculdade de Direito de Coimbra. José Caeiro da Mata foi transferido para a FD/UL em 1919, seguindo-se Carneiro Pacheco em 1921. Um e outro reproduziram na Universidade de Lisboa o que tinham assimilado em Coimbra em termos de indumentária profissional, uso da borla capelo, formas de tratamento e códigos de distinção dos reitores e vice-reitores, a que se juntou o uso do latim nos diplomas solenes.
Acontece que não se pode assacar inteiramente a Caeiro da Mata e a Carneiro Pacheco a responsabilidade pelo plano de ocupação do espaço no topo oriental da Cidade Universitária de Lisboa. As normas estatutárias de 1918 e 1930 assim dispunham, ainda que desrespeitando ostensivamente as precedências “naturais” das faculdades e as heranças que antecederam o ano genesíaco de 1911.
A Cidade Universitária deixa antever um projecto arquitectónico e artístico deveras convidativo, associado a nomes cimeiros das artes plásticas portuguesas do século XX como Almada Negreiros. Testemunho do jus aedificandi do Estado Novo, o topo ocidental do Campus reúne excelentes condições para ser classificado como património. Compete desde logo aos órgãos culturais de apoio à Reitoria e aos investigadores de História da Arte da Faculdade de Letras desencadear a fundamentação do projecto de classificação e os respectivos estudos de suporte.
Importa também que estes bens culturais deixem de ser olhados e geridos como pesos mortos e passem a ser encarados como bens materiais e culturais aptos a uma gestão integrada que passe pela criação de roteiros, visitas guiadas e comunicação aos cidadãos através de galerias virtuais inscritas no respectivo sítio web.
Nas últimas décadas, a fala da arquitectura e das artes plásticas tem sido abordada restritivamente como discurso que importa estudar no âmbito do ensino/investigação em arquitectura e história da arte. Importa alargar este horizonte, estendendo as prospecções de campo à história das mentalidades, ao marketing corporativo e às ciências da educação. Para além das lógicas de ocupação, hierarquização e controlo dos espaços, há também a espessura da narrativa plástica que através do bronze, da pedra desbastada, do vitral, do mosaico, da tapeçaria, do fresco e do esgrafitado falam as representações do ser-se universidade. Independentemente da valia artística das assinaturas patentes nas obras, há a ligação a um regime político, a auto-representação das elites letradas e a recusa de inscrição no pulsar do tempo linear, marcada pela opção genealógica, historicista e mitológica. Estes relatos apontam para um tempo fora do tempo, conferindo ao templo de Minerva uma sacralidade que de outro modo não poderia ser tomada a sério. Uma das linhas de prospecção mais ricas e apetecíveis na obra da Cidade Universitária é precisamente o levantamento, interpretação e inventariação das representações dos saberes, uma forma de enunciar que vinha da Idade Média e que era comum à cultura cristã ocidental.
Foi numa cidade universitária recém-inagurada que em 1962 o reitor Marcello Caetano se demitiu, fervia a Crise Académica de 1962. Com ele, e em solidariedade, demitiram-se os directores das faculdades. Era titular da pasta da educação o lente conimbricense Manuel Lopes de Almeida que se agastou com a atitude assumida por Caetano. A situação fora agravada em 1960 pela questão das comemorações do V centenário da morte do Infante D. Henrique, que fomentara o aprofundamento do debate em torno da fundação do Estudo Geral Olissiponense ao tempo do rei D. Dinis. Por Coimbra tinham tomado posição corporativa o Vice-Reitor José Carlos Moreira e o historiador Manuel Lopes de Almeida. Por Lisboa, pelo menos Marcello Caetano e Moreira de Sá.
O azedume entre Caetano e Lopes de Almeida era mal disfarçado, a tal ponto que em viagens oficiais os adeptos de uma e de outra facção se sentavam em locais suficientemente distantes para evitar o diálogo. Lopes de Almeida considerou a demissão dos directores das faculdades uma traição acicatada por Caetano. A sua escolha para o novo reitor pendia sobre Soares Martinez que, por falta de discrição levou o ministro a sondar Lumbrales. Por fim, vingou a nomeação de Paulo Cunha.
O dissídio entre Coimbra e Lisboa deixou vestígios. Na enunciação da narrativa das origens, prática aliás comum a outras universidades portuguesas, e no programa de decoração dos edifícios do campus estão presentes invocações de mitos e de símbolos que catapultam o templo do saber para a Idade Média e para a Grécia Clássica.
Nota: proximamente conto divulgar algumas fotografias captadas em 15 de Junho de 2010, obtidas com a autorização e apoio do Sr. Vice-Reitor.


Projecto da cidade universitária da Universidade Livre de Bruxelas, 1922
Segundo o reitor da UL, José Caeiro da Mata, e o vice-reitor Carneiro Pacheco, foi neste modelo que se colheu inspiração para a disposição do que veio a ser o conjunto dos três edifícios que configuram o topo da cidade universitária de Lisboa. Com efeito, suprimindo o corpo que fecha o rectângulo em frente à reitoria, é forçoso reconhecer a matriz...

terça-feira, 20 de julho de 2010


António José de Almeida dirige-se à carruagem que o conduzirá ao combóio
Um pormenor curioso nesta fotografia captada em 19 de Outubro de 1910 na Via Latina: o pequeno uniforme do corpo de archeiros tal como chegou aos dias da República. Sabe-se muito bem como era o feitio desse trajo usado no exercício das funções de policiamento intra e extra-muros, em conformidade com as disposições do Regulamento da Polícia Académica de 25 de Novembro de 1839. A cobrir a cabeça uma barretina redonda com galão e tope de seda azul e branco. Envolvendo ombros, braços, costas e ventre, um casacão de lã castanha, embainhado pelo joelho, colarinho azul, abotoadura assertoada com fileira de botões metálicos, sendo estes ornados com as armas reais, e corte posterior no feitio do redingote. Apertava este casacão com um cinturão de couro preto que ajustava na frente com fivelão de latão amarelo. Dele pendia a inseparável espada. As calças compridas eram talhdas na mesma humilde saragoça castanha, não constando que tivessem vivos nas costuras exteriores.
Quanto às funções de policiamento extra-muros, a Carta de Lei de 30 de Abril de 1878, determinou no seu artigo 3.º que as mesmas fossem doravante exercidas pela Polícia Civil, corporação que nesse ano foi estabelecida na cidade de Coimbra com manifesto desagrado dos estudantes que apesar de passarem a vida a dizer mal dos archeiros sempre preferiam a conivência destes à disciplina dos outros.
Fonte: I. P., n.º 245, de 31 de Outubro de 1910

Visita de António José de Almeida, na qualidade de Ministro do Interior (que tutelava a instrução pública) à Universidade de Coimbra em 19 de Outubro de 1910
Escadarias da Via Latina, saída do Ministro após o acto de posse do novo Reitor Manuel de Arriaga. Almeida conversa com o guarda-mor e com um contínuo, os quais envergam o pequeno uniforme de trabalho: fato civil de três peças (calças compridas, casaco e colete) abafados por mantéu com forro de cetim.
O pequeno uniforme dos funcionários do quadro da Univ. de Coimbra caíu em desuso após 1910, erosão mnemónica e identitária que em 1954 permitiu consagrar este traje, na sua versão feminina, como traje das estudantes.
Fonte: I. P., n.º 245, de 31 de Outubro de 1910


Cortejo com deputação de académicos
Já divulgámos em post anterior esta fotografia do acervo do Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa [PT/AMLSB/AF/ACU/001864, http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/sala/online/ui/SearchBasic.aspx?filter=AF], documento omisso em data de produção e identificação dos figurantes.
Não se trata seguramente de membros do corpo docente da Universidade de Coimbra. A fotografia parece ser anterior a 1930 e posterior à Grande Guerra, em princípio produzida após a entente cordial entre a República e a Igreja Católica, política de apaziguamento a que o Presidente António José de Almeida associou o seu mandato.
A figura central indicia ser um reitor, envergando a toga herdada da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa e as insígnias doutorais de matriz coimbrã que haviam sido nacionalizadas pelo Ministério da Instrução em 1918 (artigo 101.ºdo Decreto n.º 4.554, de 6 de Junho de 1918). O que parece ocorrer nesta foto é uma transposição para a Universidade de Lisboa do costume conimbricense da borla solo, cuja raiz é eclesiástica.
Os primeiros reitores da Universidade de Lisboa estavam vinculados à Faculdade de Ciências, casos de Augusto José da Cunha (1911-1913), João Maria de Almeida Lima (1913-1916) e Pedro José da Cunha (1916-1928). A imagem parece registar uma cerimónia académica realizada no mandato do Reitor Pedro Cunha, cujo rosto não destoa do retrato do mesmo nome presente na Galeria dos Presidentes da Sociedade de Geografia de Lisboa, http://www.socgeografialisboa.pt/organica/presidentes.

O jovem lente de Direito José Lobo d'Avila Lima, que no Verão de 1910 se deslocou ao Brasil conjuntamente com uma legação que pretendia firmar um acordo luso-brasileiro
Fotos publicadas na I. P., n.º 237, de 3 de Setembro de 1910, e n.º 250, de 5 de Dezembro de 1910. Lobo de Ávila Lima viajou em companhia de outros delegados da Sociedade de Geografia de Lisboa, Capitão de Fragata Ernesto de Vasconcelos e Coronel Abel Botelho. A ideia nascera no ano anterior, pela boca de Consiglieri Pedroso. A legação portuguesa viajara em Agosto de 1910, a convite da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro. Na sua visita à Faculdade de Direito de São Paulo e nos actos solenes, Lobo de Ávila Lima envergou hábito talar e borla e capelo, notando-se pelo menos numa fotografia o grande colar da Sociedade de Geografia. Os grandes colares pendentes de fita de seda ou de elos metálicos nunca foram consagrados na Universidade de Coimbra, nem sequer para os altos funcionários.
(Lobo de Ávila Lima - Como eu vi o Brasil, I. P. n.º 250, 5.12.1910, com 13 imagens)


Alunos da Escola do Exército, 1910
A I. P. n.º 235, de 22 de Agosto de 1910 publicou uma interessante foto-reportagem intitulada «Como se vive na Escola do Exército», assinada por Augusto Casimiro.
O artigo contém informação relevante sobre o modus vivendi dos "rapazes da Bemposta" e uniformes em uso. Há desde logo semelhanças vivenciais com as tradições em voga na mesma época entre os alunos da Universidade de Coimbra. Recorde-se que José Afonso e Adriano Correia de Oliveira, em declarações emitidas na década de 1960, denunciaram nas praxes coimbrãs "tiques militares e marialvas". Estas declarações nunca foram convenientemente investigadas (até porque o ambiente restauracionista pós-1974 era hostil a este tipo de reflexões) podendo dizer-se que em traços gerais a praxe académica coimbrã dos períodos da Primeira República e do Estado Novo assimilou e reproduziu costumes de origem militar que na década de 1940 já estavam consolidados como tradições académicas "genuinas".
O próprio Código da Praxe, de 1957, não esconde essa influência, quando consagra a designação hierárquica de "paraquedista" em alunos transferidos de outras instituições de ensino superior. Ora o vocábulo paraquedista não é anterior à Primeira Guerra Mundial nem tem a sua origem na Universidade de Coimbra. O mesmo acontece com a expressão "passar revista" à capa e batina, claramente influenciada pela gíria e disciplina paramilitares, ou com a estranha forma como os autores do código intentam descrever o traje académico. Está bem de ver que a prática discursiva positivada não promana da linguagem académica, eclesiástica ou textil propriamente ditas. As peças do traje são enunciadas nesse código a propósito da condição de "estar na praxe", o que significa literalmente estar correctamente uniformizado para exercer actos praxísticos. Trata-se de uma forma incorrectíssima de enunciar a matéria, pois a morfologia e o cromatismo de um traje em circunstância alguma se confundem com as regras associadas ao vestir.
Em 1910, anotemos as seguintes semelhanças entre as duas instituições (Univ. de Coimbra e Escola do Exército):
-uso obrigatório de farda. Na EE, estavam em uso o pequeno uniforme constituído por calças compridas justas, sapato de couro ou botas, paletot justo, barretina (tacho, tachinho, também usado em alguns liceus portugueses) e capotão militar, vestindo-se nas cerimónias e solenidades a farda de gala;
-existência de uma gíria militar escolar, com vocábulos comuns. Sobre este assunto vale a pena revisitar o trabalho do Tenente-Coronel Manuel Afonso do Paço (1895-1968) - Gírias militares portuguesas. Porto: 1926;
-prática anual de praxes centradas nos ritos de entrada, onde cabiam o baptismo, a primeira noite em branco, a cama em sentido, os lençois em bicicleta, a "venda" de objectos e a atribuição de alcunhas. Outras se praticavam, anunciado a ascensão hierárquica como a frequência do bordel e a cerimónia de armação dos cavaleiros com um capacete prussiano (e se quisermos alargar o nosso horizonte prospectivo, diremos que estas e outras praxes também eram praticadas no Real Colégio Militar e na maior parte dos quartéis);
-o uso de distintivos metálicos e emblemas bordados nas golas de algumas peças de indumentária (paletot, capotão), tradição militar conhecida desde pelo menos o século XVIII que nas décadas de 1940-1950 começou a ganhar os seus adeptos na Universidade de Coimbra, particularmente entre os apoiantes da equipa de futebol e os sócios das agremiações corais e instrumentísticas.
Relativamente a este aspecto, cabe salientar que os distintivos metálicos e os emblemas bordados sobre tecido não eram desconhecidos dos estudantes do ensino superior português antes do Estado Novo. Ao longo do século XIX, os estudantes de Coimbra participaram em batalhões académicos, pelo que conheciam muito bem esta realidade. E entre a década de 1830 e a criação das novas universidades de Lisboa e do Porto (1911), a Universidade de Coimbra, as escolas politécnicas e as cirúrgicas foram frequentadas por alunos militares que, nessa condição, envergavam as suas fardas militares e com ela usavam distintivos metálicos em colarinhos e golas. O que não se pode é a partir da realidade dos estudantes militares operar uma generalização e afirmar que os estudantes da Univ. de Coimbra costumavam usar distintivos e emblemas com a capa e batina. Os símbolos dos cursos eram muito repoduzidos em contextos artísticos (pinturas de tectos, escultura nos edifícios, talha). Por seu turno, o emblema com os símbolos de Matemática era usado no capelo dos doutores, costume iniciado com a reforma pombalina de 1772 que não se generalizou noutras faculdades. No século XIX e primeiro quarto do século XX, os estudantes costumavam exibir os símbolos dos cursos nas pastas de luxo de quintanista, em pintura sobre cetim e em apliques de prata. A primeira bandeira da Tuna Académica também continha na sua parte central os símbolos das Faculdades então existentes, Teologia, Direito, Medicina, Matemática e Filosofia Natural. Até aos anos da Grande Guerra, a representação dos símbolos e atributos dos saberes obedecia a códigos heraldísticos e informação mitológica rigorosa, não admitindo heterodoxias kitsch. O primeio sinal de que algo tinha começado a mudar ocorreu justamente neste período, quando a propósito da construção do edifício da Faculdade de Letras os lentes de História sugeriram ao arquitecto Silva Pinto a produção de um grande relevo com a esfinge egípcia. Desde então, na iconografia conimbricense a esfinge ficaria associada à História e à Arqueologia, abuso cometido pelos eruditos que confundiram o seu fascínio pelas antiguidades e raridades greco-romanas e egípcias com o vero símblo da História que é Clio e outro nenhum não.
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Nota 1: o paletot aqui registado fotograficamente é, com insignificantes diferenças, a mesma peça de indumentária que os emigrantes açorianos trouxeram dos EUA para as aldeias ocidentais da Ilha do Pico, conhecida por froca, confeccionável em cotim e angrim. Resta saber se a sua origem fini-oitocentista é unicamente norte-americana;
Nota 2: o desarmar a cama de ferro para que o jovem recruta se estatelasse no chão era uma praxe comum a todos os quartéis militares portugueses.


Reitor da Universidade de Berlim com traje de gala
Em finais de 1910 a Universidade [Frederico Guilherme] de Berlim festejou o primeiro centenário da fundação, evento que deu origem a uma foto-reportagem da I. P., n.º 247, de 14 de Novembro de 1910.
As imagens supra mostram a reitoria e o reitor, Professor Schmide. Este enverga casaca e calção, sapato de gala, grande colar, capote carmesim agaloado e boina de veludo. A reportagem dedicada à UB divulgava trechos da vida estudantil como as tradicionais paradas na via pública, os duelos, o tratamento dos ferimentos, as reuniões de antigos estudantes com o bonezinho tradicional e a o interior da prisão académica (Cf. Hermano Neves, A Universidade de Berlim).


Professora de ensino primário treinando uma classe de jovens candidatas a professoras
Pátio da Escola Normal de Lisboa, 1910, instituição à data gerida por Frederico António Ferreira Simas. A mestra enverga um vestido preto de porte diário. As formandas usam botinas escuras de couro, saia comprida com amplo plissado do joelho para baixo e blusa à marujinho.
O currículo das normalistas era constituído por matemática, português, francês, moral e doutrina católica, história, geografia, ciências naturais, rudimentos de agricultura, caligrafia, desenho, escrituração comercial, legislação escolar, bordados/lavores, ginástica e canto coral. Havia ainda estágio integrado, com base em simulações de aulas ministradas numa escola primária anexa ao edifício da Escola Normal.
As escolas normais não tinham fardamento obrigatório para os membros do corpo docente nem para as formandas. De acordo com a foto-reportagem publicada na I.P., n.º 234, de 15 de Agosto de 1910 («Como se faz uma professora»), a indumentária em uso é civil, seguindo de perto a moda urbana. Em algumas aulas práticas usar-se-iam longos aventais de peitilho e batas brancas. O chamado "trajo de gymnastica" das alunas normalistas não estava totalmente uniformizado. A peça textil mais estabilizada era a blusa à marujo, conquanto apresentasse variantes nos acabamentos.