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quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Indumentária académica e eclesiástica, Portugal e Espanha, finais do século XVIII, segundo gravuras de Antonio Verico/Itália, circa 1775, com reproduções circuladas em separado nos inícios do século XIX

A legenda «Vescovo portoghese nei suo abiti non pontificale» está claramente incompleta. Procedamos a uma identificação mais cuidada. A mulher com a criança vestida de fradinho, presa com uma corda para não fugir, é um expressivo e raro documento confirmativo de relatos orais quanto ao tratamento da infância anterior à consolidação dos valores burgueses. Destaque para a roupa de fradinho, com que se usava vestir os meninos para ir à rua e às cerimónias, indumentária que a burguesia urbana do século XIX fará substituir pelo traje de marujinho.
Admitindo que o bispo é português, o que veste é o hábito talar conforme com o gosto e a moda em vigor na corte pontifícia e não os antigos trajes eclesiásticos de loba e mantéu ibéricos, que estavam a começar a desaparecer, mas que se mantiveram em alguns países católicos da América Latina o tempo suficiente para serem fotografados. Na verdade, hábito talar de loba e mantéu é veste radicalmente distinta do hábito talar romano de ferraiolo e batina de um corpo com carcela dianteira, confusão instalada nos dicionários e enciclopédias.
A figura número quatro corresponde a um estudante de um dos colégios da USAL, com sotaina, loba fechada, barrete e beca preta de pontas compridas e "rosca". Este mesmo traje era usado noutras universidades de Espanha e dos domínios coloniais espanhóis [hoje em dia México, Lima, Bogotá, Manilha], nos colégios pontifícios de São Pedro e de São Paulo da Universidade de Coimbra e em diversos seminários diocesanos portugueses e espanhóis. Aliás, foi graças à manutenção deste traje em alguns seminários católicos espanhóis que o mesmo foi documentado em fotografias dos séculos XIX e XX, quando a memória do seu uso nas universidades já tinha caído no mais completo esquecimento. Eu que o diga que palmilhei seca e meca na década de 1980, numa altura que ainda não havia internet, nada se preservou em bibliotecas, museus e arquivos, nem uma fotografia para amostra, nem um traje numa vitrine, e élas, o tema era um não tema. Quem me deu a pista inicial para chegar a uma arqueologia do antigo enxoval académico foi precisamente o Cónego Brito Cardoso, que tinha estudado em Roma e se lembrava de ter visto os seus colegas de alguns seminários católicos romanos com os antigos hábitos de corpos duplos, trajes esses que hoje em dia só os veremos quando o rei faz anos.
A figura três é a de um lente doutor da USAL, em traje de loba e mantéu, trazendo a cabeça coberta com um generoso tricórnio preto, chapéu que na cidade de Roma atingia dimensões de fazer os visitantes parar e olhar com olhos de espanto. Mas poderia ser um lente de Coimbra, pois o traje era por assim dizer o mesmo.
Fonte: http://digitalcollections.nypl.org/items/510d47e0-fda2-a3d9-e040-e00a18064a99; existe um exemplar desta gravaura no acervo do Museo Internacional del Estudiante

domingo, 14 de setembro de 2014

Iconografia Ecce Homo (séculos XVI-XVIII)

Ecce Homo, Senhor Bom Jesus da Pedra, Vila Franca do Campo, ilha de São Miguel, Açores
Imagem devocional de vulto em madeira entalhada e policromada, adornada com os símbolos do poder temporal caraterísticos das monarquias absolutas. Trabalho artístico notável, datável do século XVIII (?), confirmativo do tratamento preservado pelos imaginários desde o século XVI.
Fonte: fotografia de Helder Freitas (2010), http://helderfreitas.zenfolio.com/

Ecce Homo, Senhor Bom Jesus da Pedra, trabalho em pedra na igreja de Notre Dame de Auxone, França, século XVI

Ecce Homo, Senhor Bom Jesus da Pedra/ou da Cana Verde, imagem de vulto em madeira policromada, igreja de São Pedro/Alenquer/Portugal
Trabalho em madeira, da primeira metade do século XVI, pertenceu ao humanista Damião de Goes. Proveniente de Itália (?). Corresponde à tipologia escultórica Christ de Pitié produzida na mesma época em Itália, França e Flandres. As primitivas esculturas dos séculos XV e XVI exibem unicamente os símbolos infamantes inerentes à condição de setenciado à morte. Em algumas obras francesas e flamengas coevas podemos observar que o baraço prende o pescoço, os punhos e os tornozelos, e junto da pedra vemos uma caveira.

Ecce Homo, busto relicário do Santo Cristo dos Milagres, convento da Esperança, cidade de Ponta Delgada, Açores
Imagem entalhada em madeira, em inícios do século XVI, possivelmente no pontificado de Paulo III ou mesmo antes, proveniente de Roma. O culto público só foi implementado na transição do século XVII para o XVIII (ca. 1698-1700), tendo a imagem sido revestida com os símbolos de temporalidade dos monarcas absolutos. Este Ecce Homo configura a mais expressiva devoção popular na ilha de São Miguel. O enxoval, o tesouro e a procissão anual revestem elevado interesse religioso, cultural e patrimonial. O culto encontra-se espalhado entre as comunidades de emigrantes açorianos.