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sábado, 15 de maio de 2010


Diversos membros do clero anglicano no paço espiscopal de Montréal em 1874 (foto do Musée MacCord)
Eis um documento inesperadamente rico em pormenores de confecção das vestes talares, então em processo de desacreditação ou abolição nalguns países e instituições culturais do ocidente. Os oito figurantes testemunham o uso de sapatos de cerimónia, meias altas, calções, polainas abotoadas até ao joelho, volta branca e loba de seda preta do tipo anglicano: sotaina curta, assertoada, e sobre esta a quimera ou chamarra. Nesta variante, a chamarra tem mangas incorporadas.


Curso de medicina de MacGill, Canadá, 1883


Aluno com uniforme militar, França, segunda metade do século XIX
Botas de couro, calças compridas com vivo lateral, camisa branca, colete, casaco com peitilho ornamentado por duas carreiras de botões e gola forrada, képi com galão e flor de soutache aplicada na copa


Escolar francês com uniforme de tipo militar, década de 1860


Escolar de Augsburgo, 1899, com pasta de couro, fatinho de marujo e chapéu de palhinha
O uniforme à marujinho com chapéu de palha aparece na mesma altura em escolas e colégios privados na Grã-Bretanha, Alemanha, Brasil, EUA e Canadá. Os armazéns de pronto-a-vestir contribuiram para a popularização dos uniformes escolares através da edição de catálogos ilustrados que podiam ser facilmente reproduzidos por alfaiates e modistas.


Alunos da Chelmsford Charity School, Grã-Bretanha, 1862
A imagem confirma a tendência normalizadora e disciplinadora em prática nos países ocidentais e americanos para a adopção de uniformes militares ou paramilitares nas escolas e colégios de ensino primário e secundário.
De acordo com os valores da época, os alunos deveriam ser instruídos para o trabalho, a disciplina e a ordem. A credibilidade dos asilos, orfanatos, colégios particulares e semelhantes aferia-se através da exibição de fardas que apresentavam as crianças e adolescentes como militares, bombeiros, marujinhos ou polícias em miniatura. Nada melhor do que a imagem do soldadinho de chumbo, perfilhado e alinhado, para a burguesia triunfante construir uma imagem de acreditação, seriedade e igualdade social. Não há lugar a roupas bizarras, remendos ou pés descalços. Contudo, um olhar atento facilmente demonstraria a persistência de subtis desigualdades no padrão textil escolhido, no esmero da confecção ou no metal do relógio de bolso.


Fotografia de João Meira, docente da Médico-Cirúrgica do Porto que transitou para o quadro da FM/UP a partir de 1911.
Ao contrário da Médico-Cirúrgica de Lisboa que manteve a ornamentação do peito da toga com rosetas e alamares de inspiração militar, a Médico-Cirúrgica do Porto adoptou consgrou rosetas de nós entrançados. No caso da Politécnica, as rosetas chegaram a ser usadas na cor das várias especialidades científicas ministradas. Este ornato foi ainda profusamente usado na toga de advogado de tipo portuense que caíu progressivamente em desuso desde a década de 1950.
Meira parece confirmar a presença de laço branco.

Retrato do médico e docente da Escola Médico-Cirúrgica do Porto Júlio Dinis (1839-1871)
A fotografia terá sido tirada entre 1867-1871, data da prestação de serviço de Júlio Dinis como membro do corpo docente da escola referida. O plastron branco é bem visível na dianteira do colarinho da toga


Retrato do médico Augusto de Almeida Monjardino (1871-1941), diplomado pela Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, docente da FM/UL e reitor da instituição
(fonte: http://clubedohistoriador.blogspot.com/, por Aníbal Oliveira, 11.04.2010)
Trata-se da toga de lã preta adoptada oficialmente pela Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa em 1856, que viria a sobreviver na Faculdade de Medicina da UL após 1915. Na Médico-Círúrgica, a toga tinha estatuto de pequeno uniforme, ou seja, era uma farda de porte diário. O uniforme de gala era a farda napoleónica de corte direito, com casaca, bicórnio e espadim. Nesta fotografia, Monjardino exibe luvas brancas, papillon branco e um barrete que parece corresponder ao modelo consagrado na Médico-Cirúrgica do Porto (poligonal octavado), pois o lisboeta era redondo e encimado por quatro cristas e pompom.
Com esta toga se usaram meias pretas de seda e sapatos pretos de fivela de prata, acessórios que o tempo deliu. O plastron branco, ou lacinho, nos trajes que o admitem, era a única cor protocolarmente admitida e ainda hoje assim é no que respeita à grande casaca preta de cerimónia e aos hábitos talares de universidades da Holanda, Salamanca, Oxford e Cambridge.
Na Universidade de Coimbra, o hábito dos lentes não admite gravata alguma. O plastron é usado pelos funcionários no grande uniforme e o papillon pelos archeiros. Os estudantes usam sempre gravata ou papillon pretos, generalização abusiva do protocolo associado ao modo de vestir o smoking. Não é o que acontece em Oxford, Cambridge ou Saint Andrews onde a toga de gala dos estudantes admite apenas papillon ou plastron brancos.


Capote e capelo das "ilhas de baixo"
Postal ilustrado de cerca 1910, captada na cidade da Horta, documenta o modelo em uso nas ilhas do Faial e Pico
Sobre esta peça de indumentária escrevera em 1888 Fialho de Almeida os piores horrores, imaginando que as mulheres açorianas estariam obrigadas ao uso de uma espécie de burka islâmica! Ora, as açorianas usavam o capote e capelo por sua livre vontade, assumindo-o como instrumento de afirmação social. Só as elites burguesas é que queriam ver no capote e capelo um símbolo de atraso cultural.
O capote, em lã ou merino, era em preto ou em azul ferrete e levava uns bons metros de pano. O capelo, também ele entretelado e armado com cartão e barbas de baleia, era cosido ao colarinho do capote e abria na frente lembrando o corpo de uma raia.


Capote e capelo e homem do rebuço
Postal ilustrado de inícios do século XX impresso a partir de fotografia de estúdio captada na cidade de Ponta Delgada, Ilha de São Miguel
O figurante masculino, descalço, enverga fato oitocentista de três peças em estamenha de tear (calças compridas, colete e jaleco), camisa de linho ou estopa e carapuça de lã com pala semi-esférica e grande rebuço descaído pelos ombros. Na mão o inseparável cajado de ajudar nas longas caminhadas, carreio de pesos, toque do gado e defesa pessoal, cujo aparato haverá que correlacionar-se com as varas dos mordomos e juizes. A lã com que se confeccionava caseiramente estes fatos era tecida e apisoada sobre pranchas, trabalho penoso que nunca chegava a neutralizar por inteiro a desagradável sensação de "picar na pele".
O capote de tipo micaelense, em lã preta ou azul ferrete, é um amplo e pregueado manto de grande ostentação, embainhado, com gola e cabeção, com a avantajada calote do capelo aplicada sobre o colarinho e ombros. O capelo era independente do capote, a ele se fixando por meio de colchetes metálicos. Armava-se com cartão e barbas de baleia ou arames, estrutura disfarçada com o forro e o pano exterior.
Muita tinta correu nos séculos XIX e XX sobre o capote e capelo dos Açores, peça de indumentária estigmatizada pelas vozes burguesas que redutoramente nele quiseram ver um símbolo do atavismo e da subalternização da mulher. Trata-se, está bem de ver, de um lastimável desconhecimento da ideossincrasia local, pois o capote e capelo nunca foi de uso obrigatório. À semelhança do capote alentejano, era considerado uma peça que traduzia poder económico, ascensão social e reconhecimento público de um determinado estatuto, pelo que era livremente procurado e exibido pelas mulheres abastadas. Ou seja, tinha a mesma função que hoje é atribuída às roupas de marca e aos carros de alta cilindrada. E respondia ao instável clima das ilhas, sendo um óptimo agasalho nas invernias e nos chuviscos de Abril.


Trajes femininos em uso na cidade de São Paulo
Gravura de Adrien Tauney, 1825, acervo da Academia das Ciências de S. Petersburgo.
Presença ostensiva de dois capotes urbanos ornados de colarinho e rebuço ou romeira, em convívio com a mantilha, rebuço ou bioco remontantes ao século XVI. A mantilha preta é semelhante à avistada na mesma época em localidades de Portugal como Viana do Castelo, Braga, Porto e Monsanto. O bioco é resguardado por véus pretos fixados com alfinetes, tradição que também já foi assinada na cidade de Portalegre na indumentária de casamento.

quinta-feira, 13 de maio de 2010


Aluno de escola de agricultura, postal ilustrado de inícios do século XIX, produção britânica


Mulheres de Ovar com indumentária característica de finais do século XVIII, inícios do século XIX (chapeirões de pompons e mantéus)
Projecto de reconstituição da visita da Rainha D. Maria II em 1852, que teve lugar em 19 de Setembro de 2009. A monarca ficou por muitos anos lembrada pelos ovarenses por um episódio curioso. Estando na varanda de honra dos paços do concelho com o príncipe e infantes, e tendo um deles tido comportamento menos próprio, D. Maria II desfechou-lhe bofetão que se ouviu no terreiro e foi acolhido pela multidão como sinal da arte de bem saber educar.
A fotografia em apreço é uma autêntica obra de arte. Detectada num site brasileiro, tudo indica seja da autoria do jornalista e fotógrafo Fernando Pinto (Labirinto de Olhares, http://labirintodeolhares.blogspot.com/).
De salientar nestes chapeirões: 1) as evidentes influências de alguma chapelaria eclesiástica, em particular o galero de borlas dos cardeais romanos; 2) reminiscências do antigo chapeirão desabado que era usado nas cerimónias fúnebres municipais por ocasião da quebra dos escudos reais, exéquias e exibição pública de luto pesado.


Estudantes de Dublin, 1.ª metade do século XIX

Alunos e professores, gravura britânica do século XIX

Academic Costume, traje académico oxfordiano
Gravura do século XIX publicada em obra literária impressa

Museus Académicos

MUSEU ACADÉMICO DE COIMBRA (Univ. de Coimbra)
Data de fundação: 21 de Maio de 1951
Colecções: objectos da vida académica, escultura, fonogramas de Canção de Coimbra, partituras musicais, instrumentos musicais, arquivo fotográfico, caricaturas, posters, teatro académico, livros de memórias de antigos estudantes, trajes académicos, cerâmica artística, cartazes de festas académicas
Sítio web: não tem
MUSEO EUROPEO DEGLI STUDENTI (Univ. Bolonha)
Data de fundação: 2004
MUSÉE DES TRADITIONS ESTUDIANTINES (Univ. Liège)
Data de fundação: 2004
MUSEO INTERNACIONALE DEL ESTUDIANTE (Salamanca)
Data de apresentação online : 2008
Colecções: fotografia, cartazes, gravuras, postais ilustrados, peças de teatro, partituras musicais, livros especializados em vida estudantil e tunas

domingo, 9 de maio de 2010

Mestre-escola com o seu discípulo
Gravura elaborada a partir de uma dança macabra do século XV pintada em afresco


Antes da generalização dos uniformes escolares
Sala de aula de primeiras letras na Suiça, por Albert Anker, século XIX
A Suiça, apontada com um dos expoentes civilizacionais, aqui ainda muito distante da imagem de marca citadina, normalizada e asseptizada que viria a predominar no imaginário referencial europeu. As escolas protuguesas de primeiras letras da mesma época eram semelhantes, por vezes instaladas na casa de habitação do padre, no piso superior de um celeiro ou armazém, com mobiliário rústico, trajes a espelhar a crueza das vivências quotidianas e equipamentos escolares grosseiros e reduzidos aos mínimos indispensáveis.

Alunos do Liceu Coração de Jesus com farda de gala inspirada na uniformologia da Marinha, 1933 (História do uniforme..., 2005, p. 103)
No Brasil, como noutros países ocidentais, as crianças do ensino pré-primário, primário e secundário eram uniformizadas como se fossem adultos em miniatura. Os modelos escolhidos, de frequente inspiração militar ou policial, instauravam uma rígida separação de género, ainda mais marcada nos colégios confessionais. Eles de oficiais da marinha, marujinhos, soldados ou polícias. Elas de vestidinhos conservadores, chapéu de palhinha e avental a lembrar as monjas ou as enfermeiras.


Uniforme escolar masculino do Colégio D. Pedro II, Rio de Janeiro, 1855
Estabelecido por Decreto de 2 de Dezembro de 1837, o D. Pedro II foi o primeiro estabelecimento destinado a formar alunos do ensino secundário no Brasil oitocentista. O pimeiro uniforme de gala remonta a 1855, reflectindo o gosto da aristocracia e da burguesia endinheirada pela uniformologia militar.
O papel dos uniformes escolares no ensino básico e secundário e as estratégias de afirmação da imagem dos colégios, infantários e liceus brasileiros através da imposição regulamentar de fardas foi alvo de um extenso levantamento iconográfico: Furio Lonza (e outros) - História do uniforme escolar no Brasil. Ministério da Cultura/Rhodia, 2005. Não sendo um trabalho de uniformologia em sentido estrito, nem de história do ensino, a pesquisa documenta a presença de uniformes escolares no Brasil desde a indepência até aos inícios do século XXI. Divide-se em 9 capítulos e contém um glossário útil e bibliografia de apoio. As 232 páginas de texto, imagens e legendas percorrem-se sem esforço, graças a um estilo de escrita muito coloquial.
Reflexões sobre as reformas de ensino, a militância política, os regimes políticos, as sugestões da moda, a contracultura, a evolução e os apelos da indústria textil, os posicionamentos das elites, a busca de poder e de estatuto social, a concorrência entre o ensino público e o ensino privado e os conflitos de classe entre afortunados e desafortunados, tudo isto é carreado para o debate num estilo fluente e convidativo.
O trabalho de campo foi apoiado por empresas do pronto-a-vestir interessadas em alargar o seu campo de acção junto das escolas e colégios brasileiros onde os uniformes estão profundamente implantados. Nas páginas finais, o estilista Daniel Maia deixa um conjunto de sugestões baseadas num estilo juvenil descontraído.
Não se conhece iniciativa semelhante para Portugal onde os uniformes escolares são considerados um não assunto nas escolas superiores de educação e nas faculdades de psicologia. Ao nível do Museu Nacional do Traje também não temos notícia de nenhuma iniciativa correlacionada com a temática.
Agradeço à Prof. Maria Lúcia Bettega o envio de um exemplar desta obra


Turma mista do Liceu de Lourenço Marques (Maputo) que usou pela primeira vez capa e batina em conformidade com a letra do decreto nacionalizador de 1924.
Foto de João Rufino, Álbuns fotográficos e descritivos da colónia de Moçambique. Volume II. Lourenço Marques, 1929, disponível em http://www.companhiademocambique.blogspot.com/2004_12_01_archive.html


O pequeno escolar
O aluno de bibe, capote, boina e cestinha foi desenhado em 1897 por Firmin Bouisset (1859-1925) para uma marca de biscoios franceses, fazendo parte do imaginário francês

Uma imagem clássica dos alunos do ensino primário nos anos áureos da III República francesa
O pequeno escolar com sapatos de couro, meias brancas altas, calções, bibe, boina preta e pasta de couro.
Neste postal ilustrado de inícios do século XX fica patente o contraste entre o mundo rural, os bairros pobres citadinos e a imagem que o governo central pretendia transmitir e consolidar. Uma percentagem elevada da população escolar andava descalça, não tinha dinheiro para comprar o uniforme nem para encher a lancheira das crianças.
Entre a segunda metade do século XIX e o primeiro quartel do século XX as elites burguesas não ocultam o seu fascínio pelas fardas à marujinho e à policiazinho, com que se passam a vestir as turmas de crianças dos orfanatos, asilos de mendicidade, creches e escolas de primeiras letras. No mundo anglo-saxónico e japonês a farda escolar afirma-se e conquista prestígio. Nas escolas públicas da Europa continental, o Estado acaba por prescindir da exigência do porte de uniforme. Já os colégios privados ocidentais farão gala em assumir uma imagem de solidez pedagógica e austeridade disciplinar através da exigência de uniformes.


Costumes burgueses masculinos e femininos da cidade de Lisboa, décadas de 1810 a 1820
Na mulher, presença generalizada do vestido de avental, com cós muito subido, sapato forrado estilo Império, josezinho de mangas soltas e lenço deitado sobre bandolete de tartaruga ou chifre.
No homem, a persitência do penteado de rabicho, o casacão militar e o bicórnio napoleónico.


Alguns trajes populares usados por habitantes das povoações dos arredores de Lisboa na década de 1850 (gravura de 1859).
Confirma-se a escassa penetração da moda burguesa urbana nas comunidades rurais. Permanecem em uso os calções masculinos com ceroulas de folhos de linho, as caroças de palha (ao que tudo indica pré-romanas), os mantéus e as saias de ombros, o pau ferrado e o andar de pata ao léu. Um outro dado muito interessante tem a ver com a existência de registos anteriores ao advento da etnografia regionalista que confirmam peças de indumentária e acessórios comuns a diversas regiões, com replicações em Espanha.