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sábado, 20 de outubro de 2007

Exposição do corpo de São Boaventura
Quadro do pintor espanhol Francisco de Zurbarán (1598-1664), recriando a morte medieval do franciscano São Boaventura, aqui em impossível encontro entre o santo, o Papa Gregório X e o Rei Jaime I de Aragão.
Muito atento aos pormenores, Zurbarán não deixa de documentar o galero de borlas depositado aos pés do esquife.
[obra de 1629, acervo do Musée du Louvre]

Velório dos bispos
A preparação do corpo dos bispos, velório e inumação, deveria seguir um conjunto de normas bastante rígidas, codificadas pela Igreja Católica desde o Concílio e Trento e sucessivamente reeditadas no "Cerimonial dos Bispos" até à clássica impressão de 1752.
Cuidadosamente limpos e vestidos com os trajes pontificais e insígnias (mitra na cabeça, báculo sobre o corpo, luvas verdes, anel no dedo), o corpo era exposto em câmara ardente rodeada de tocheiros. Aos pés do esquife repousaria o chapéu pontifical verde, com cordões e borlas de seda, que se fazia transportar atrás do sarcófago durante o cortejo fúnebre.
No caso dos cardeais romanos, o galero escarlate também obedecia ao mesmo protocolo, mas após a inumação deveria ser supenso do tecto da catedral, sobre a arca tumular.
[gravura extraída da obra "Caeremoniale Episcoporum", edição de 1752, vertida em francês no texto "Le Cérémonial des Évêques", Livre Second, Chapitre XXXVIII, versando rubricas como doença, morte, funeral, sepultamento, disponível on line em http://www.ceremoniaire.net/office_divin/caer_esp_1/-40k]

Rainha mãe (1)
Saída do cortejo fúnebre a caminho do local de inumação, vendo-se imediatamente atrás do féretro os membros da família real britânica (Londres, 9/0472002)

Rainha mãe (2)
Sermão proferido pelo Arcebispo de Cantuária durante as solenes exéquias da Rainha Mãe Elizabeth, Londres, 9 de Abril de 2002. A imagem documenta o celebrante no púlpito, o catafalco, a eça forrada com o estandarte real, quatro tocheiros, coroa de flores, almofada e coroal real, mas não a guarda de honra.


Rainha mãe (3)
O sarcófago da Rainha Mãe Elizabeth durante as cerimónias fúnebres, Londres, 9 de Abril de 2002: catalfalco, estandarte real, almofada e coroa real

Cortejo fúnebre de George V
Diplomatas e chefes de estado dos países amigos da Grã-Bretanha no cortejo fúnebre do Rei George V, arredores do Castelo de Windsor, 28 de Janeiro de 1936. De salientar o desfile aos pares, a presença de trajes nacionais e as cabeças cobertas com cartolas e bicórnios emplumados.



Funeral da Rainha Elizabeth I (1603)

Trecho do cortejo fúnebre da Rainha Elizabeth I, gravura do acervo da British Library (Londres, 28 de Abril de 1603). Prolongando costumes medievais, os corpos dos monarcas britânicos eram transportados aos ombros. Sobre a parte superior do esquife exibia-se um manequim de madeira, vestido e pintado, com a vera esfinge do morto, de que ainda sobram diversos exemplares no Museu anexo à Abadia de Westminster. O esquife era protegido pelo pálio de varais altos, costume de que se apropriou progressivamente a Igreja Católica.

Participavam no cortejo fúnebre os altos dignitários e funcionários da corte. No cortejo fúnebre de Elizaberth I figuraram pelo menos 4 charamaleiros, o Portcullis Officer of Arms e o alfereres do estandarte, alabardeiros e reis de armas com as maças reais.


Cortejo fúnebre
"The funeral procession of Sir Philip Sidney", Inglaterra, 1587. Reprodução de uma gravura dos tombos da Abadia de Westminster.
Organização tipicamente quinhentista com o ataúde recoberto por longos panos armoriados e transportado aos ombros de dignitários ladeados por hieráticos porta-estandartes com roupões pretos talares e capuzes de dó. As tradições funerárias variavam de país para país, reflectindo igualmente a condição social e familiar do morto. Neste caso concreto, embora o cerimonial imite de perto os usos e costumes da casa real britânica, o facto de não se tratar de um funeral da casa real explica a ausência de pálio a recobrir o féretro. Em Portugal, manter-se-ia até D. Pedro V o velho costume dos estandartes arrastados pelo chão em sinal de pesar, em particular na cerimónia da "quebra dos escudos".

Velório militar (1)
Sarcófago do general e antigo ditador chileno Augusto Pinochet, após a fase de selamento (12-12-2006). Sobre o féretro, coberto com a bandeira nacional, foram dispostos o boné militar, o dólmen, a banda e a espada de Pinochet.

Velório militar (2)
Celebrações fúnebres no Chile por morte do antigo ditador Augusto Ramón Pinochet (12-12-2006): sarcófago de madeira armado sobre catafalco singelo, quatro tocheiros minimalistas e guarda-de-honra garantida por quatro militares em grande uniforme.
Na parte inferior do ataúde foram dispostas as insígnias do falecido.



Requiem 1

Escudetes em tela preta com o brasão do falecido estampado. Ornamentação superior dos tocheiros que ladeiam o catafalco


Requiem 2
Aspecto do catafalco, eça, tocheiros e decoração do féretro


Requiem 3
Almofada de veludo preto, ornada de galões e borlas dourados, aposta na parte superior do sarcófago para exibição das principais insígnias do falecido. Na tradição funerária ocidental, as coberturas de cabeça, insígnias e condecorações, tanto podem ser colocadas sobre o sarcófago fechado, como aos pés e sobre o corpo do morto ou em credência destacada ao fundo do féretro (chapéus, báculos, varas, maças, bastões, espadas, coroas, capacetes).
As inumações humanas com flores, jóias, armas e objectos pessoais são prática imemorial, descrevendo um trajecto assinalado desde a pré-história, com passagem pelas mais importantes civilizações da orla mediterrânea.


Requiem4
Aspecto do tratamento da parte superior do sarcófago: pano preto, almofada preta agaloada com barrete e condecorações, estola roxa

Requiem 5
Aspecto do altar recoberto com panos de brocado preto e franjados.
As fotografias 1, 2, 3, 4 e 5 deste conjunto respeitam à Missa de Requiem de Frei Franck-Marie Quoex, celebrada em Roma nos inícios de 2007.
[imagens extraídas de "F. S. S. P. in Vrbe", http://fsspinurbe.blogspot.com/2007_02_01_archive.html]


Cortejo fúnebre da Rainha Eleanor
Reconstituição naive de inícios do século XX do cortejo fúnebre da Rainha Eleanor, realizado em Inglaterra, a 13 de Dezembro de 1290. Inspirado nas exéquias solenes dos monarcas britânicos quinhentistas, o pintor integra na representação hieráticos desfilantes do clero, nobreza e povo, cavaleiros, guarda de honra e transporte do corpo em esquife coberto por pálio de varas armoriadas.
[http://www.hertfordshire-genealogy.co.uk/]

domingo, 14 de outubro de 2007

PERFIL BIOGRÁFICO DO DR. ANTÓNIO JOSÉ SOARES (1916-2002)
[Notas sobre um estudioso que também “estudou” a Canção de Coimbra. O último encontro, Matosinhos, 22 de MARÇO de 2001]

Por António Manuel Nunes
António José Soares, filho de António Soares e de Rosa Emília, nasceu no número 18 da casa de família na antiga Rua do Cotovelo, no coração da Alta Coimbrã, no dia 12 de Julho de 1916. O prédio fora adquirido pelo avô materno, que nos números 14, 16 e 18 do piso de entrada estabelecera a conhecida Venda do Porteiro, locanda de vinhos e de pequenos artigos de retalho, assim conhecida pelo facto de o avô exercer o mester de Porteiro nos Hospitais da UC.
A mãe, Rosa Emília, era dona de casa e em podendo também ajudava no atendimento aos clientes da Venda. António José Soares ainda se lembra de ir aos vinhos com o pai numa carroça de tracção muar à Rua do Sargento Mor e a Bercouços, e da alegria que era passar em frente ao Hotel Astória e admirar o mistério da placa metálica onde reluziam as letras identificativas que também eram o número 21.
A esse tempo, por meados da década de 1920, o copo de vinho mercava-se a três centavos, poucas habitações citadinas possuiam casa de banho ou água canalizada, e a rede pública de energia eléctrica tardava em chegar. O pai era Republicano Evolucionista, da ala do António José de Almeida. Militante fervoroso, além de inscrito no partido, pagava quotas.
António José Soares, influenciado pelo pai, tornou-se e ficou sempre um “republicano reviralhista” que nunca nutriu o mais pequeno entusiasmo pela Ditadura Salazarista. Na sua infância era muito frequente os republicanos evolucionistas gritarem em tom provocatório “Viva o António José”, no intuito de arreliarem transeuntes seguidores do ideário de Afonso Costa.
António José Soares cresceu na Alta, repartindo as suas brincadeiras pelo Largo da Feira e terrenos dos Arcos do Jardim, onde mais tarde Bissaia Barreto viria a construir a sua residência. Como que a lembrar os tempos felizes da meninice, recorda os petizes que no dia de Todos os Santos iam pelas ruas com abóboras de carantonhas e velas cantar o “Bolinhos, Bolinhós, Para Mim e Para Vós” (melopeia que entoa, comovido).
Fez o Jardim Escola João de Deus graças a uma tia paterna, sem filhos, muito amiga da antiga directora do Jardim (recita de cor frases da “Cartilha Maternal”). Nos anos difíceis da Guerra de 1914-1918 a família Soares teve outro filho, nascido em 1918. Os Soares viviam sem grandes dificuldades económicas, dado que o pai e outros familiares trabalhavam no Instituto de Medicina Legal (uma criação da República, primeiramente presidida pelo Doutor Almeida Ribeiro).
Terminado o Jardim Escola, António José Soares iniciou os estudos primários pela mão da professora Maria José da Encarnação Ramos, residente numa casa do Bairro Sousa Pinto (local de frequentes serenatas, pois lá moravam muitas alunas normalistas). E lá seguia o pequeno António José Soares diariamente, a pé para a Baixa, pela mão da professora Maria José, em direcção à Escola Primária de São Bartolomeu (ela gostava de levar consigo um ranchinho de alunos que no regresso a ajudavam a trazer os sacos da mercearia). No ano lectivo de 1926-1927 António José Soares ingressou no Liceu José Falcão (hoje edifício do Instituto de Antropologia), onde decorriam as aulas, excepto as de ginástica que se faziam na igreja de São Bento.
Teve excelentes mestres, todos eles “Drs. Abreviados”, pois “Doutores por extenso” eram os lentes da Universidade e “professores” propriamente ditos só se chamava aos de instrução primária, ginástica e canto coral.
No segundo ano do Liceu a formação católica de António José Soares sofreu sério abanão ("eu fui baptizado, fiz primeira comunhão e comunhão solene, com catequese na Sé Nova"). “O Dr. Serras Pereira, numa lição sobre História do Egipto falou sobre o politeísmo e a mudança de deuses após a entronização dos novos faraós e eu fiquei a matutar naquilo”.
No ano lectivo de 1933-1934, António José Soares matriculou-se no primeiro ano da Faculdade de Direito da UC. A agenda cultural da Associação Académica, então instalada no casarão da Rua Larga, marcava fortemente o imaginário das gentes da Alta e António José Soares recorda com ênfase as gestões de João Gaspar Simões (lista republicana, 1930-1931) e a do poeta António de Sousa (lista republicana, 1934-1935). Adepto das tradições académicas “sem violência”, sublinha, António José Soares instigou manifestos contra a praxe trupista saídos entre 31 de Outubro de 1928 e 1935, em especial o publicado pelos Bichos do Liceu José Falcão, divulgado por Carminé Nobre, a páginas 85-88 do “Coimbra de Capa e Batina” (Volume II, 1945).
Os manos Soares, conhecidos pela alcunha de Irmãos Balons, cometeriam a proeza de dispersar à porrada uma trupe que no Largo da Sé Velha se preparava para tonsurar um caloirinho. Da refrega e da trupe desmantelada sobrou uma moca que António José Soares guardou durante longos anos na sua biblioteca.
Os anos foram correndo e em 1939 António José Soares ficou bacharel em Direito. Posteriormente, e graças a uma reforma conduzida pelo Ministro da Educação Caeiro da Mata (o “cagueiro da malta”, lhe chamàvamos), os bacharéis foram autorizados a requerer exame do 5º ano. António José Soares aproveitou a reforma e em Junho de 1946 terminou a licenciatura, com média de 11 valores, ao fim de muitos tormentos, marcado pela férula exigência de Pires de Lima e Mário de Figueiredo, lentes que semeavam medos e lendas.
Logo no primeiro ano de Direito, nos alvores de 1933-1934, António José Soares inscreveu-se no Orfeon do Padre Dr. Elias de Aguiar, onde ficou barítono. A esse tempo já o Regente se encontrava gravemente doente, tendo falecido numa Sexta feira de 13 de Março de 1936, no edifício do Seminário de Coimbra. Passou a reger oficialmente a batuta do Orfeon Manuel Raposo Marques, personalidade que António José Soares recorda irónico, pelo seu apego às condecorações, teatralidade exibicionista com que deixava escorregar a capa dos ombros após erguer a batuta, pelo porte pomposo do trajo de lente e pose de Dr. que nunca foi, e pelas enxurradas de palavrões micaelenses com que brindava os naipes mais rebeldes em entrar no tom.
Em 1938 instituiu-se o Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC), primeiro organismo académico a recrutar mulheres para o seu elenco. Em conversações com o seu grande amigo Deniz Jacinto, na qualidade de inseparável “Companheiro do Diabo” vicentino, António José Soares insistiu na criação de um grupo dramático exclusivamente universitário, por contraposição à TUNA e ao ORFEON, organismos que nos últimos anos tinham vindo a admitir estudantes do Liceu (era o caso da TUNA, onde tocava violino o filho do viola e barbeiro José Trego). A Deniz Jacinto e a António José Soares se deve o nome TEUC, desde logo orientado pelo “reviralhista” Paulo Quintela.
Das suas actividades de “reviralhista”, discretas mas eficazes, relembremos:
a) a longa militância no TEUC, cujo director artístico (Paulo Quintela) e boa parte do elenco tinham fama de opositores ao regime salazarista (daí, também, a presença assídua de elementos da Censura nas exibições feitas pelo grupo no Teatro Avenida);
b) a sua primeira caricatura, esboçada em 1936, e destinada ao livro da Queima das Fitas dos Estudantes de Ciências (onde o académico Mário Ramos enverga fato de operário, foice e martelo, e a torre da Universidade se transmuda em chaminé fabril);
c) a colaboração no corpo redactorial do jornal comunista SOL NASCENTE, sedeado em 1938 na porta nº 38 da Couraça de Lisboa;
d) a realização artística da capa do livrinho «Cadernos da Juventude/Ensaio/Novela/Poesia/Inquérito», editado em 18 de Novembro de 1937, trabalho apreendido pela “Pevide” (PVDE) na Tipografia Lousanense e queimado no edifício do Governo Civil aos Lóios;
e) a adesão ao boicote ao Dia do Livro Italiano, programado pelo Instituto Italiano da Faculdade de Letras para o dia 19 de Maio de 1939. Durante a noite, o estudante Luís Carvalhal [irmão do guitarrista António Carvalhal] conseguiu penetrar na sala, crivou estantes e paredes de grafitis negros, rasgando ainda a bandeira italiana e destruindo o retrato de Mussolini. As inscrições davam vivas à Etiópia, Albânia e Checoslováquia, reclamavam liberdade para Portugal, e clamavam contra o fascismo e os espiões (a sessão não chegou a realizar-se);
f) a sua prisão em 25 de Maio de 1939, por suspeita de colaboração no Sol Nascente, tendo ficado retido na Penitenciária de Coimbra até ao dia 27 de Maio;
g) o discreto combate às Comissões Administrativas de gestão da AAC, nomeadas pelo governo a partir de 1936-1937, e a sua adesão e apoio à lista de Francisco Salgado Zenha (ratificada pela Assembleia Magna de 13/12/1944, e tendo na Vice-Presidência o seu grande amigo Barrigas de Carvalho, Assembleia “preparada” por Deniz Jacinto e António José Soares);
h) no Verão de 1945 dinamizou uma célula clandestina do PCP na sede do Diário do Coimbra, então supenso pela Censura;
i) o entusiamo e esperança vividos no após Segunda Guerra, gerados em torno da candidatura presidencial de Norton de Matos (Fevereiro de 1949);
j) a viagem do TEUC ao Brasil no Verão de 1951, cujo regresso foi aproveitado para fazer entrar clandestinamente em Portugal diversos pacotes de livros da autoria de Jorge Amado.
No TEUC, António José Soares foi actor, ao lado de Deniz Jacinto, e cenarista. Quando Deniz Jacinto começou a trabalhar como Director do Diário de Coimbra convidou António José Soares para Chefe de Redação e Administrador. António José Soares já não se recorda com precisão do período em que foi Administrador do Diário de Coimbra, adiantado que deve ter sido algures entre o bacharelato (1939) e a licenciatura (1946). Relativamente ao Diário de Coimbra recorda um episódio particularmente interessante. A certa altura o jornal divulgou um artigo assinado por dois redactores (Manuel Assunção Carvalho e Jorge Peixoto, o último um esquerdista dos quadros da Biblioteca Geral da UC), cujo título era “MAX ARTISTA DE CIRCO”.
A Censura deixou escapar o artigo, por aparente e inócua invocação do nome do comediante americano Max Groucho, mas que na realidade era uma sátira ao Reitor Maximino Correia. As represálias não se fizeram esperar, tendo ficado a publicação do jornal suspensa, castigo que semeou o caos financeiro na Administração. Privado dos meios necessários ao pagamento dos salários dos tipógrafos, salvou a gestão de António José Soares Mário Gonçalves Carneiro que encomendou à tipografia do jornal um livro sobre história da Medicina. Após a fase do Diário de Coimbra, António José Soares trabalharia na Gazeta de Coimbra, semanário propriedade da família Arrobas que na segunda metade da década de 1940 viveria uma fase declaradamente esquerdista e feminista.
Entretanto, conheceu nos coros falados do TEUC a estudante de Germânicas Margarida Madalena Macedo Costa, filha de um livreiro portuense que, uma vez terminado o curso, passou a trabalhar no Colégio Alexandre Herculano. Casaram em Outubro de 1946, tendo fixado residência na nova moradia dos Soares ao Penedo da Saudade, local onde habitava desde 1942, empurrado pela maré de demolições em curso na velha Alta.
Além de cenarista do TEUC, António José Soares começara a riscar caricaturas em 1936, cobrando entre 30 e 50$00 ("não davam dinheiro suficiente para fazer vida"). Muitas desses caricaturas encontram-se impressas em livros de curso e plaquetes de grelados, facilmente identificáveis pela assinatura ARES ou ainda SOARES (=Só+Ares).
Também fez cartazes para a Queima das Fitas, tendo conquistado o primeiro lugar pelo menos duas vezes, conforme se pode ver pela consulta do álbum evocativo lançado pela AAC em 1987. A ele se devem os cartazes da Queima das Fitas de Maio de 1939 e o de Maio de 1943. O gosto pela investigação e a relação de amizade com o Dr. Fernando Pinto Loureiro, ao tempo Director da Biblioteca Municipal, canalizaram António José Soares para a consulta exaustiva dos fundos daquela instituição. O grosso da investigação decorreu entre 1939 e 1946, tendo abrandado um pouco em 1948, ano em que o nascimento da primeira e única filha veio retirar a António José Soares alguma disponibilidade.
Soares transformava-se assim no mais sólido cronista da História da Academia de Coimbra, ao arrancar das profundezas das bibliotecas e arquivos uma informação que iniciada em finais do século XVIII se alargava à década de 1950. Posteriormente continuou a completar os ficheiros, cuja informação se estende até 1974. Infelizmente, os estudos e publicações produzidos por Soares foram realizados numa época em que os costumes estudantis e o seu património cultural, musical e vestimentário eram vistos pela Reitoria como simples "curiosidades" que se podiam exibir perante turistas ou visitantes ilustres. Só muito mais tarde, no primeiro reitorado de Seabra Santos é que os costumes estudantis multisseculares passaram a ser institucionalmente assumidos como bens culturais dotados de originalidade e mais valias aptas a singularizarem a Alma Mater em contextos nacionais e internacionais.
Autor de diversos artigos e crónicas hoje dispersas pelo Diário de Coimbra, Gazeta de Coimbra, O Primeiro de Janeiro, Bastilha, Jornal de Coimbra, António José Soares esteve ligado à fundação do primeiro núcleo do Museu Académico no Colégio dos Grilos, edifício onde passara a funcionar a AAC desde o Verão de 1949. O Museu Académico abriu as suas portas em 1951. Caberia a este Museu (onde muito colaborou António da Rocha Madahil), graças à acção de António José Soares, apresentar a primeira exposição de 150 fotografias da antiga Alta demolida (5 de Maio de 1960, integrada nas festas do 80º aniversário do ORFEON). Como caberia ao mesmo António José Soares a ideia de lançar uma revista de antigos estudantes, a prestigiada Rua Larga que se editou entre 1957 e 1961, cuja lacuna ainda hoje se encontra por suprir. Nas páginas da aludida Rua Larga publicou António José Soares dezenas de artigos sobre a História da Academia de Coimbra, uns não assinados, outros apenas com S., outros A. J. Soares. O grosso desses artigos viria a dar origem aos três interessantíssimos volumes de Saudades de Coimbra, publicados em 1985. Outros trabalhos vieram a lume entre as décadas de 1940 e 1960, com especial destaque para a História da TUNA, publicada no Arquivo Coimbrão e a imprescindível História do TEUC.
Em meados de Janeiro de 1967 a família Soares foi estabelecer-se em Lourenço Marques, cidade moçambicana onde António José Soares trabalhou como advogado e funcionário do Instituto de Crédito de Moçambique. Só regressaria a Portugal na década de 1980, tendo fixado residência na Rua do Cedofeita, Porto. Residiria em Coimbra, no Bairro Norton de Matos, embora por curtos períodos, tendo optado pelo apartamento da Rua do Monte Cativo no Porto.
Após o falecimento da esposa transferiu-se para Matosinhos. Na década de 1980 colaborou na edição do álbum fotográfico sobre a «Velha Alta Desaparecida» (Almedina, 1984) e procedeu à edição dos três volumes de «Saudades de Coimbra». Foi também nesta fase que completou os seus ficheiros até ao ano de 1974. Ainda pensou na hipótese de levar a cabo o historial da TAUC e do Orfeon, projectos de que veio a desistir na esperança de tal trabalho ser realizado por membros das associações de antigos tunos e orfeonistas entretanto constituídas. Desde então, passou a ser frequentemente solicitado por diversos investigadores ligados a trabalhos sobre Coimbra, a Academia e a Universidade, a quem facultou informações valiosas, documentos e todo o apoio possível.
O vastíssimo trabalho desenvolvido pelo Dr. António José Soares, em parte disperso, ou mesmo inédito, ainda não foi devidamente reconhecido e continua a aguardar os seus continuadores.
PRINCIPAIS PUBLICAÇÕES E TRABALHOS
-«Breve História da Tuna Académica da Universidade de Coimbra», Coimbra, Edição da Biblioteca Municipal, 1962.
-«Subsídio para a história do Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (1938-1961)», Coimbra, Edição do TEUC, 1961.
-«Saudades de Coimbra (1901-1949)», 3 volumes, Coimbra, Almedina, 1985.
-inúmeros artigos nas revistas Rua Larga, Bastilha, e jornais (Diário de Coimbra, Gazeta de Coimbra, O Primeiro de Janeiro).
-«Carta ao estudante João Baptista de Almeida Garrett», Coimbra, 1954 (in Vértice nº 135).
-«Viagem Maravilhosa» (crónicas publicadas no final de 1951, no Diário de Coimbra, sobre a viagem do TEUC ao Brasil, entre 12 de Agosto e 1 de Novembro. Saliente-se o pioneirismo das “actrizes” do TEUC que no decurso desta viagem lançaram o trajo académico feminino em Coimbra).
-autor do Emblema da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra (fundada em 1959).
-co-fundador e animador do Museu Académico, instituído em 1951.
-membro do TEUC desde a sua criação em 1938, actor, cenarista e coautor do nome deste organismo.
-barítono do Orfeon Académico de Elias de Aguiar e Raposo Marques.
-coautor do álbum fotográfico «A Velha Alta Desaparecida», Coimbra, Almedina, 1984.
-membro fundador da revista de antigos estudantes Rua Larga, publicada entre 1957 e 1961, onde foi autor de dezenas de cronologias e artigos.
-caricaturista desde 1936.
-autor de dois cartazes da Queima das Fitas.
-Chefe de Redacção e Admistrador do Diário de Coimbra na década de 1940.
-repórter da Gazeta de Coimbra na segunda metade da década de 1940.
- colaborador de várias células clandestinas do PCP em Coimbra a partir dos anos 30.
Faleceu em Matosinhos, a 28 de Março de 2002. Recebeu postumamente a Medalha de Mérito da Universidade de Coimbra, entregue aos familiares em 9 de Julho de 2002.
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Por volta de 2000, o Prof. Doutor Luís Reis Torgal começou a preparar uma proposta de homenagem ao Dr. António José Soares junto do Senado da UC, tendo-me solicitado a recolha de documentos e a elaboração de uma pequena biografia sobre este meu Mestre, a quem devo quase tudo o que aprendi sobre costumes estudantis de Coimbra. Foi num dos nossos encontros semanais em Matosinhos que recolhi a presente informação que sustentou o processo de atribuição da Medalha de Mérito da UC ao Dr. Soares.
Infelizmente o processo arrastou-se demasiadamente, tendo o homenageado falecido antes da conclusão dos preparativos que antecederam a cerimónia. O Dr. Soares vivia uma penosa situação de debilitação física, agravada por uma paralisia parcial que o obrigava a recorrer ao apoio de “canadiana”. A agravar a situação, na última ida à sua cidade natal (incorporado num jantar de curso) dera uma queda que muito contribuíu para lhe agravar o estado de saúde.Não tendo sido propriamente um investigador da Canção de Coimbra, Soares recolheu importantísssimas informações sobre este género musical que ficaram plasmadas nas páginas dos três tomos de «Saudades de Coimbra» (1985).Aproveito agora para lhe prestar a minha última homenagem (julgo ser o seu único discípulo), lamentando que não tenha sido chamado a dirigir o Museu Académico após o regresso de Moçambique, cargo que teria desempenhado com competência superior a qualquer outra das muitas almas bondosas que a madrasta Coimbra por vezes aleita.(Texto terminado aos 11 dias do mês de Outubro de 2002, com uma primeira edição on line no Blog “Guitarra de Coimbra”,
http://guitarradecoimbra.blogspot.com/, em 24 de Abril de 2005)


António José Soares